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Sar­ney, Cafeteira e uma gratidão final.

Escrito por Abdon Mar­inho


SARNEY, CAFETEIRA E UMA GRATIDÃO FINAL.

Por Abdon C. Marinho*.

SOBRE a mesa de cen­tro na minha sala no escritório da Rua dos Pin­heiros repousa um livro que conta a história do Pro­jeto Reviver – a recu­per­ação do cen­tro histórico de São Luís, empreen­dida durante o gov­erno Cafeteira (19871990) –, que me foi dado pelo próprio ex-​governador quando tra­bal­hei na sua cam­panha ao gov­erno do estado no ano de 1994 – quase uma relíquia.

O livro estava guardado em uma gaveta e por um motivo qual­quer o trouxe para fazer “com­pan­hia” a um outro livro, este sobre os lençóis maranhenses.

Em um dia da sem­ana, aten­dia o amigo, o prefeito de Luis Domingues, Gilberto Braga, quando aden­tra a sala outro amigo, o ex-​prefeito de Bequimão, José Mar­tins.

Enquanto aguarda, Mar­tins começa fol­hear o livro e acabamos, os três, numa única con­versa, recor­dando alguns fatos pitorescos de Cafeteira e da política do estado como um todo. Mar­tins acabou por tocar na reaprox­i­mação entre o ex-​presidente Sar­ney com ex-​governador, fato ocor­rido a par­tir das eleições de 2006, quando esse último elegeu-​se senador na chapa com Roseana Sar­ney, que fora sua adver­sária nas eleições de 1994 (aquela que gan­hamos); e na de 1998 (aquela que perdemos). Como teste­munha ocu­lar da história, estava em ambas.

Em 22 de maio de 2018, por ocasião da extinção do ex-​governador, ocor­rida no dia 13 daquele mês, escrevi sobre o que vivi naque­las duas cam­pan­has eleitorais e nos seus des­do­bra­men­tos, chegando, já alguns pará­grafos antes quadra final do texto, a fazer refer­ên­cia a essa reaprox­i­mação entre os dois políti­cos e o desabafo feito por Cafeteira na última vez que estive­mos jun­tos.

Como já disse em tex­tos ante­ri­ores, con­heci pes­soal­mente Cafeteira por ocasião da eleição estad­ual de 1994, já tra­bal­hava com Juarez Medeiros, que foi can­didato a vice-​governador na chapa com ele, e fui chamado para, junto com mais duas ou três pes­soas, tomar conta daquela cam­panha eleitoral.

Olhando com os olhos de hoje (na época tinha 25 anos) fico imag­i­nando como uma cam­panha eleitoral sem recur­sos, sem sus­ten­tação política con­sis­tente, com tão pou­cas pes­soas no seu comando chegou tão longe enfrentando toda a força política de um gov­erno estad­ual, fed­eral, poder dos meios de comu­ni­cação todos nas mãos dos adver­sários (o grupo Mirante, da família da can­di­data e com pen­e­tração em todo o estado e a grupo Difu­sora, da família do então gov­er­nador, tam­bém apoiando Roseana).

Acred­ito que nunca antes – nem depois –, teste­munhamos uma cam­panha como aquela. Foi o que se pode chamar de uma epopeia. Cafeteira tinha um apelo político e pop­u­lar naquela eleição que nunca vi depois, nem mesmo na vitória de Jack­son Lago, em 2006 ou na de Flávio Dino, em 2014, viu-​se algo com­parável ao desejo de mudança exper­i­men­tado em 1994.

Quando, ao som da música de cam­panha “liber­dade é o respeito pelo dire­ito é a chama em nosso peito …” e Frank Matos anun­ci­ava a fala do can­didato, sentia-​se um mag­net­ismo envol­vendo a mul­ti­dão nos comí­cios.

O comitê, no Sitio Leal, era o local onde ficava todos os dias, man­tendo con­tato através de um tele­fone fixo com as lid­er­anças políti­cas do inte­rior e para nos infor­mamos do que vinha acon­te­cendo: as pressões políti­cas, os abu­sos, a reti­rada de pro­pa­ganda eleitoral por “falta de ener­gia” ou por “defeito téc­nico”.

