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Defesa da democ­ra­cia, abuso de poder e golpe.

Escrito por Abdon Mar­inho


DEFESA DA DEMOC­RA­CIA, ABUSO DE PODER E GOLPE.

Por Abdon C. Marinho*.

DESDE que, como diziam os anti­gos, “me entendo por gente” tenho pre­ocu­pações com a democ­ra­cia e o “arse­nal” de fer­ra­men­tas que faz exi­s­tir: liber­dade de expressão e de imprensa; dire­itos humanos; respeito às mino­rias e a diver­si­dade; liber­dade reli­giosa; igual­dade entre todos, etcetera, etcetera.

Assim, nos lim­ites e den­tro das min­has lim­i­tações, sem­pre par­ticipei da luta em defesa de tais princí­pios. Foi assim pelas Dire­tas Já, na tor­cida pela vitória de Tan­credo Neves no Colé­gio Eleitoral, na luta pela con­sti­tu­inte, pelo impeach­ment de Col­lor, e tan­tas outras.

Com essa con­sciên­cia social, quando me formei em dire­ito e depois me tornei advo­gado colo­quei o meu min­istério à dis­posição de tais causas, perdi as con­tas das causas e pes­soas que defendi ape­nas por acred­i­tar que estava fazendo o certo.

Algu­mas vezes, na ausên­cia de pes­soas com cor­agem para entrar com ações que achava necessárias fui, eu próprio, advo­gado e parte.

Ainda hoje faço isso. É como se fosse uma ret­ribuição à sociedade por tudo que ela me deu.

Com o pas­sa­mento do amigo e jor­nal­ista Wal­ter Rodrigues, em 2010, adi­cionei às min­has respon­s­abil­i­dades mas esse “encargo”: escr­ever sobre os temas que são pos­tos para a sociedade e que a mesma, já entor­pecida pelas próprias neces­si­dades ou pela “enx­ur­rada” de pro­pa­ganda a que é sub­metida não tem como for­mar o mel­hor juízo sobre o que efe­ti­va­mente se passa.

Como cidadão, tenho feito isso nos últi­mos treze anos. Muitas das vezes, tam­bém, como tan­tos, come­tendo erros de avali­ação, mas sem nunca perder o foco e a razão daquilo que nos move.

Outro dia um amigo muito querido pas­sou pelo escritório para vender livros, Gutem­berg Braga, e no meio as con­ver­sas que travá­va­mos ele per­gun­tou como eu escrevia e qual o tempo que lev­ava para con­cluir um “tex­tão”.

Respondi-​lhe: — olha, Gutem­berg, no dia que vou escr­ever sento na minha poltrona ou deito na rede e começo a escr­ever. Leva cerca de duas horas para con­cluir o texto.

Ele ficou admi­rado e disse que eu tenho um dom, pois con­segue visu­alizar, em ima­gens, aquilo que escrevi.

Na ver­dade, não se trata de um dom. A facil­i­dade de escr­ever é decor­rente, uni­ca­mente, do fato de defender aquilo que coloco nos tex­tos a minha vida toda. São exper­iên­cias que vi, são lem­branças que fazem parte da minha vida.

A defesa da democ­ra­cia, os abu­sos dos poderosos e suas eter­nas ten­ta­ti­vas de se encaste­larem no poder para sem­pre são temas recor­rentes nas nos­sas crôni­cas.

É assim porque desde que o mundo é mundo e eu não me chamo Raimundo (para não perder a piada), que vejo as pes­soas diz­erem defender a democ­ra­cia.

Essas mes­mas pes­soas ao alcançarem o poder pas­sam a abusar dele frag­ilizando a democ­ra­cia que “juraram” defender na ten­ta­tiva de se per­pet­u­arem no poder, ou seja, de gol­pearem a democ­ra­cia.

Na atual quadra da política nacional vive­mos bem isso, arrisco dizer que é um lab­o­ratório vivo do que penso e do que sem­pre escrevi.

