QUANDO NÃO SE PODE ERRAR E SE COMEÇA ERRANDO.
Por Abdon Marinho.
DENTRE os muitos “memes” que circulam pelas redes sociais, um que me chamou muito atenção – e, infelizmente, não era “meme”, tratava-se de uma tirada humorística –, foi o da patriota de Porto Alegre, apelidei assim, em que uma uma senhora conclama os patriotas a terem calma pois os OVNIS já haviam chegado ao Rio Grande do Sul com a “missão” de operarem um transplante de corpos e que, a partir de 1° de janeiro que governaria o país continuaria a ser Bolsonaro só que no corpo do Lula. E conclamava: — calma, patriotas, calma!
Depois que vi um cidadão pendurar-se no pára-brisa de um caminhão em movimento para pará-lo; depois que vi centenas de cidadãos fazendo oração em torno de um pneu; depois que vi milhões de brasileiros nos portões dos comandos militares, dos quartéis e até mesmo nos “tiros de guerra”, como se dizia antigamente, pedirem golpe militar – o nome correto é este mesmo, os militontos querem repetir a história pedindo golpe –, não vi motivos para duvidar da veracidade do discurso da patriota gaúcha, sem contar que loucura por loucura, o que significa uma intervenção extraterrestre no processo eleitoral brasileiro?
Vivemos um momento de singular gravidade.
Os atos políticos dos cidadãos pedindo golpe militar, sem nem saberem o que é isso, não pode ser caracterizado apenas como uma bizarrice dos que não não se conformam com o resultado do pleito, quando sabemos que o pressuposto da democracia é o reconhecimento do resultado eleitoral quando este lhes é desfavorável – mesmo quando uma eleição termina empatada temos regras para reconhecer como eleito o mais idoso.
Então, para estas pessoas, a “vitória” não é a consolidação do processo democrático, com eleições periódicas, através do voto direto e secreto com igual valor para todos, mas, sim, um retorno a um sombrio período ditatorial, tal qual o instaurado em 1964, e depois suas sucessivas variantes de golpes dentro do golpe, até o fim do régime em 1985.
Os militares brasileiros “gostam do poder”, tanto assim que depois do golpe originário de 1964, foram promovendo outros golpes com o claro propósito de não deixarem o poder, conforme o prometido naquele ano, e cometendo “loucuras” para permanecerem no poder, a última delas, o atentado do “Riocentro”, em 1981, que não deu certo em virtude das bombas, com as quais pretendiam matar centenas ou milhares de pessoas, explodirem antes hora, matando apenas os que tentaram plantá-las no evento.
Outra prova disso é não mostraram qualquer constrangimento em acatar todos absurdos proposto pelo tenentinho, até mesmo as ordens ilegais – como essa de não participar ou não prestar os esclarecimentos devidos à comissão de transição, conforme determina a lei.
Tais considerações servem apenas para dizer que caso tivessem encontrado um “fiapo” de qualquer irregularidade nas urnas eletrônicas e/ou no processo eleitoral já teriam atendido aos apelos do seu comandante e seus seguidores que ocupam as portas dos quartéis pedindo golpe militar.
Se não fizeram é porque sabem não assistir razão aos autores das incontáveis narrativas sobre fraudes eleitorais e que fazerem isso – tomarem o poder pela força –, apenas estariam atraindo para o país toda insatisfação mundial que nos últimos quatro já colocou o Brasil na condição de pária do mundo.
Só por isso.
Desde sempre os militares brasileiros se acham “tutores” do poder civil. Isso não é de hoje, se querem uma data precisa, podemos dizer que vem desde o “golpe da proclamação da república”, ficaram calados de 1985 até aqui por conta do desastre que produziram na condução do país nos vinte e um anos que estiveram à frente do poder.
E, registre-se, só deixaram o poder quando a sociedade já não os suportavam mais.
Daí soar com gravidade ímpar o fato de milhares, talvez milhões de brasileiros, estarem acampados em frente aos quartéis pedindo “socorro” as forças armadas.
Não conhecem a história? São ignorantes ou apenas idiotas?