Imag­inem que se ainda hoje o Maran­hão é um estado atrasado, há trinta anos era muito mais, com os “donos do poder” político man­dando de uma forma muito mais acin­tosa.

O poder era exer­cido com tanta força que mesmo antes de inventarem as chamadas “fakes News”, o Maran­hão teve uma fake news – e séria. Às vésperas do segundo turno das eleições, inventou-​se que Cafeteira teria man­dado matar um cidadão por nome de Reis Pacheco (já con­tei essa história em tex­tos ante­ri­ores. O fato é que só conseguiu-​se provar a farsa no dia do último pro­grama eleitoral, que não chegou a ser visto em todo estado pelos prob­le­mas já relata­dos acima, falta de ener­gia, emis­so­ras de rádio e tele­visão fora do ar e tudo mais.

Ape­sar de tudo é certo que Cafeteira venceu a eleição de 1994 – e não levou.

Um amigo que teste­munhou todos aque­les fatos certa vez desabafou: — Abdon, se eu fosse Cafeteira toda vez que o Sar­ney entrasse no plenário do Senado eu o chamaria de canalha.

Naquela época tanto Sar­ney quanto Cafeteira tin­ham ainda pela frente qua­tro anos de mandato como senador da República, o primeiro pelo Amapá e o segundo pelo Maran­hão.

A relação dos dois, exceto pelo “armistí­cio” ocor­rido em 1986 – na esteira da eleição Tancredo/​Sarney –, e que durou até 1990, sem­pre foi de antag­o­nismo, que vinha desde o iní­cio da car­reira política de ambos, nos idos dos anos cinquenta.

Os fatos da eleição de 1994, teria azedado de vez o que nunca foi bom.

Em 1998, Cafeteira dis­putou o gov­erno estad­ual nova­mente con­tra Roseana Sar­ney e dessa fez perdeu, ficando sem mandato.

Foi a segunda eleição em que tra­bal­hei com ele, dessa vez o nosso comitê foi no antigo palacete dos Archer, na praça Gonçalves Dias – com a estru­tura do Sitio Leal fun­cio­nando como apoio.

Cada um cuidando de seus afaz­eres e sendo eu alguém que não é dado a vis­i­tar ninguém ou a fre­quen­tar a “sociedade”, tive pouco con­tato com Cafeteira nos anos seguintes.

No final de 2006 – ou iní­cio de 2007 –, recebo uma lig­ação de Chico Branco, um amigo comum de ambos: — Abdon, o chefe quer falar con­tigo. Esta­mos pas­sando aí.

Não demorou muito lá estavam Cafeteira e Chico Branco na minha frente, recor­dando os bons momen­tos que pas­samos jun­tos nas duas cam­pan­has eleitorais.

O propósito da visita era que Cafeteira que­ria que assumisse a defesa dele numa ação eleitoral. Alguém entraram con­tra ele sob a ale­gação de que os gas­tos dele naquela cam­panha seriam incom­patíveis, ou seja, ele não teria “gas­tado” din­heiro sufi­ciente ao número de votos que teve.

Com o bom humor de sem­pre ele con­fi­den­ciou: — poxa, Abdon, nem isso que con­sta da prestação de con­tas foi efe­ti­va­mente gasto, fiz minha cam­panha toda casada com a cam­panha da branca.

Naquela eleição, 2006, tra­bal­hei com Ader­son Lago, no primeiro turno e, no segundo turno, com Jack­son Lago, fato público. Cafeteira fora eleito na chapa com Roseana Sar­ney.

Con­ver­samos sobre essas cir­cun­stân­cias, tendo ele dito que con­fi­ava em mim para sua defesa. Foi o que fize­mos. Hon­orários na base da amizade.

Tem­pos depois, processo ven­cido, acho que quase no fim do mandato mas já, cer­ta­mente, decor­rido mais da metade, recebo outra lig­ação de Chico Branco: — Abdon, está no escritório? Vou pas­sar aí com o chefe.

