AbdonMarinho - A morte do livreiro.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Quinta-​feira, 21 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A morte do livreiro.

A morte do livreiro**.

Por Abdon C. Marinho*.

RAIMUNDO NETO, sócio há mais de um quarto de século e amigo há mais de trinta anos, no fim da tarde de segunda-​feira, 15 de janeiro, sem qual­quer comen­tário adi­cional, me enviou um “card”, uma espé­cie de bil­hete da mod­ernidade. Ele trazia o informe da “pas­sagem” do amigo Osmar Neres para o outro plano.

Aos ami­gos que estavam na sala no momento em que recebi a “noti­fi­cação fúne­bre” e aos fun­cionários (acho que só a secretária Rosân­gela Sales ainda estava pre­sente) repeti diver­sas vezes: — o Osmar par­tiu; o Osmar mor­reu …

Era como se eu mesmo quisesse convencer-​me das palavras que saiam da minha boca.

O fato ocor­reu no próprio dia 15 e aquela hora, pela pro­gra­mação con­tida no “card” já estava acon­te­cendo o depósito do corpo no der­radeiro local de des­canso.

Não tive a opor­tu­nidade de ir ao velório ou enterro dar os pêsames aos famil­iares ou mesmo um abraço fraterno.

No iní­cio da noite, quando voltava para casa em um carro de aplica­tivo já que o sen­hor Afrânio Mangueira está em gozo de férias, pen­sava nos momen­tos que pas­sei com o saudoso amigo, nos­sas con­ver­sas e “nego­ci­ações” em torno de livros.

No dia seguinte, antes de pegar a estrada para via­jar para o inte­rior, encon­trei com o sócio Raimundo Neto que disse que tão logo soube da notí­cia do pas­sa­mento de Osmar só lem­brou de mim.

Durante a viagem para o oeste do estado, região do Gurupi, emb­ora entretido pela con­versa dos cole­gas ou pela trilha sonora que tocava no carro, enquanto con­tem­plava o vastidão da estrada, aqui e ali, pon­tu­ada por uma cruz ou um marco qual­quer, lem­brava da perda do amigo.

Con­heci Osmar ainda no primeiro ou segundo ano de tra­balho na Assem­bleia Leg­isla­tiva, 19911992.

Ele pas­sara por lá para vender livros para o dep­utado Juarez Medeiros. Como o dep­utado não estava acabamos con­ver­sando com ele me con­ven­cendo a com­prar “Os Ser­mões”, do padre Antônio Vieira, finís­sima coleção em papel Bíblia, da Edi­tora Nova Aguilar. Foi a primeira grande obra adquirida com o suor do meu tra­balho.

Acho que gastei mais da metade do salário e ainda ficaram os parce­las a perder de vista.

Assim, quase todos os meses Osmar apare­cia pelo gabi­nete para rece­ber uma parcela de um livro ou coleção ou para vender mais livros.

Foi com essa “estraté­gia” que me vendeu inúmeros livros.

Durante mais de trinta anos, quase que todos os meses, Osmar me “vis­i­tava”. Na Assem­bleia, na Col­iseu, nos comitês políti­cos, no escritório do edifí­cio Los Ange­les e, nos últi­mos vinte anos, no escritório da Rua dos Pin­heiros.

Nesse tempo todo acabou ficando amigo dos cole­gas sócios e das pes­soas que tra­bal­ham comigo há mais uma ou duas décadas.

As meni­nas, prin­ci­pal­mente elas, já infor­mavam pelo inter­fone: — o seu Osmar está aqui.

Ao que eu respon­dia: — já diga ele que não quero com­prar livro algum, que o din­heiro acabou, mas diga ele para entrar.

Chegava e dizia: – guardei para você, por exem­plo, “Obras de Luis de Camões”, tra­balho finís­simo de Lello & Irmãos — Edi­tores, direto da Rua das Irmãs Carmeli­tas, Porto, Por­tu­gal.

Fazia assim sem­pre que que­ria me fazer uma venda.

Como amante dos livros não resis­tia. Brigá­va­mos pelos preços, eu querendo pagar menos e ele argu­men­tando: — Abdon, veja que obra mag­ní­fica, que papel fino … esse papel Bíblia nunca será con­sum­ido por traças ou cupins. É difer­ente de uma obra em papel comum. E o con­teúdo, nem se fala.

Cada livro uma “briga”, uma conta nova.

E vieram as obras de Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Charles Baude­laire, Oscar Wilde, Mário de Sá Carneiro, Fer­nando Pes­soa, Olavo Bilac, José Lins do Rêgo, Vini­cius de Moraes, Eça de Queiroz … e tan­tos out­ros. Brasileiros, por­tugue­ses, france­ses, rus­sos, ingle­ses … pelas mãos de Osmar esses gênios da lit­er­atura dividi­ram espaço em minha estante e mente.

Todas essas obras em papel bíblia e invari­avel­mente das edi­toras Nova Aguilar e Lello & Irmãos Editores.

Em 2015, uma tragé­dia sem víti­mas fatais me atingiu: um incên­dio domés­tico levou parte dos meus livros raros. Como ia adquirindo-​os no for­mato nar­rado acima ao longo (a época) de um quarto de século, não tinha noção do que havia per­dido ou dos val­ores das obras.