Vejamos:

Qual a prin­ci­pal argu­men­tação daque­les que defendiam a eleição do atual gov­erno em detri­mento do gov­erno ante­rior?

Que o ex-​presidente e seu núcleo mais próx­imo – e mesmo todos aque­les que estavam com ele e o apoiando –, rep­re­sen­tavam uma ameaça à democ­ra­cia brasileira.

Essa argu­men­tação não era (ou é) fala­ciosa. Desde que assumi­ram o gov­erno, em janeiro de 2019, que gov­erno ante­rior se empen­hou em esgarçar as relações com os demais poderes, ameaçar, bra­vatear e tudo mais que tinha dire­ito – e o que não tinha, tam­bém –, con­forme os episó­dios que estão aí, à dis­posição de todos para pesquisar.

Acho que ainda nem tin­ham assum­ido quando um filho do pres­i­dente disse que bas­taria um cabo e um sol­dado para fechar o Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF.

Ao longo dos qua­tro, com uma pan­demia no meio e alguns Sete de Setem­bros para servir de mobi­liza­ção dos “patri­o­tas” foi o que se viu e que cul­mi­nou com a ocu­pação das frentes dos quar­téis nos dias que se seguiram à der­rota nas urnas e, por der­radeiro, na “inten­tona” golpista do 8 de janeiro.

Sim, houve uma mobi­liza­ção golpista no pós eleições no Brasil, sendo os atos do iní­cio de janeiro a der­radeira ten­ta­tiva de der­rubar o gov­erno eleito e colo­car no seu lugar as Forças Armadas ou mesmo o pres­i­dente que foi der­ro­tado nas urnas e “fugiu” para os Esta­dos Unidos na antevéspera do dia em que faria a trans­mis­são de cargo.

Esses são os fatos, o gov­erno pretérito já não rep­re­senta mais uma ameaça a democ­ra­cia brasileira.

Der­ro­ta­dos nas urnas e frustradas as diver­sas ten­ta­ti­vas de con­vul­sionar o país em busca de uma “solução mil­i­tar”, é quase certo que muitos deles amar­guem alguns anos de cadeia – isso se não apare­cer uma “emenda” cama­rada para anistia-​los.

Ven­ci­das as ten­ta­ti­vas de golpes, faz-​se necessário a redo­brada vig­ilân­cia sobre os atu­ais donatários do poder.

É dizer, do ponto de vista da democ­ra­cia, o pas­sado só nos serve como bús­sola, a ver­dadeira pre­ocu­pação deve ser sem­pre com o pre­sente.

Isso porque, como dizia o político flu­mi­nense Car­los Lac­erda: “o preço da liber­dade é a eterna vigilância”.

A democ­ra­cia brasileira – e é assim em out­ros países –, é frágil, com todos que se “adonam” do poder bus­cando meios para se per­pet­u­arem.

Veja que até mesmo a democ­ra­cia amer­i­cana, que tín­hamos como parâmetro, sofreu uma ten­ta­tiva de golpe em 6 de janeiro de 2020.

Uma estraté­gia de todos aque­les que pos­suem ideários autocráti­cos é tentarem con­struir “suas novas ditaduras” sobre os escom­bros dos regimes que suce­dem, sejam eles total­itários, autocráti­cos ou que ten­ham sofrido ten­ta­ti­vas de golpes, como no caso do Brasil.

Vamos citar só os exem­p­los mais con­heci­dos. Foi assim com comu­nistas de Stálin, na con­sti­tu­ição da União Soviética, em 1917; foi assim com os bar­bu­dos, tendo à frente Fidel Cas­tro, quando desce­ram a Sierra Maes­tra e colo­caram para cor­rer o régime de Ful­gên­cio Batista, em 1959; foi assim na Venezuela quando Hugo Chávez “con­quis­tou” o poder, em 1998.

Em todos esses países – em tan­tos out­ros –, os novos “donos” do poder ini­cia­ram por con­sti­tuir seus regimes total­itários se dizendo com­bater os male­fí­cios dos regimes ante­ri­ores.