A prefeitura da cap­i­tal estava fazendo umas refor­mas nas rotatórias e removendo os famosos corações de con­creto car­ac­terís­ti­cos das obras que realizara quando foi gov­er­nador. Dire­ta­mente ou através de alguém ele tomou con­hec­i­mento e não gos­tou da ati­tude do gestor munic­i­pal que estava sub­sti­tuindo os ditos corações por alguns arran­jos artís­ti­cos.

Foi naquela visita que Cafeteira revelou-​me a enorme gratidão por Sar­ney depois de uma vida inteira de rus­gas e desavenças. Não foi por causa da eleição de 2006, que lhe pos­si­bil­i­tou voltar ao Senado numa artic­u­lação de Sar­ney.

A gratidão nos rev­e­lada foi pelo fato de Sar­ney ter ficado ao seu lado quando do inci­dente em que quase mor­reu.

Nas suas palavras, Sar­ney teria sido seu “anjo da guarda”: — meu filho, eu estava ali, naquela cama ou maca, nu, ape­nas enro­lado com um lençol e Sar­ney estava lá segu­rando minha mão.

Naquela altura da vida Cafeteira já com quase noventa anos – se já não pas­sava disso –, ainda assim ou talvez por conta disso, era capaz de emocionar-​se com um gesto de sol­i­dariedade e amizade de um eterno desafeto.

A rev­e­lação causou-​me uma sen­sação “difer­ente”.

Não con­heço o ex-​presidente Sar­ney, mas, pelo menos em duas cam­pan­has eleitorais, tive estre­ito con­tato com o ex-​governador Cafeteira, a ponto de saber que aquela gratidão ali rev­e­lada era fruto de uma sin­cera emoção.

Cafeteira deixou o escritório me dizendo que não tinha intenção de con­cor­rer a uma reeleição, e riu. Acho que foi a última vez que estive pes­soal­mente com ele.

Na con­versa com José Mar­tins e Gilberto Braga, o primeiro rev­elou ter ouvido do próprio Cafeteira, em uma reunião em Brasília, salvo engano, na casa de Roseana, declar­ação semel­hante.

Antes de saírem recor­damos out­ros cau­sos do ex-​governador.

Acabei por rev­e­lar que dia desses ia escr­ever sobre o mesmo depois de uma matéria que vi em um jor­nal ou site de que deter­mi­nado estado havia pin­tado todos os veícu­los que aten­dem as del­e­ga­cias das mul­heres de rosa, segundo os autores da ideia, para causar con­strang­i­mento nos cidadãos que come­tem vio­lên­cia domés­tica. Dizia que nada daquilo era novi­dade, pois Cafeteira quando assumiu em 1997, man­dou pin­tar foi toda a frota de veícu­los do estado de “amarelo-​abóbora” para evi­tar o mal uso de tais veícu­los.

Depois de tudo, devo dizer que foram exper­iên­cias mem­o­ráveis. Foi mágico ter vivido tudo aquilo.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

Cinquenta anos essa noite — lem­branças e saudade.

Escrito por Abdon Mar­inho

CINQUENTA ANOS ESSA NOITELEM­BRANÇAS E SAUDADE.

Por Abdon C. Marinho*.

VOLTEI ao Cen­tro Novo, minha aldeia orig­inária.

O aniver­sário de cinquenta anos da par­tida de minha mãe para o outro plano me trouxe até aqui. Uma busca para rea­v­i­var as memórias, sen­tir os mes­mos cheiros da infân­cia que tive é que foi mar­cada por acon­tec­i­men­tos tão trági­cos.

A velha estrada – prati­ca­mente um cam­inho –, lig­ando os municí­pios de Gov­er­nador Archer e Gonçalves Dias deu lugar a uma rodovia asfal­tada, larga e que cor­tou mor­ros e ser­ras, tor­nando a dis­tân­cia bem mais curta; cor­tou tam­bém os ter­reiros das casas onde colocá­va­mos as cadeiras para con­ver­sar ou fazer alguma ativi­dade cole­tiva, como debul­har milho ou fei­jão das roças que ficavam próx­i­mas onde cul­tivá­va­mos “de tudo”.

