O BRASIL FALTOU AS AULAS DE HISTÓRIA.
Por Abdon C. Marinho.
NESTE fim de semana dedicado às emoções da final da Copa do Mundo da FIFA entre Argentina e França, dediquei um tempo para assistir o filme “Argentina, 1985”, inspirado na história dos acontecimentos do país título e na luta dos promotores Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, e sua equipe de jovens estagiários, para e levar a julgamento e à condenação as juntas militares responsáveis pela tortura, assassinatos e desaparecimentos de milhares de argentinos.
Sem oferecer mais nenhum “spoiler” do filme, devo dizer que senti-me revisitando o nosso próprio passado, pois embora muito jovem, os fatos que ocorriam no país dos hermanos chegavam até nós por rádio ou pela televisão.
Naquele 1985 o Brasil também dava adeus à sua ditadura militar – uma longa noite que durou 21 anos.
Diferente do que ocorreu na Argentina, o Brasil fez a opção (ou negociou) uma abertura gradual do régime militar para a democracia através de uma ANISTIA (Perdão geral, esquecimento. Ato do poder público que declara impuníveis determinados delitos, em geral por motivos políticos e, ao mesmo tempo, suspende diligências persecutórias e anula condenações).
Essa opção que, talvez, tenha nos trazido uma certa “tranquilidade” privou a maior parte da sociedade civil brasileira de encontrar-se com o seu próprio passado.
Achamo-nos, como sociedade, no direito de esquecer e de perdoar fatos e crimes contra a ordem política e contra a humanidade dos quais não sofremos direta ou indiretamente. Perdoamos as mortes, os desaparecimentos e as torturas que não nos atingiu ou a alguém da nossa família ou algum amigo ou a uma pessoa próxima.
Fizemos o certo em nome da “paz social”?
Em nome de trazermos os exilados a partir 1979 para que começasse a participar do processo eleitoral e político nos anos seguintes negamos à sociedade o direito de conhecer uma grande parte da nossa história recente.
Sobre os crimes da ditadura contra a sociedade civil e contra a humanidade, apenas o livro Brasil Nunca Mais, que bem poucos brasileiros tiveram acesso, bem diferente do ocorrido na Argentina em que os julgamentos, transmitidos via rádio, dava aquela sociedade, o conhecimento do ocorrido nas palavras de quem sofrera os abusos, os crimes hediondos da tortura.
Quando da transferência de poder – ou da devolução do poder –, falava-se muito que não poderia haver “revanchismos”, eu mesmo, durante muitos anos, defendi essa tese, que deveríamos esquecer, colocar uma pedra sobre o assunto e seguir em frente.
Mas, fizemos o certo ao negar ao povo um encontro com o seu passado recente em nome da “paz social”?
Hoje, quase quarenta anos depois, tenho dúvidas e questionamentos sobre isso.
Vejo milhares de brasileiros (talvez milhões) acampados em frente aos quartéis das Forças Armadas, há quase cinquenta dias, passando privações, clamando por “intervenção militar”, eufemismo para o que realmente defendem: um retorno a uma ditadura militar no Brasil.
Me pergunto se estas pessoas, de todas as idades, sexo, gênero e religiões, estariam fazendo isso se efetivamente tivessem conhecimento do que se passou nos anos de régime militar e do significado disso para o país.
Será que pensam que a “intervenção militar”, se fosse exequível, seria só a instalação de uma junta de comandantes militares no poder – ou talvez, manter o mesmo governante no poder dando-lhe sustentação pela força –, e tudo continuar como dantes? E o que fazer com o Congresso Nacional recém-eleito? O que fazer com o Supremo Tribunal Federal e com os demais tribunais federais? O que fazer com os governos estaduais e com as Assembleias Legislativas? Prender todos que discordarem do régime militar que desejam? Exilar? Prender? Matar?
Vemos que não faz qualquer sentido o que querem.
Mesmo essas “mobilizações” supostamente para tentar legitimar uma ruptura institucional e a implantação de uma ditadura, não fazem sentido, pois ilegítimas na origem.