Quando suas pop­u­lações se deram conta, estavam sob a égide de regimes até mais total­itários do que aque­les que dis­seram com­bater.

Em “A rev­olução dos bichos”, George Orwell, faz uma crítica do que se deu na tomada de poder pelos bolcheviques.

Mas essa estraté­gia é “man­jada”, um con­hec­i­mento básico de história faz com que se perceba o que ocorre nes­sas “mudanças” de régime.

No Brasil vivendo algo semel­hante. Tudo agora é “defesa da democ­ra­cia”. Sob esse guarda-​chuva, começa-​se por praticar atos bem mais graves do que os males que suposta­mente dizem querer com­bater.

Como os por­cos de “A rev­olução dos bichos”, alguns dos líderes atu­ais dizem que esse ou aquele andou espal­hando men­ti­ras, chamadas fakes news, e, por isso, pre­cisa ser inves­ti­gado, proces­sado e punido, de prefer­ên­cia que seja jogado aos cães que pro­tegem os “por­cos líderes” para ser devo­rado.

Um caso que bem se ade­qua ao que digo é notí­cia de que abri­ram (ou iriam abrir) uma inves­ti­gação con­tra o jor­nal­ista Alexan­dre Gar­cia, deter­mi­nação, pelo que soube, do próprio min­istro da justiça.

Pois bem, um outro jor­nal­ista, Lin­hares Júnior, me encam­in­hou o comen­tário de Gar­cia que teria moti­vado a “con­tro­vér­sia” – que tam­bém atende pelo nome de surto autoritário.

Assisti ao vídeo, uma, duas, três vezes e não iden­ti­fiquei qual­quer coisa capaz de jus­ti­ficar qual­quer repri­menda legal em uma democ­ra­cia – pois nas ditaduras tudo pode acon­te­cer.

Até pen­sei que o jor­nal­ista tinha se equiv­o­cado.

Só ao lê a col­una do jor­nal­ista Fer­nando Schüler, na Revista Veja, fui saber que o processo inquisitório con­tra Gar­cía seria porque o mesmo teria dito que “aparente­mente abri­ram as com­por­tas” e pediu uma “inves­ti­gação” sobre as enchentes no Sul do país.

Na mesma col­una tomei con­hec­i­mento que o Brasil agora tem uma “procu­rado­ria em defesa da democ­ra­cia”, que deve ter a mis­são insti­tu­cional de ir atrás dos “inimi­gos da democ­ra­cia”.

Meus ami­gos recomendo a leitura ime­di­ata de “A rev­olução dos bichos” e ten­tem fazer um para­lelo com que vive­mos.

Se as min­has lem­branças não me traem, na obra de Orwell os bichos, lid­er­a­dos pelos por­cos, que tomaram o poder na granja, cri­aram um depar­ta­mento com essa mesma final­i­dade.

É basi­ca­mente a mesma coisa que existe em todos os regimes total­itários e autocráti­cos no mundo: do Irã à Rús­sia, pas­sando por Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, Arábia Sau­dita, etc., uma estru­tura estatal encar­regada de pro­te­ger os “donos do poder” dos seus “lid­er­a­dos”.

Quer me pare­cer que o Brasil da atu­al­i­dade tem por obje­tivo nos trans­portar para uma obra de ficção dos anos quarenta.

Como em “A rev­olução dos bichos” se tinha os sete man­da­men­tos do ani­mal­ismo é pos­sível que ten­hamos nos­sos próprios “man­da­men­tos”. O primeiro deve ser: “Qual­quer ser humano que “pense” é inimigo”.

O meu lamento prin­ci­pal é que nem con­seguem ser orig­i­nais, ficam copiando obras de ficção e tudo que é mal cos­tume nas ditaduras ao redor do mundo.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

Uma nação sem bús­sola moral.

Escrito por Abdon Mar­inho


UMA NAÇÃO SEM BÚS­SOLA MORAL.

