AbdonMarinho - Ensaio sobre as palavras.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Ensaio sobre as palavras.


ENSAIO SOBRE AS PALAVRAS.

Por Abdon C. Marinho*.

QUANDO menino, ainda na primeira infân­cia e morando na aldeia orig­inária, cos­tu­mava ouvir do meu pai, anal­fa­beto por parte de pai, mãe e parteira, uma expressão: — se não sabe falar, mel­hor calar.

Na mesma época tín­hamos por casa um velho cachorro branco – bem velho, mesmo –, que, imag­ino, viera com a família do Rio Grande do Norte por ocasião da vinda para o Maran­hão, a quem todos chamavam de “Calar”. Era o nosso “Baleia”, no para­lelo famil­iar com “Vidas Secas”, de Gra­cil­iano Ramos.

Como disse, ainda na primeira infân­cia e sem con­hecer o sen­tido das palavras, imag­i­nava que meu pai estava referindo-​se ao cachorro. Não sabia falar, era o velho cão.

Out­ros ditos daque­les dias: “lín­gua não é osso mas que­bra caroço”, “palavras cor­tam mais que lâmi­nas”, entre out­ras.

Com o tempo aprendi que você pode expres­sar tudo que pensa sobre quais­quer temas desde que saiba como fazê-​lo.

Aprendi isso com a vida – e após come­ter muitos erros.

O pop­u­lar Abelardo Bar­bosa, o Chacrinha, criou um bor­dão que ultra­pas­sou sua existên­cia ter­rena, dizia ele quando ani­mava nos­sas jovens tardes: — quem não se comu­nica se tram­bica.

Acred­ito ser incon­testável que o atual man­datário da nação seja um grande comu­ni­cador – tanto que con­seguiu eleger-​se pres­i­dente três vezes, algo inédito na história do país desde a rede­moc­ra­ti­za­ção, sem con­tar a eleição da ali­ada em 2010 e 2014 –, por outro lado, exceto pelos seus “devo­tos”, tam­bém é fato a sua imensa capaci­dade de dizer tolices, con­fundir alhos com bugal­hos ou fazer com­para­ções de coisas incom­paráveis ou rel­a­tivizar assun­tos com­plexos.

Talvez esse imenso pendão para tolices até realce a capaci­dade de comunicar-​se, afi­nal, se con­segue se man­ter por tan­tos anos “na crista onda” ape­sar das enormi­dades que pro­fere deve ser porque é bom, é o cara.

E vejam que essa incon­trolável atração por bobagens não vem de agora.

Já no iní­cio da car­reira como líder político, em entre­vista à saudosa revista Play­boy disse, sem pudor, da sua admi­ração por Hitler; lá na frente foi fla­grado em um áudio indis­creto falando da neces­si­dade de con­struir uma rodovia chamada “trans­vi­adônica” lig­ando o municí­pio de Pelotas (RS) ao municí­pio de Camp­inas (SP); já foi fla­grado rel­a­tivizando a escravidão brasileira; já teve áudios divul­ga­dos falando sobre mul­heres do “grelo duro”, e tan­tas out­ras coisas coisas que pas­saríamos dias só escrevendo sobre elas.

Muito emb­ora sua suces­sora eleita em 2010 tenha se nota­bi­lizado pelas bobagens e pelas coisas sem nexo pro­feri­das durante o mandato, acred­ito que chega longe das ditas pelo líder.

No trato da política inter­na­cional, com o debate con­t­a­m­i­nado pelo viés ide­ológico, então nem se fala.

No mesmo dia em o “nosso” líder ataca os Esta­dos Unidos ou as sec­u­lares democ­ra­cias europeias é capaz de defender o régime venezue­lano ou a ditadura cubana.

Tudo isso sem tro­car de terno ou mesmo a gra­vata.

Os despropósi­tos são tan­tos que chegou a colo­car em condições de igual­dade uma nação que estava (está) sendo inva­dida com a nação inva­sora.