Os próprios militares brasileiros sabem disso, tanto assim que se mantém ordeiros dentro dos quartéis.
Devem saber que não existe condições para implementar uma ditadura no país e que 2022 é muito diferente de 1964, no Brasil e no mundo.
O questionamento de ilegitimidade do processo eleitoral brasileiro, por mais que tragam essa ou aquela narrativa ou apresentem ou outra situação ou mesmo fatos possíveis de serem questionados não são suficientes para quererem anular o pleito eleitoral.
O processo eleitoral brasileiro é passível de verificação e auditorias em todas as suas fases.
E na eleição passada, mais do que nas outras, foi sobejamente auditado, inclusive, pelas Forças Armadas que disseram não ter encontrado provas de quaisquer ilícitos. Se tivessem tido um pouquinho mais de coragem não teriam dito que “o fato de não terem encontrado, não significa que não tenha”, ou algo do tipo.
O certo é que não podemos abrir mão da democracia que tanto nos custou conquistar porque os derrotados no pleito não se conformam com a derrota.
Um amigo, muito querido, por sinal, enviou-me um vídeo, onde denunciavam uma prova “cabal” de fraude eleitoral: um morto aparecia nos sistemas eleitorais como tendo voltado em determinada sessão.
Para quem lida com eleições há muitos anos, sabe que fatos assim podem acontecer.
Às vezes um eleitor assina no caderno de votação no lugar indevido; pode até mesmo acontecer de um eleitor se fazer passar por outro e pedir ao presidente que libere a urna pelo fato da biometria não funcionar; pode até mesmo que os integrantes da seção de votação cometer a fraude de votar por quem não compareceu.
Se isso acontecer, a responsabilidade não é “toda” da Justiça Eleitoral, mas, principalmente, dos partidos políticos, que nos termos da legislação eleitoral, podem fiscalizar todas as fases do processo: da inscrição do eleitor até o momento em que o mesmo deposita o voto na urna.
Temos mais 30 partidos políticos em funcionamento regular e recebendo uma “bolada” dos cidadãos para garantirem o regular funcionamento da democracia, se permitem que alguma irregularidade ocorra, devem, eles, arcarem com as consequências e não a sociedade.
Uma outra observação a ser feita é que alguma desconformidade que por ventura possa ocorrer, não acontece apenas em benefício de um candidato, quando e se acontece, todos tiram suas vantagens.
Isso para dizer que não faz sentido anular-se um pleito eleitoral, envolvendo quase cento e trinta milhões de eleitores porque na seção eleitoral de um povoado de “Muzambinho” supostamente apareceu um voto de alguém que não poderia ter votado.
De mais a mais, se tem alguém que não pode reclamar do cometimento de delitos eleitoral na eleição passada, é o atual presidente derrotado: nunca na história deste país vimos um governo cometer tanto abuso de poder político e econômico como vimos no último pleito. Basta dizer que até “dinheiro público” foi distribuído com as várias desculpas para reverter os votos dos eleitores mais vulneráveis economicamente.
Aos insatisfeitos com o resultado das urnas, o melhor a fazerem é acumular forças políticas para as próximas eleições, daqui a dois e quatro anos, o que só será possível numa democracia, pois ditaduras não realizam eleições livres e justas.
Em outras palavras, não devemos brincar com a democracia, pois sabemos que os riscos que correríamos se não a tivéssemos seriam infinitamente maiores que qualquer insatisfação com o resultado do pleito.
Quando à preocupação de que Brasil vire uma ditadura comunista ou que o partido político que ganhou as eleições “acabe” com país, não precisam se preocupar, mesmo que tentem, não conseguirão fazer isso em quatro anos, quando o povo brasileiro, mais uma vez, livremente, terá a chance de votar e escolher o destino do país.
Enquanto isso um passeio pelos livros de história não faz mal a ninguém.
Na final da Copa do Qatar, que vença a melhor. Mas, viva a Argentina!
Abdon C. Marinho é advogado.