Por Abdon C. Marinho.

QUANDO COME­CEI a escr­ever há mais de uma década – digo escr­ever “profis­sion­al­mente” –, tinha por propósito con­tribuir, pelo menos com min­has ideias, com o cresci­mento do país, fazendo-​o um lugar mel­hor é uma janela de futuro para as ger­ações vin­douras.

Depois de todos esses anos, uma sen­sação de fra­casso me acom­panha. Tenho a impressão de que nada do que se possa dizer, insi­s­tir ou pon­derar terá qual­quer efeito para uma nação que parece ter per­dido sua bús­sola moral. Nada além dos próprios inter­esses dos “donos” do poder guiará a nação.

Agora mesmo recebo a notí­cia de que o Con­gresso Nacional prepara uma série de medi­das visando anis­tiar os par­tidos e políti­cos que des­cumpri­ram a lei no que ref­ere as cotas para mul­heres, negros ou mal gas­taram os recur­sos públi­cos ori­un­dos dos fun­dos par­tidários, eleitorais e tan­tos out­ros – car­ros, aviões, man­sões , pisci­nas e tudo mais foi o des­tino de recur­sos que dev­e­riam servir para ala­van­car a par­tic­i­pação de mul­heres e negros na política tor­nando a rep­re­sen­tação da nação mais plural.

A ideia dos nos­sos “líderes” é, pelo que li, “anis­tiar” todos os “malfeitos” ocor­ri­dos, inclu­sive, devol­vendo os man­da­dos per­di­dos em razão do des­cumpri­mento da lei e, noutra frente, tornar tais regras mais flexíveis.

Outra coisa que dese­jam é poderem gas­tar os recur­sos dos con­tribuintes com toda liber­dade do mundo. Fin­gem que prestaram con­tas e tudo fica bem.

As noti­cias dão conta que o “acórdão” já está sacra­men­tado. Um ou outro par­la­men­tar talvez esboce algum protesto mas nada que possa mudar o curso das coisas.

Na estraté­gia de tornar tudo ainda mais palatável aque­les que pode­riam ou teriam alguma força política para dizer algo, fiz­eram incluir regras favoráveis, na reforma trib­utária, aos par­tidos políti­cos, aos sindi­catos e as igre­jas.

Sobra-​me a impressão de que não temos um pro­jeto de nação, mas um pro­jeto de fra­casso institucional.

Vejam que as leis brasileiras já são exces­si­va­mente lenientes com os poderosos, em tudo, mas mesmo assim, firmes na ideia de que podem tudo, quando apan­hados no des­cumpri­mento de alguma norma, “inven­tam” uma anis­tia que os livrem de abor­rec­i­men­tos.

Só falta o Brasil ado­tar um sis­tema de leg­is­lação “flu­ida”, ou seja, que pode ser apli­cada ou não, con­forme o gosto do “freguês”.

O Brasil demorou décadas para garan­tir o dire­ito de par­tic­i­pação fem­i­nina na política – que ainda é baixís­sima –, e quando se esta­b­elece uma leg­is­lação que esta­b­elece cotas de par­tic­i­pação nas eleições, não é nas casas par­la­mentares ou nos poderes da República, e se começa a cobrar o cumpri­mento da lei com repri­menda aos que a vio­laram, chamam uma anis­tia, mudam a lei para torná-​la mais “flexível”.

Como ire­mos fazer do país uma nação igual­itária?

Ainda hoje mul­heres gan­ham bem menos que os homens para o exer­cí­cio das mes­mas ativi­dades – tanto assim que até tem uma lei tratando disso e só agora o STF decidiu que não se pode invo­car a defesa da honra nos crimes cometi­dos con­tra as mul­heres – e são mil­hares todos os anos.

A mesma “flex­i­bil­i­dade” e anis­tia diver­sas querem aplicar em relação as cotas para a par­tic­i­pação de negros no finan­cia­mento de cam­pan­has eleitorais.