Isso não faz muito tempo, foi logo no iní­cio da guerra do Ucrâ­nia, que acaba de com­ple­tar dois anos. Mais à frente, ainda em relação ao mesmo con­flito, con­vi­dou o auto­crata inva­sor Putin a vis­i­tar o Brasil para o encon­tro do G20, dizendo que o país não cumpriria con­tra ele um mandato de prisão expe­dido con­tra ele pelo Tri­bunal Penal Inter­na­cional que temos obri­gação de cumprir por ser­mos sig­natários de tratado com tal final­i­dade.

Não sei se, chamado à atenção, desis­tiu do intento tolo.

Pois bem, feitas tais con­sid­er­ações sobre o mal­trato as palavras ou a sua uti­liza­ção incor­reta, uma vez que mais sábios dizem que palavras causam mais danos que muitas ações, cheg­amos a atual crise diplomática com o Estado de Israel.

Nessa crise diplomática, sob pena de incor­re­mos nos mes­mos erros que pre­tendemos cor­ri­gir e/​ou esclare­cer, faz-​se necessário uma análise longe das explo­rações políti­cas inter­nas e exter­nas.

Em seu périplo pela África, o man­datário do Brasil, atrav­es­sou Hitler de novo na sua história, como já o fiz­eram por ocasião da polêmica entre­vista dos anos setenta, para com­parar o que Israel faz hoje na Faixa de Gaza com o que o nazista fiz­era ao povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial.

A colo­cação gerou (gera) muitas polêmi­cas, umas legit­i­mas out­ras ilegí­ti­mas; muita explo­ração política tanto em Israel quanto no Brasil – e até mesmo um tolo pedido de impeach­ment, feito por par­la­mentares brasileiros.

Em nome da ver­dade é necessário esclare­cer os fatos.

O pres­i­dente do Brasil, como já fiz­era ao com­parar uma nação inva­sora (Rús­sia) a uma nação inva­dida (Ucrâ­nia), fez uma analo­gia despro­por­cional, equiv­o­cada.

A Segunda Guerra Mundial des­en­cadeada por Hitler cus­tou em vidas humanas, cer­ta­mente, mais de 70 mil­hões de mor­tos. Só Judeus foram cerca de 6 mil­hões diz­ima­dos a sangue frio ou em Cam­pos de Con­cen­tração.

Como podemos perce­ber são coisas incom­patíveis para serem com­para­das.

Mas, por outro lado, a crítica do pres­i­dente brasileiro ao que vem ocor­rendo em Gaza é per­ti­nente, necessária e justa.

Temos uma pop­u­lação de aprox­i­mada­mente 2,5 mil­hões de pes­soas, cer­cada por todos os lados, pas­sando fome, pas­sando sede, sem medica­men­tos, com cirur­gias, inclu­sive em cri­anças, sendo feitas sem aneste­sia, sendo bom­bardeadas dia e noite por Estado reg­u­lar. Deve­mos con­sid­erar que mais de setenta por cento da pop­u­lação de Gaza é com­posta por mul­heres, cri­anças, idosos, pes­soas que nunca fiz­eram nada con­tra a existên­cia do Estado de Israel.

Por mais justo que seja o dire­ito de defesa de Israel, o dire­ito de bus­car os reféns injus­ta­mente sequestra­dos, exis­tem regras legais e humanas que pre­cisam ser respeitadas. A primeira delas é a pro­teção aos civis. Essa regra ele­men­tar não vem sendo respeitada. Mais de setenta por cento das víti­mas da guerra em Gaza são mul­heres, são cri­anças, são idosos, são pes­soas vul­neráveis que não têm, sequer, como fugir (e não teria para onde já que estão pre­sas) das bom­bas que caem sobre suas cabeças.