Pas­sando de carro com o meu sobrinho-​neto, vi que já são pou­cas as casas que não estão cer­cadas por muros ou mesmo cer­cas, con­fi­nando a estrada e os espaços por onde andá­va­mos e cor­ríamos (?) livre­mente.

Reduz­i­mos a veloci­dade ao pas­sar pelo o local onde ficava a velha casa onde nasci (e onde nasceu quase todos os meus irmãos pelas mãos de uma parteira da família, a esposa de tio Antônio, o mais velho dos irmãos de meu pai), nada restou.

Era uma casa sim­ples, muito sim­ples, mas, ao menos aos olhos de “eu, menino” pare­cia grande, com alguns quar­tos, pois a família já era grande e tinha ainda minha vó, que chamá­va­mos titia, que viu­vez foi morar conosco; alguns depósi­tos, onde papai guar­dava o arroz de sua pro­dução e o que com­prava “na folha” de out­ros pro­du­tores e que íamos bus­car em bur­ros dire­ta­mente nas roças; salas, de chão batido, uma, como sala de estar, onde ficava o oratório de mamãe, sua máquina de cos­tura; o rádio estilo jabuti, algu­mas “cadeiras de macar­rão”, tam­boretes, e, tam­bém, das min­has primeiras lem­branças, o espaço onde minha espal­hou sobre um encer­ado um colcha de veludo onde eu pode­ria ficar sem pegar “friagem”, depois de quase mor­rer em con­se­quên­cia da pólio; ainda, coz­inha com jirau para os fun­dos onde se man­tinha uma cri­ação de por­cos e gal­in­has soltas.

À dire­ita da casa, de quem olhasse da estrada, pon­tif­i­cava um flam­boy­ant, ao qual chamá­va­mos de “som­brião” – de tal árvore veio a ficção de que se sua altura ultra­pas­sasse a da cumeeira da casa, seus pro­pri­etários mor­re­riam, durante anos tal sen­ti­mento me acom­pan­hou; à esquerda, ficava o cur­ral onde bois e vacas eram recol­hi­dos à noite.

Na frente da casa um outro depósito para se guardar arroz, um pouco mais adi­ante a casa dos “Bizun­gas” e, mais adi­ante, a casa de tia Mal­fisia, a mais velha das irmãs de meu pai. Entre a casa dos “Bizun­gas” e a de tia Mal­fisia, ficava a casa da prima Ciça, sua filha. Já –a “con­heci” viúva, morando nesta casa com a outro filha, prima Salete.

Logo depois do cur­ral descia uma ladeira íngreme com des­tino ao Igarapé de Pedrin­has que usamos para “escor­re­gar” usando con­chas de palmeiras como car­rin­hos de rolimã.

Olhei no entorno, nada mais estava lá – e já não estava lá há muito tempo –, ape­nas o igarapé, já mal­tratado pelo tempo e a serra, onde brin­cava de “pas­sar­in­har”, ainda restam.

Mas, tudo, pelo menos para mim, já deixara de exi­s­tir há muito tempo.

Foi em doze de agosto de 1973, um domingo, o último dia de con­vivên­cia com a minha mãe. Ainda no começo da noite ela começou com as “dores do parto”. No quarto sim­ples, que lem­bro ter um baú, o cofre de meu pai, em uma cama sim­ples ela deitada con­ver­sava com meu tipo Praxedes, seu irmão, que fora casado com minha tia Zefa, irmã de meu pai, que fale­cera, ainda con­fiando na lem­brança, de parto, há menos de um ano. Enquanto con­ver­savam, eu fazia todo tipo de per­altice para chamar a atenção, hora cor­ria para um lado, hora cor­ria para o outro, hora subia na sua cama, hora pren­dia os ded­in­hos na dobradiça do cofre …

Com olhar com­pas­sivo – só muito depois fui com­preen­der isso –, ela tudo assis­tia e dizia ao tio Praxedes: — um dia meu filho será um doutor para cuidar dos seus irmãos.