O Brasil é um país que pos­sui uma pop­u­lação majori­tari­a­mente preta e parda, segundo os dados do IBGE, a despeito disso a par­tic­i­pação desse segui­mento na política nacional é restrita, seja no Con­gresso Nacional, nas Assem­bleias Leg­isla­ti­vas, nas Câmaras de Vereadores, nos poderes exec­u­tivos de todos os níveis e, tam­bém, no judi­ciário.

Dev­eríamos era ter políti­cas públi­cas que incen­ti­vassem o fim e bani­mento de tais seg­re­gações.

O que temos, o que se desenha é jus­ta­mente o con­trário, querem “flex­i­bi­lizar” as nor­mas de finan­cia­mento de can­didatos pre­tos e par­dos e de can­di­dat­uras femininas.

Pelo andar da car­ru­agem, pelo fim das punições, logo mais tornarão tais can­di­dat­uras “fac­ul­ta­ti­vas” e voltare­mos algu­mas décadas para trás.

O Brasil “não cumpre o dever de casa” e inibe a par­tic­i­pação dos segui­men­tos na vida política tornando-​a um ter­ritório da elite nacional.

Os dados do IBGE divul­ga­dos em 7 de julho último dizem que a edu­cação de cri­anças e ado­les­centes pre­tas e par­das – que são a maio­ria na pop­u­lação brasileira –, encontra-​se atrasada uma década em relação a edu­cação de cri­anças bran­cas.

Como podemos imag­i­nar que tais cidadãos ten­ham ascen­são social se desde a infân­cia a nação lhes roubam dez anos de vida?

Como imag­i­nar que o acesso aos fun­dos eleitorais para dis­putar um mandato ele­tivo é um “priv­ilé­gio” e por isso deve ser “flexibilizado”?

Os dados estão aí, à dis­posição de todos, prin­ci­pal­mente daque­les que dev­e­riam pen­sar em políti­cas públi­cas que tornem o país mais inclusivo.

A edu­cação brasileira encontra-​se atrasada mais de uma década em relação a out­ros países nas mes­mas condições que o nosso. Logo, edu­cação de pre­tos e par­dos encontra-​se, na ver­dade, com vinte anos de atraso. São vinte anos de atraso e não se faz nada para com­bater tal desigual­dade.

A edu­cação de que tratam as pesquisas e que efe­ti­va­mente conta é a edu­cação pública, aquela que é ofer­tada a todas as cri­anças do país de 7 a 14 anos e que não tem evoluído e pos­si­bil­i­tado a ascen­são social de todos por seus próprios méri­tos.

Antes dos “donos poder” agirem para anu­larem con­quis­tas históri­cas de mul­heres, pre­tos, par­dos, indí­ge­nas e out­ras mino­rias do espec­tro mul­ti­fac­etado que com­põem a pop­u­lação brasileira, dev­e­riam, na ver­dade, eram bus­car soluções para essa desigual­dade que se man­tém desde sem­pre no nosso país.

Os des­ti­nos do país não podem con­tin­uar uni­ca­mente nas mãos de políti­cos bran­cos e do sexo mas­culino pois não rep­re­sen­tam o povo brasileiro, aque­les que sofrem, na ponta, as con­se­quên­cias de suas decisões.

Mas, infe­liz­mente, é isso que vem se desen­hando com a “cumpli­ci­dade” de todos. Logo mais o país volta ao sis­tema de voto cen­sitário que já fez muito sucesso nos idos de 1800.

A bús­sola moral do país entra em “curto” quando vemos um min­istro do STF dizer que acor­dos de leniên­cia fir­mado no curso da Lava Jato onde empre­sas con­fes­saram deli­tos cometi­dos e até mesmo estão devol­vendo parte do alcance, não valeram.

Durante dez anos de existên­cia a oper­ação Lava Jato apurou, con­fron­tou provas e con­seguiu recu­perar já mais de seis bil­hões de reais.