O pres­i­dente brasileiro não uti­li­zou na sua fala a palavra “holo­causto”, até porque tanto ele quanto a maio­ria das pes­soas não sabem o seu sig­nifi­cado.

O sub­stan­tivo mas­culino holo­causto, segundo os dicionários, já exis­tia e sig­nifi­cava: 1 REL Sac­ri­fí­cio ou rit­ual reli­gioso prat­i­cado espe­cial­mente pelos anti­gos hebreus, em que a vítima era total­mente queimada. 2 A vítima assim sac­ri­fi­cada. 3 POR EXT Ato ou efeito de sacrificar­‑se; expi­ação, sac­ri­fí­cio: “[…] se fora ele, enfim, que, em nome da própria honra, ofer­e­cera seus fil­hos em holo­causto, fora ele tam­bém que, depois de tanta honra, se vira subita­mente despo­jado dela, acabrun­hado, abatido, der­ro­tado” (JU).4 FIG Ato de renun­ciar à von­tade própria em favor de outrem.

Após a Segunda Guerra Mundial, na falta de uma palavra para descr­ever o que ocor­rera o termo pas­sou, tam­bém, a sig­nificar: “Genocí­dio de judeus e de out­ras mino­rias, como os ciganos e os homos­sex­u­ais, ocor­rido em cam­pos de con­cen­tração nazis­tas durante a Segunda Guerra Mundial (19391945)”.(Michaelis, edição eletrônica).

Já deixando os con­sideran­dos e partindo para os “final­mentes”, como diria o saudoso per­son­agem Odorico Paraguaçu, ao meu sen­tir, o man­datário brasileiro fez uma analo­gia despro­por­cional, talvez, imag­ino, por descon­hec­i­mento histórico, entre­tanto, a questão de fundo, o que inter­essa efe­ti­va­mente nos dias atu­ais, per­manece viva e latente que é o mas­sacre de palesti­nos inocentes em uma estre­ita faixa de terra de onde não podem sair.

Com­parar fatos ocor­ri­dos há mais de setenta anos com os que estão acon­te­cendo nesse momento é abso­lu­ta­mente inde­v­ido, mas, mais grave ainda é “fechar os olhos” para o mor­ticínio que acon­tece nesse momento à vista de todos.

— Ah, o pres­i­dente do Brasil falou “besteira” ao com­parar a segunda guerra com a guerra em Gaza.

Certo, falou besteira. E, por conta dessa besteira, entre tan­tas que ele já disse, vamos igno­rar o quem acon­te­cendo em Gaza, já denun­ci­ado por todos os países sérios do mundo e todas as agên­cias humanitárias?

Ah, o pres­i­dente do Brasil falou besteira, Israel está “lib­er­ado” para matar vel­hos, mul­heres e cri­anças em Gaza? É esse o raciocínio dos bons cristãos brasileiros?

Chega às raias do ridículo que par­la­mentares brasileiros peçam o impeach­ment por causa da fala tola do pres­i­dente e nada digam sobre o mas­sacre que ocorre em Gaza.

Não faz sen­tido nen­hum. Esses valentes parece-​me mais tolos do que a tolice que querem com­bater.

Claro que o pres­i­dente pode­ria uti­lizar a mesma lóg­ica que uti­liza para criticar Israel para criticar a invasão Russa à Ucrâ­nia; para criticar o régime venezue­lano, o cubano ou mesmo aque­las san­guinárias ditaduras africanas pelas quais parece nutrir afeto.

Mas, por conta disso, deve­mos calar ou fin­gir que o mas­sacre é devido?

Uma coisa que tam­bém aprendi é que não podemos mudar o pas­sado, não podemos retornar no tempo e impedir as mortes dos mil­hões que pere­ce­ram na Segunda Guerra, por exem­plo, mas podemos (e deve­mos) tra­bal­har para que tais tragé­dias não se repi­tam.

E essas tragé­dias estão aí, à vista de todos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.