DEFESA DA DEMOCRACIA, ABUSO DE PODER E GOLPE.
Por Abdon C. Marinho*.
DESDE que, como diziam os antigos, “me entendo por gente” tenho preocupações com a democracia e o “arsenal” de ferramentas que faz existir: liberdade de expressão e de imprensa; direitos humanos; respeito às minorias e a diversidade; liberdade religiosa; igualdade entre todos, etcetera, etcetera.
Assim, nos limites e dentro das minhas limitações, sempre participei da luta em defesa de tais princípios. Foi assim pelas Diretas Já, na torcida pela vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, na luta pela constituinte, pelo impeachment de Collor, e tantas outras.
Com essa consciência social, quando me formei em direito e depois me tornei advogado coloquei o meu ministério à disposição de tais causas, perdi as contas das causas e pessoas que defendi apenas por acreditar que estava fazendo o certo.
Algumas vezes, na ausência de pessoas com coragem para entrar com ações que achava necessárias fui, eu próprio, advogado e parte.
Ainda hoje faço isso. É como se fosse uma retribuição à sociedade por tudo que ela me deu.
Com o passamento do amigo e jornalista Walter Rodrigues, em 2010, adicionei às minhas responsabilidades mas esse “encargo”: escrever sobre os temas que são postos para a sociedade e que a mesma, já entorpecida pelas próprias necessidades ou pela “enxurrada” de propaganda a que é submetida não tem como formar o melhor juízo sobre o que efetivamente se passa.
Como cidadão, tenho feito isso nos últimos treze anos. Muitas das vezes, também, como tantos, cometendo erros de avaliação, mas sem nunca perder o foco e a razão daquilo que nos move.
Outro dia um amigo muito querido passou pelo escritório para vender livros, Gutemberg Braga, e no meio as conversas que travávamos ele perguntou como eu escrevia e qual o tempo que levava para concluir um “textão”.
Respondi-lhe: — olha, Gutemberg, no dia que vou escrever sento na minha poltrona ou deito na rede e começo a escrever. Leva cerca de duas horas para concluir o texto.
Ele ficou admirado e disse que eu tenho um dom, pois consegue visualizar, em imagens, aquilo que escrevi.
Na verdade, não se trata de um dom. A facilidade de escrever é decorrente, unicamente, do fato de defender aquilo que coloco nos textos a minha vida toda. São experiências que vi, são lembranças que fazem parte da minha vida.
A defesa da democracia, os abusos dos poderosos e suas eternas tentativas de se encastelarem no poder para sempre são temas recorrentes nas nossas crônicas.
É assim porque desde que o mundo é mundo e eu não me chamo Raimundo (para não perder a piada), que vejo as pessoas dizerem defender a democracia.
Essas mesmas pessoas ao alcançarem o poder passam a abusar dele fragilizando a democracia que “juraram” defender na tentativa de se perpetuarem no poder, ou seja, de golpearem a democracia.
Na atual quadra da política nacional vivemos bem isso, arrisco dizer que é um laboratório vivo do que penso e do que sempre escrevi.
Vejamos:
Qual a principal argumentação daqueles que defendiam a eleição do atual governo em detrimento do governo anterior?
Que o ex-presidente e seu núcleo mais próximo – e mesmo todos aqueles que estavam com ele e o apoiando –, representavam uma ameaça à democracia brasileira.
Essa argumentação não era (ou é) falaciosa. Desde que assumiram o governo, em janeiro de 2019, que governo anterior se empenhou em esgarçar as relações com os demais poderes, ameaçar, bravatear e tudo mais que tinha direito – e o que não tinha, também –, conforme os episódios que estão aí, à disposição de todos para pesquisar.
Acho que ainda nem tinham assumido quando um filho do presidente disse que bastaria um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal — STF.
Ao longo dos quatro, com uma pandemia no meio e alguns Sete de Setembros para servir de mobilização dos “patriotas” foi o que se viu e que culminou com a ocupação das frentes dos quartéis nos dias que se seguiram à derrota nas urnas e, por derradeiro, na “intentona” golpista do 8 de janeiro.
Sim, houve uma mobilização golpista no pós eleições no Brasil, sendo os atos do início de janeiro a derradeira tentativa de derrubar o governo eleito e colocar no seu lugar as Forças Armadas ou mesmo o presidente que foi derrotado nas urnas e “fugiu” para os Estados Unidos na antevéspera do dia em que faria a transmissão de cargo.
Esses são os fatos, o governo pretérito já não representa mais uma ameaça a democracia brasileira.