Foi assim até a hora que alguém levou-​me para dormir no quarto que dividia com a “titia”. Talvez com a rede de Ana Cleide, a caçula das mul­heres ao lado, com dois anos e meio ao lado. Acordei no meio da noite com o silên­cio impen­etrável daque­les dias sendo cor­tado pelo clamor, por diver­sos clam­ores. Da minha rede, ouvia o vozes e muito choro, muito choro.

Não sei quanto tempo fiquei lá, só ouvindo choros e sem saber o que tinha acon­te­cido.

Muito tempo depois, quando o dia aman­hecia, para o que seria a nova real­i­dade: a cama da minha mãe fora posta na sala, já com uma mor­talha branca, ela repousava sobre a mesma, ser­ena, sem vida, no des­canso para a eternidade.

Na sala cheia de gente, uns olhando pela janela, out­ros mais dis­tantes, pelo ter­reiro, todos chorando.

Minha mãe mor­rera no parto. O caçula sobre­viveu – difer­ente do que tinha ocor­rido a tia Zefa, pouco tempo antes em que ambos mor­reram –, e já era cuidado por alguém, alguma tia, alguma viz­inha.

A comu­nidade inteira – que não era grande e toda for­mada por par­entes ou ami­gos que vieram jun­tos na “expe­dição” de José Cal­heiro de Mar­inho, meu avô –, estava na nossa casa a teste­munhar mais essa tragé­dia em família.

Éramos mais nove órfãos na família – a mais velha, emb­ora já casada com um primo e com fil­hos, tinha pouco mais de vinte anos, os demais for­mavam uma “escad­inha” que ia de zero anos até quase vinte –, a se somarem aos fil­hos de tia Zefa, de tia Nelci, irmãs de meu pai, tam­bém mor­tas e com fil­hos órfãos.

Nos cinquenta anos seguintes, espal­ha­dos por casas diver­sas e fecha­dos nos próprios mun­dos, cada um enfren­tou as próprias e angústias.

Muito emb­ora essas lem­branças ten­ham me acom­pan­hado por toda vida, cada detalhe daquele último dia e, prin­ci­pal­mente, as dores dos dias e anos seguintes, voltar ao Cen­tro Novo é rea­cen­der e tornar mais inten­sos os sen­ti­men­tos, saudades, tris­teza, solidão, angustias …

Desde então se pas­saram cinquenta anos. valeram a pena? Tudo, já dizia o poeta, vale a pena, se a alma não é pequena.

As dores fiz­eram parte do “cresci­mento”, fizeram-​nos mais fortes, mais resilientes … a aceitar os desafios da vida sem medo ou temor.

Cer­ta­mente que nen­hum que­ria pas­sar por tais sofri­men­tos, mas deles não tive­mos como fugir, foi a imposição da vida.

São cinquenta anos de lem­branças, são cinquenta anos de saudade.

Abdon C. Mar­inho é advogado.

Democ­ra­cia e arbítrio.

Escrito por Abdon Mar­inho

DEMOC­RA­CIA E ARBÍTRIO.

Por Abdon C. Marinho..

ALGUNS DIAS o pres­i­dente da República, sen­hor Luiz Iná­cio Lula da Silva, em entre­vista à uma emis­sora de rádio, inda­gado sobre a situ­ação política da Venezuela, cun­hou que democ­ra­cia seria um con­ceito rel­a­tivo, argu­men­tando que tal con­ceito pode­ria sofrer vari­ações, jus­ti­f­i­cando que a “democ­ra­cia venezue­lana” estaria assen­tada no fato de ter eleições per­iódi­cas – algo mais ou menos assim.

Com razão – e com os opor­tunis­mos de sem­pre –, houve uma “grita” geral, todos ten­tando tirar uma “casquinha’’ ou se aprovei­tando da “espinafrar” mais uma, entre tan­tas, tolices ditas pela excelên­cia.

Muito emb­ora em seu con­ceito primário, democ­ra­cia seja a forma de gov­erno car­ac­ter­i­zada pela sobera­nia pop­u­lar, sabe­mos que o sim­ples fato de haverem eleições “de vez em quando”, não torna essa ou aquela nação uma democ­ra­cia.