Digo isso porque não como ignorar o resultado das urnas sem uma ruptura institucional o que só será possível com a implantação de uma ditadura militar que feche os órgãos de representação política, do Congresso Nacional às Câmaras de Vereadores; o fechamento dos órgãos da justiça; e a intervenção nos governos estaduais.
É bom que se diga que não é possível a existência de uma meia ditadura. Uma ditadura militar federal com democracia nos estados e municípios ou com poderes constituídos autônomos.
Por isso é tão grave que estamos assistindo atualmente no país. Tão grave que clamaria por uma intervenção tanto do governo que sai quanto do governo que vai entrar no sentido de buscar a pacificação da nação.
É necessário o convencimento de vencedores e derrotados para fato de que nas democracias tanto a vitória quanto a derrota são passageiras.
Os derrotados de hoje, daqui a quatro anos, poderão sermos novos vencedores – o mesmo valendo para os vencedores.
A democracia, já disse isso dezenas de vezes, passa pelo reconhecimento do resultado das eleições. Esse é o pressuposto do estado democrático de direito.
Não é isso que estamos assistindo.
Mesmo pessoas supostamente esclarecidas, com a responsabilidade de reconhecer a importância da democracia no processo civilizatório as temos visto fazendo número e apoiando ruptura institucional.
E vão além, outro dia vi importante atriz da teledramaturgia brasileira defendendo que comerciantes usassem uma identificação nos seus comércios afirmando que votara ou seria defensor do governo eleito.
Embora seja uma tolice – assim como os diversos “memes” que circulam nas redes sociais –, cogitar tal absurdo tem uma simbologia ainda mais grave: era assim, utilizando a Estrela de Davi, que os nazistas identificavam os empreendimentos judeus para que fossem vandalizados ou para que fossem boicotados.
Assistir a mesma coisa no Brasil quase cem anos depois é algo perturbador.
Onde fracassamos? O que fizemos de errado para milhares, milhões de brasileiros pedirem golpe militar e a supressão da democracia? Onde o processo civilizatório fracassou ao termos cidadãos, milhares deles, nas suas redes sociais, incentivando que boicote à estados federados, a produtos de empresas, ou que comerciantes “marquem” seus comércios com identificação de preferência política, como faziam os nazistas nos anos trinta do século passado? Será que não aprendemos nada com a história brasileira e mundial?
Volto ao “meme” fake da patriota gaúcha e que nos remetes ao próprio título do texto para dizer o seguinte:
Como o candidato derrotado, até hoje, não apareceu para reconhecer o resultado eleitoral e tal mutismo serve como combustível para incentivar que seus aliados e seguidores fechem rodovias e promovam atos políticos que visam a supressão da democracia, caberia ao candidato vitorioso trabalhar dobrado para pacificar o país.
Não é isso que temos visto.
Dando razão ao “meme” fake da patriota de Porto Alegre, quer nos parecer que os ovnis que disseram estar estacionados sob o Rio Grande do Sul já operaram o transplante de corpos entre Lula e Bolsonaro.
Basta observar que o silêncio do primeiro coincide com o destempero verbal do segundo.
Não é novidade que o Lula sempre abusou do direito de falar sandices, só sendo superado pelo senhor Bolsonaro, que é insuperável neste quesito.
Ocorre que, esperava-se do Lula, diante do país absolutamente dividido e raivoso, ele moderasse a língua e, junto com os seus, trabalhasse pela pacificação do país e não é isso que não estamos vendo.
Não que ache algo demais no muito que diz, ocorre que o momento não é adequado.
Tal qual o atual presidente, o senhor Lula, presidente eleito, trata de tentar apagar incêndio utilizando gasolina.
Talvez fosse oportuno alguém lembrá-lo que um grande número dos votos que o elegeu não são dos seus devotos, mas, sim, votos contrários ao atual governante.
Começa errando quando não se tem o direito de errar.
Noutras palavras, parece-nos que os ovnis já fizeram o transplante de corpos e, a partir de janeiro, continuaremos a ser governados por Bolsonaro, mas no corpo do Lula.
Abdon C. Marinho é advogado.