Se agora decide-​se que nada disso “valeu”, a nação pre­cisa for­malizar um pedido de des­cul­pas e devolver a eles os recur­sos que con­fes­saram terem adquiri­dos como fruto de sub­or­nos, fraudes e tan­tos out­ros crimes.

Uma dúvida me assalta: se os réus con­fes­sos, con­de­na­dos e “resti­tu­idores” do alheio são “inocentes” ou imunes as penas, quem são os ver­dadeiros cul­pa­dos? Quando e por quais crimes respon­derão?

Em meio a tan­tos absur­dos, eis que nos aparece o pres­i­dente, que na atual quadra mais parece um palpiteiro-​geral da República, sug­erindo que os votos dos min­istros do STF sejam sig­ilosos. Aí a bús­sola moral da nação entra em pane.

Sou uma pes­soa afeita ao debate, acho que em nome do bem comum é pos­sível dis­cu­tir, debater ideias, encon­trar soluções para os prob­le­mas da sociedade.

Ocorre que o debate nacional, parece-​me encoberto por corti­nas de fumaça enquanto o que se busca, sem qual­quer pudor, é a manutenção do sta­tus quo de uma elite que age para levar o país de volta ao régime feu­dal.

Os cidadãos de bem tra­bal­ham quase metade do ano só para pagar impos­tos enquanto a elite con­sti­tuída pelos “donos do poder” os gas­tam “sem tomarem chegada”, como dizia um amigo.

Nada disso é novi­dade, Vieira, no seu “Ser­mão do Bom Ladrão”, dizia: “Não são só ladrões … os que cor­tam bol­sas ou espre­itam os que se vão ban­har, para lhes col­her a roupa: os ladrões que mais própria e dig­na­mente mere­cem este título são aque­les a quem os reis encomen­dam os exérci­tos e legiões, ou o gov­erno das provín­cias, ou a admin­is­tração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despo­jam os povos. — Os out­ros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os out­ros fur­tam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os out­ros, se fur­tam, são enfor­ca­dos: estes fur­tam e enfor­cam”.

É de perguntar-​se: o que mudou de 1655, quando Vieira pro­feriu tal ser­mão para cá? Nada con­tin­u­amos o punir com os rig­ores da lei os que fur­tam um pedaço de carne, os que roubam uma peça de rouba ou uns bis­coitos, mas man­te­mos (com os nos­sos votos) aque­les que não têm quais­quer com­pro­mis­sos com os des­ti­nos do país e que usam dos poderes del­e­ga­dos pelo povo para enrique­cerem cada vez mais, sem risco, sem medo e mudando a lei quando lhes con­vém.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

NO FIM FAL­TARÁ LAMA.

Escrito por Abdon Mar­inho


NO FIM FAL­TARÁ LAMA.

Por Abdon C. Marinho*.

TODOS que me con­hecem sabem o quanto sou admi­rador de charges. Acho o char­gista um dos artis­tas mais com­ple­tos, pois con­seguem sin­te­ti­zar uma ideia, um momento político ou social, um sen­ti­mento com ape­nas uma imagem, um traço. Sem­pre que encon­tro uma inter­es­sante salvo-​a nos meus arquivos.

A charge que ilus­tra esse texto encon­trei em mea­dos do ano pas­sado. A imagem do então pres­i­dente den­tro da ampul­heta mostrando que a figura do mesmo, a medida que o tempo pas­sava no medi­dor de tempo que é mile­nar fer­ra­menta se trans­for­mava em um pre­sidiário, inde­pen­dente de qual­quer incli­nação política, achei formidável.

Há pouco mais de um ano (mas pre­cisa­mente no domingo, 21 de agosto de 2022), depois que o então pres­i­dente disse que se não gan­hasse a eleição seria preso (ou morto, pois rea­giria) surgiu a opor­tu­nidade de uti­liza­ção da charge em um tex­tão, escrevi: “Um can­didato entre o Planalto e a Papuda?”.

O texto você con­fere no nosso site, na data já referida acima.