Um exem­plo, já citado tan­tas out­ras vezes, é o que se dava no Iraque nos anos em que foi gov­er­nado por Sad­dam Hus­sein, lem­bro que tratá­va­mos como fol­clore o resul­tado das eleições ocor­rida naquele país em que o gov­er­nante sagrava-​se vito­rioso com quase 100% (cem por cento) dos votos.

Situ­ação idên­tica aos “pleitos” ainda hoje ocor­ri­dos na Cor­eia do Norte – alguém duvida que uma eleição nesse país não ocorra com cem por cento dos sufrá­gios em favor do atual líder? Podemos dizer, porque houve uma “eleição” que tal país é uma democracia?

A chancela eleitoral de um povo escrav­izado de todas as for­mas por um gov­erno autoritário e autocrático está muito longe de garan­tir a existên­cia de uma democ­ra­cia.

E são diver­sos os exem­p­los de nações coman­dadas por regimes autoritários e autocráti­cos onde usam instru­men­tos democráti­cos per­ver­tidos para se diz­erem democ­ra­cias.

Em muitos casos a democ­ra­cia “vai se per­dendo” ao longo do cam­inho.

Às vezes se faz uma alternân­cia de poder – instru­mento próprio da democ­ra­cia –, e esse “novo” gov­erno eleito pelo povo em eleições livres passa a instru­men­talizar seu grupo político e mesmo o Estado para se man­terem indefinida­mente no poder, “matando” a democ­ra­cia.

Essa diva­gação é ape­nas para dizer que alguém “encher” a boca para falar de democ­ra­cia ao argu­mento de eleições reg­u­lares é ape­nas uma tolice.

O pre­sente texto, entre­tanto, não é para tratar – ou para faz­er­mos um “tratado” –, sobre democ­ra­cia, mas para dizer que emb­ora não sejam tênues os lim­ites entre democ­ra­cia e arbítrio muitas vezes “foca­dos” nos próprios inter­esses gov­er­nantes e lid­er­anças dos vários segui­men­tos da sociedade acabam por “mis­tu­rar” alhos com bugal­hos.

A minha per­cepção é que o Brasil, nos últi­mos anos “cam­in­hou” para a imple­men­tação de um régime autoritário, talvez tendo como mod­elo o régime hún­garo, turco ou russo ou mesmo uma ver­tente do que se encon­tra em curso em Israel ou na Polônia.

Desde 2019 que escrevo sobre isso.

Não tenho qual­quer dúvida, tam­bém, que os gov­er­nantes com seus apoiadores, muitos deles, inclu­sive, das Forças Armadas e das polí­cias mil­itares bus­caram via­bi­lizar um golpe de estado que os man­tivessem no poder quando der­ro­ta­dos nas urnas em segundo turno.

Assim como não tenho dúvi­das de que em 8 de janeiro tive­mos uma ten­ta­tiva de golpe insti­tu­cional, incen­ti­vada, patroci­nada e apoiada senão pelo próprio ex-​presidente, mas por pes­soas muito próx­i­mas a ele.

A ten­ta­tiva de golpe insti­tu­cional – que mais assemelhou-​se a uma cam­panha do exército de Bran­ca­le­one, com tiaz­in­has do What­sApp fan­tasi­adas de verde amarelo, muitos out­ros ali­ci­a­dos entre os desem­pre­ga­dos “vesti­dos” de patri­o­tas vin­dos dos qua­tro can­tos do país –, fra­cas­sada, como não pode­ria deixar de sê-​la, fun­ciona como um divi­sor de águas com a democ­ra­cia for­mal se impondo à bisonha inten­tona.

Acred­ito e sus­tento que todos os respon­sáveis pelo ato (desde os inspi­radores, finan­ciadores e execu­tores), como já vem sendo pre­cisam, com o dev­ido processo legal, sofr­erem a repri­menda da lei, até como forma de pre­venir futuras “recaí­das”.

Pois bem, dito isso, é impor­tante prin­ci­pal­mente para as autori­dades dos con­sti­tuí­dos que não se afastem dos lim­ites da lei.