Osmar bus­cou nos seus reg­istros e passou-​me a relação das obras e os val­ores das mes­mas para que pudesse jun­tar na ação judi­cial de ressarci­mento.

Infe­liz­mente, nesse tipo de acon­tec­i­mento, mesmo uma obra nova não é capaz de preencher o vazio deix­ado pela história do que se perdeu. Aquele livro, aquele disco, tem uma história que vai muito além do valor de tê-​lo adquirido. São tam­bém os momen­tos que se dedi­cou à leitura ou ao ouvi-​lo, as histórias daque­les momen­tos.

Em 1991, quando adquiri a primeira coleção de os ser­mões (adquiri duas) acon­te­cia isso ou aquilo, estava bem, pen­sava assim ou assado. Quando “chegou” aquele disco o ouvi pela primeira vez na pre­sença de fulano ou sicrano, falá­va­mos sobre isso …

Quando “perdemos” essas coisas é como se perdêsse­mos, tam­bém, parte da nossa história.

O lev­an­ta­mento das obras per­di­das (que con­seguimos lem­brar, alcançaram quase 100 mil, se cor­ri­dos os val­ores) mas o valor afe­tivo era incal­culável.

Sabedor disso e do quanto ficara abal­ado com a perda de parte sig­ni­fica­tiva da bib­lioteca, Osmar foi a minha casa e levou con­sigo tudo que con­seguimos tirar do incên­dio. Meses depois me devolvia pelo menos uma parte dos livros que con­sid­erá­va­mos não ter sal­vação. Soz­inho, em sua livraria, ele fiz­era o tra­balho de “recon­strução” dos meus livros, tro­cou as capas, cos­turou partes, cor­tou fol­has chamus­cadas pelo fogo … e tudo mais – o tra­balho ficou tão bom que pedi a ele para fazer a encader­nação de um livro que gan­hara do extinto jor­nal­ista Wal­ter Rodrigues.

As obras recu­per­adas por Osmar trazem con­sigo as mar­cas de uma tragé­dia mas são, tam­bém, a com­pro­vação de uma história de amizade e de amor aos livros.

Quando findou a pan­demia liguei para saber como estava e para convidá-​lo para bater um papo, já infor­mando que não com­praria nada dessa vez.

Osmar foi o “estranho” que fez parte da minha … da nossa vida …

Em meio a tan­tos assun­tos que pode­ria escr­ever hoje – ou nesse fim de sem­ana –, sobre política, equívo­cos, baixarias, etc., me pare­ceu mais ade­quado e inspi­rador ren­der hom­e­na­gens a um amigo muito querido.

Ao escr­ever sobre A morte do livreiro – os mais aten­tos devem ter perce­bido –, faço como a recor­dar outra obra que ele me vendeu e que, provavel­mente, perdeu-​se no incên­dio, “A morte do caixeiro-​viajante”, de Arthur Miller, autor amer­i­cano.

Osmar foi meu “livreiro-​viajante” durante mais de três décadas foi a todos os lugares onde tra­bal­hei me vender livros à vista ou fiado em conta que teve data de aber­tura mas nunca de encer­ra­mento, como fazem mesmo os caixeiros-​viajantes pelo Brasil a fora.

Quando, no dia seguinte à morte do livreiro, falá­va­mos sobre o acon­tec­i­mento o sócio Raimundo Neto, acos­tu­mado as nos­sas “brigas” em torno dos livros, per­gun­tou se no final de tudo quem ficara devendo a quem.

Apu­rando na conta-​corrente da vida, cer­ta­mente fiquei eu deve­dor de Osmar Neres, não finan­ceira­mente (acredito)x, mas por tudo que ele me trouxe de con­hec­i­mento e de boas lem­branças.

Enquanto escrevo esse texto, e sou “assis­tido” por tan­tos autores que ele me trouxe, só aumenta a minha certeza nisso.

*Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

**A morte do livreiro é uma sin­gela hom­e­nagem ao amigo Osmar de Oliveira Neres (23÷12÷194815/​01/​2024).

Comen­tários

0 #1 Osmar Neres Junior 12-​04-​2024 22:47
Dr Abdon,
Somente hoje, 12/​04/​2024, fazendo uma busca na inter­net tomei con­hec­i­mento da sua pub­li­cação (https://​www​.abdon​mar​inho​.com/​i​n​d​e​x​.​p​h​p​?​s​t​a​r​t​=​8) e que diver­sas lem­branças me vieram a mente, lem­bro muito do meu pai falando do Dr Abdon Mar­inho, e pelo apreço que tinha por você.
Deixo aqui meu agradec­i­mento pela lem­brança da pas­sagem do meu pai.
Tam­bém sou seu colega de profis­são e amante dos livros, her­ança deix­ado pelo meu gen­i­tor.
Há alguns dias estive no depósito de livros do meu pai e vi a quan­ti­dade de livros em papel bíblia (esses que o sr adquiriu em diver­sas obras fan­tás­ti­cas) que nunca se estragam e do valor ecô­nomico que têm. Lem­brei de como ele amava o que fazia, da forma em que ia em cada um dos clientes que ao pas­sar do tempo se tor­navam ami­gos.
Pois bem, fiquei muito feliz de ler seu relato.
Só tenho a agrade­cer.
Muito obri­gado!
Cor­dial­mente,

Osmar de Oliveira Neres Júnior
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