Um ano depois, a imagem visu­al­izada pelo autor da charge e que inter­roguei no texto não é ape­nas uma situ­ação hipotética, na ver­dade é como se o “cam­burão” da polí­cia fed­eral já estivesse na esquina – na ver­dade já esteve até na porta do ex-​presidente em mis­sões de coleta de provas.

Em tal con­texto, talvez o único que fez – não um exer­cí­cio de pre­visão –, mas uma con­statação do viria acon­te­cer de fato tenha sido o ex-​presidente Bol­sonaro. Ao dizer que com a der­rota teria um encon­tro com a prisão ou a morte, sabia ple­na­mente o que estava acon­te­cendo e, ele próprio, dire­ta­mente ou por ter­ceiros, fazendo.

A cada dia, a cada nova rev­e­lação – e o agosto tem sido prodi­giosa nelas –, a pat­uleia vai tomando con­hec­i­mento que as palavras não eram ape­nas “força de expressão”.

Vejamos o “caso das jóias”. O tenente coro­nel Mauro Cid, que já cole­ciona quase trinta horas de depoi­men­tos à Polí­cia Fed­eral, do qual vamos tendo con­hec­i­mento de frag­men­tos, ape­nas, vai deixando claro que ele e todos no entorno pres­i­den­cial sabiam que “malfeitos” estavam em anda­mento e que eles próprios eram sujeitos ativos dos mes­mos.

Ainda que sobrassem dúvi­das quanto à legal­i­dade de algu­mas con­du­tas, qual­quer um com ape­nas dois neurônios em fun­ciona­mento dev­e­ria ter a noção de que era “feio” o que estavam fazendo.

Mesmo nas relações estri­ta­mente pri­vadas não é de “bom tom” você rece­ber pre­sente de um amigo ou par­ceiro de negó­cios e lavá-​lo à venda. É uma falta de con­sid­er­ação, de ética, de compostura.

Mas, imag­ine você rece­ber um pre­sente – dire­ta­mente ou por inter­posta pes­soa –, rep­re­sen­tando o seu país, o seu estado e o levar à venda numa casa de leilões ou em um mer­cado de pulgas.

Aqui, sem ante­ci­par qual­quer juízo de valor, ao meu sen­tir é uma falta de con­sid­er­ação com a nação que pre­sen­teou e com o nosso próprio país, pois é como se estivésse­mos (a nação) con­tando moedas para sobre­viver.

E, vai-​se além, mesmo que se tivesse qual­quer dúvida quanto à pro­priedade do pre­sente, como quer ado­tar como linha de defesa o ex-​presidente, os pre­sentes foram dados ao país, rep­re­sen­tado por seu pres­i­dente, min­istros ou out­ros agentes.

Como sei disso? Resposta: me per­gun­tando quan­tos pre­sentes caros, joias em ouro e dia­mantes esses mes­mos agentes rece­beram depois que deixaram os car­gos públi­cos que ocupavam.

Pois é, se não rece­beram nada depois de deixarem os car­gos é porque o pre­sente não era para eles e sim para o cargo e funções que ocu­pavam.

Na minha já longeva car­reira jurídica, toda ela no setor público, vejo muitos ex-​gestores de várias esferas de poder se ressen­tirem pelo fato de con­vites para fes­tas, solenidades e rapa­pés terem escassea­dos ou desa­pare­ci­dos. Demoram a “caírem na real” e a enten­derem que tudo aquilo não era para eles, era para os car­gos que ocu­pavam. Por estas par­a­gens, conta a lenda, que deter­mi­nado advo­gado que era con­vi­dado para as fes­tas dos bacanas, foi alçado ao cargo de desem­bar­gador e com ele os con­vites começaram a “chover”. Sabendo que tal baju­lação não era para ele, aos con­vites que rece­bia, man­dava, no carro ofi­cial, as vestes talares do cargo aos even­tos com um bil­hete: “como o con­vite não é para mim e sim para o cargo, seguem as vestes do mesmo”. Deve ser lenda.