É dizer, à guisa de se diz­erem “defen­sores da democ­ra­cia” não podem, eles próprios e por moti­vações pes­soais come­terem arbi­trariedades.

Como vimos nas lin­has ante­ri­ores é muito fácil aos dete­tores do poder diz­erem que estão “defend­endo a democ­ra­cia”, “defend­endo a Con­sti­tu­ição” ou que estão “jogando den­tro das qua­tro lin­has”.

São dis­cur­sos fáceis mas que estão dis­tantes das práti­cas do dia a dia.

Não passa de abuso que uma querela pes­soal ou uma dis­cussão mesmo que moti­vações políti­cas ou com agressão jus­ti­fique a mobi­liza­ção da Polí­cia Fed­eral para se fazer busca e apreen­são, con­fis­car celu­lares, com­puta­dores ou coisas do gênero.

Os “defen­sores da democ­ra­cia” que se pode até recon­hecer terem cumprido o seu papel, não podem sob a jus­ti­fica­tiva eterna de estarem defend­endo a democ­ra­cia, come­terem arbi­trariedades, repete-​se.

A história está rec­heada de exem­p­los de tais práti­cas: os deten­tores do poder “elegem” os inimi­gos do “estado”, muitas das vezes dizem que são “inimi­gos do povo” e pas­sam a dar vazão a toda sorte de perseguição e de sadismo.

Quan­tas inocentes não viraram cin­zas nas fogueiras sob o argu­mento de que seriam “bruxas”? Daí advém o termo “caça às bruxas”. Quan­tos crimes não foram imputa­dos aos judeus ao redor do mundo para que os nazis­tas imple­men­tassem a sua “solução final”, a diz­imação pura e sim­ples de mil­hões de seres humanos pelo “crime” de serem judeus? Assim como fiz­eram com os homos­sex­u­ais, os povos ciganos e tan­tos out­ros. Diz­ima­dos, tor­tu­ra­dos, mor­tos, lev­a­dos à lou­cura por serem quem eram.

Ainda hoje é assim em diver­sos países do mundo – aliás, de tem­pos em tem­pos ressurgem esbir­ros autoritários querendo impor seus ideários aos demais –, Venezuela, Cuba, Nicarágua, Rús­sia só para citar alguns que se auto­de­nom­i­nam “democ­ra­cias”, ado­tam mod­e­los de “paz de cemitérios” ou seja, elim­i­nam a pos­si­bil­i­dade dos adver­sários, alça­dos à condição de “inimi­gos do povo” de chegarem ao poder.

Em todos os tempo e em todos os lugares a ten­tação autoritária ronda os “donos do poder” fazendo-​os acharem que ape­nas eles (quando muito seu grupo) são capazes de con­duzirem os des­ti­nos da nações.

É dessa “ten­tação” autoritária que o Brasil pre­cisa “fugir”, não acei­tando que falso dis­curso de “defesa da democ­ra­cia” seja o veneno que vai matá-​la.

Dizia Lorde Acton que «o poder tende a cor­romper, e o poder abso­luto cor­rompe abso­lu­ta­mente, de modo que os grandes homens são quase sem­pre homens maus”.

Em tal pen­sa­mento dizia que o processo histórico desenvolve-​se ori­en­tado pela liber­dade humana ou livre-​arbítrio, no sen­tido de uma liber­dade cada vez maior.

O grande prob­lema do Brasil da atu­al­i­dade é que mesmo os ver­dadeiros democ­ratas não perce­beram – ou não quis­eram perce­ber –, que o seu silên­cio aos des­man­dos, ven­ham eles de quais­quer dos poderes da República ou dos seus inte­grantes, é o colchão mole onde repousam os ideários autoritários e, assim, como a história já está cansada de mostrar, só perce­beram quando forem eles próprios as víti­mas dos dita­dores de plan­tão.

A democ­ra­cia, difer­ente do muitos podem achar, não é um valor rel­a­tivo. Acred­i­tar ou defender isso é fler­tar com o arbítrio.

Abdon C. Mar­inho é advogado.