Derrotados nas urnas e frustradas as diversas tentativas de convulsionar o país em busca de uma “solução militar”, é quase certo que muitos deles amarguem alguns anos de cadeia – isso se não aparecer uma “emenda” camarada para anistia-los.
Vencidas as tentativas de golpes, faz-se necessário a redobrada vigilância sobre os atuais donatários do poder.
É dizer, do ponto de vista da democracia, o passado só nos serve como bússola, a verdadeira preocupação deve ser sempre com o presente.
Isso porque, como dizia o político fluminense Carlos Lacerda: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.
A democracia brasileira – e é assim em outros países –, é frágil, com todos que se “adonam” do poder buscando meios para se perpetuarem.
Veja que até mesmo a democracia americana, que tínhamos como parâmetro, sofreu uma tentativa de golpe em 6 de janeiro de 2020.
Uma estratégia de todos aqueles que possuem ideários autocráticos é tentarem construir “suas novas ditaduras” sobre os escombros dos regimes que sucedem, sejam eles totalitários, autocráticos ou que tenham sofrido tentativas de golpes, como no caso do Brasil.
Vamos citar só os exemplos mais conhecidos. Foi assim com comunistas de Stálin, na constituição da União Soviética, em 1917; foi assim com os barbudos, tendo à frente Fidel Castro, quando desceram a Sierra Maestra e colocaram para correr o régime de Fulgêncio Batista, em 1959; foi assim na Venezuela quando Hugo Chávez “conquistou” o poder, em 1998.
Em todos esses países – em tantos outros –, os novos “donos” do poder iniciaram por constituir seus regimes totalitários se dizendo combater os malefícios dos regimes anteriores.
Quando suas populações se deram conta, estavam sob a égide de regimes até mais totalitários do que aqueles que disseram combater.
Em “A revolução dos bichos”, George Orwell, faz uma crítica do que se deu na tomada de poder pelos bolcheviques.
Mas essa estratégia é “manjada”, um conhecimento básico de história faz com que se perceba o que ocorre nessas “mudanças” de régime.
No Brasil vivendo algo semelhante. Tudo agora é “defesa da democracia”. Sob esse guarda-chuva, começa-se por praticar atos bem mais graves do que os males que supostamente dizem querer combater.
Como os porcos de “A revolução dos bichos”, alguns dos líderes atuais dizem que esse ou aquele andou espalhando mentiras, chamadas fakes news, e, por isso, precisa ser investigado, processado e punido, de preferência que seja jogado aos cães que protegem os “porcos líderes” para ser devorado.
Um caso que bem se adequa ao que digo é notícia de que abriram (ou iriam abrir) uma investigação contra o jornalista Alexandre Garcia, determinação, pelo que soube, do próprio ministro da justiça.
Pois bem, um outro jornalista, Linhares Júnior, me encaminhou o comentário de Garcia que teria motivado a “controvérsia” – que também atende pelo nome de surto autoritário.
Assisti ao vídeo, uma, duas, três vezes e não identifiquei qualquer coisa capaz de justificar qualquer reprimenda legal em uma democracia – pois nas ditaduras tudo pode acontecer.
Até pensei que o jornalista tinha se equivocado.
Só ao lê a coluna do jornalista Fernando Schüler, na Revista Veja, fui saber que o processo inquisitório contra García seria porque o mesmo teria dito que “aparentemente abriram as comportas” e pediu uma “investigação” sobre as enchentes no Sul do país.
Na mesma coluna tomei conhecimento que o Brasil agora tem uma “procuradoria em defesa da democracia”, que deve ter a missão institucional de ir atrás dos “inimigos da democracia”.
Meus amigos recomendo a leitura imediata de “A revolução dos bichos” e tentem fazer um paralelo com que vivemos.
Se as minhas lembranças não me traem, na obra de Orwell os bichos, liderados pelos porcos, que tomaram o poder na granja, criaram um departamento com essa mesma finalidade.
É basicamente a mesma coisa que existe em todos os regimes totalitários e autocráticos no mundo: do Irã à Rússia, passando por Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, Arábia Saudita, etc., uma estrutura estatal encarregada de proteger os “donos do poder” dos seus “liderados”.
Quer me parecer que o Brasil da atualidade tem por objetivo nos transportar para uma obra de ficção dos anos quarenta.
Como em “A revolução dos bichos” se tinha os sete mandamentos do animalismo é possível que tenhamos nossos próprios “mandamentos”. O primeiro deve ser: “Qualquer ser humano que “pense” é inimigo”.
O meu lamento principal é que nem conseguem ser originais, ficam copiando obras de ficção e tudo que é mal costume nas ditaduras ao redor do mundo.
Abdon C. Marinho é advogado.