O mesmo raciocínio serve para os pre­sentes ofer­ta­dos a um gov­er­nante, seja ele munic­i­pal, estad­ual ou fed­eral.

Os gestores públi­cos dev­e­riam ado­tar como princí­pio a seguinte máx­ima: antes do cargo eu rece­bia? Depois do cargo con­tin­uarei a rece­ber? Com a resposta não, já sabe que aquilo que rece­beu não era para ele.

Qual­quer agente público que recebe para si um pre­sente valioso, tal mimo deve ser chamado por outro nome, que, inclu­sive, tem tip­i­fi­cação penal: sub­orno.

No caso dos supos­tos “pre­sentes” que o ex-​presidente reclama a pro­priedade, sobra uma outra curiosi­dade e desmi­ti­fi­cação: existên­cia de gov­er­nantes árabes bonz­in­hos.

Vejam que coisa, pas­samos a vida inteira ali­men­tando pre­con­ceitos de que esses povos teriam um exces­sivo apego ao “vil metal”, mas, de repente, desco­b­ri­mos que são capazes de doarem mil­hões de dólares em joias a pes­soas que mal conhecem.

O enredo até parece um conto de “As mil e uma noites”.

Já o enredo do resto da história está mesmo para comé­dia pastelão rec­heada de crimes diver­sos prat­i­ca­dos por paler­mas. Ou nas palavras de um dos envolvi­dos, cap­turadas pela PF: “nunca vi gente tão igno­rante”.

Me digam se pes­soas sen­sa­tas, nos pín­caros dos poderes repub­li­canos agiriam assim: você vai a uma nação estrangeira recebe um pre­sente valioso – que sabe, cer­ta­mente, per­tencer ao cargo que ocupa –, entra no país sem declarar o ingresso do bem, depois você viaja nova­mente levando o pre­sente que gan­hou, nova­mente não declara a saída do bem, chegando no des­tino você mobi­liza servi­dores públi­cos, inclu­sive com altas patentes das Forças Armadas, para per­cor­rerem lojas e casas de leilões para venderem os ditos pre­sentes.

Imag­ino, no palá­cio, a orga­ni­za­ção de uma viagem inter­na­cional da maior autori­dade da República: — coro­nel fulano, na próx­ima sem­ana vamos aos Esta­dos Unidos, ver­i­fica aí no acervo do palá­cio os pre­sentes que poder­e­mos levar “para dá um jeito por lá”.

Depois de ven­di­dos e apu­ra­dos os val­ores estes eram rein­tro­duzi­dos de forma clan­des­tina no país através de con­tas de ter­ceiros.

Como querem que com­preen­damos tal tipo de vex­ame? Repito, ainda que sobrasse legal­i­dade, é algo difí­cil de digerir. Então tín­hamos um gov­erno caça-​níqueis?

Será que a ninguém socor­ria a ideia de dizer: — rapaz isso que esta­mos fazendo é loucura?

Observem que nesse texto ape­nas trata­mos de um item de um “pron­tuário” que, pelo que se desenha, será bem extenso. Além da joias pre­sen­teadas, já surgem “boatos” sobre a com­pra de man­sões no estrangeiro em nome de “laran­jas”, as rev­e­lações do hacker em uma CPI — que pre­cisam ser provadas, mas que a polí­cia fed­eral não dev­erá ter difi­cul­dade em saber se ver­dadeiras ou não –, e tan­tas out­ras coisas que, cer­ta­mente, virão à luz mais cedo ou mais tarde.

O caso que vai se descorti­nando, como dizia um saudoso min­istro do STF, é daque­les em que se puxa uma pena e vem a gal­inha inteira, só que neste, vem o gal­in­heiro inteiro.

O que nos resta é aguardar, com um balde pipocas e um copo de suco, os próx­i­mos capí­tu­los.

Ao tér­mino de tudo, o temor é que falte lama.

*Abdon C. Mar­inho é advo­gado.