UM PRETO NO TEATRO E O RACISMO NO BRASIL.
Por Abdon C. Marinho*.
UMA FOTOGRAFIA. Vi a fotografia do amigo Soeiro (José Raimundo Pereira Soeiro), utilizada no seu perfil de uma rede social ambientada no “nosso” teatro Arthur Azevedo. Quando ele me ligou para tratar de questões relacionadas aos trabalhos que temos em comum, além de falar da sua costumeira elegância na foto de perfil, comentei do alcance histórico que me despertou aquela imagem, a ponto de motivar a escrever um texto sobre o assunto.
Observei que a importância histórica da sua presença no teatro prendia-se ao fato de, durante séculos, no Brasil – e, também, no mundo –, aqueles ambientes terem sido, essencialmente, ambientes “brancos”.
Em outras palavras, em todo mundo, Brasil inclusive, o teatro sempre foi o “templo cultural” da elite dominante, branca, empoada, abastada.
Pessoas pretas no teatro, no máximo passavam na porta ou eram escaladas para os serviços de limpeza, manutenção ou, quando muito, uma ponta em alguma peça, encenando os tipos destinados à cor da pele, como escravos, servos ou empregados domésticos devidamente fardados com uniformes brancos.
As exceções, quando existentes, apenas tinham ou têm o condão de justificar a regra.
Daí a importância de se saudar e louvar a presença de um preto no teatro como plateia. Como um cidadão igual a todos os demais.
Na conversa, Soeiro aproveitou para dizer-me que fora ao teatro prestigiar uma peça sobre a cantora Alcione Nazaré, a nossa “marrom” e que, na peça, uma grande parte dos seus atores são negros.
Certamente alguns leitores – ou não –, irão questionar o fato de ter trazido para o textão do fim de semana a pauta do racismo. Alguns, até dirão, que estou sendo “racista” ao saudar como histórica a presença de um preto no teatro, pois, não sendo o Brasil um país racista, qual o sentido da saudação ou “estranhamento”?
O Brasil padece de alguns males, dentre eles, a negação e/ou o auto-engano.
Uma negação ou auto-engano, principalmente, da parte de pessoas que se dizem esclarecidas é essa, de negar o racismo existente no país, inclusive, aquele racismo estrutural, que “funciona” como se fosse institucional e que tentam esconder ou escamotear todos dias como se ele não existisse.
Certa vez um amigo me relatou que estando na academia do condomínio onde morava ainda recente, foi surpreendido pela presença do segurança no ambiente, supostamente, por está sem máscara. Ele percebeu, ainda que o segurança, que o conhecia não lhe tenha dito, que na verdade aquela “vizinha” achava que aquele ambiente não era para ele, que poderia ser “algum penetra” dentro do condomínio usando a academia.
Tal situação em muito se assemelha aquela de determinada autoridade, que, para dizer que não era racista, apresentou as empregadas domésticas de sua casa, pretas, como sendo “as donas da sua casa”.
Muitos podem até achar que não são racistas, mas ao tentarem colocar as pessoas dentro de determinados espaços sociais e de trabalho estão sendo.
Ora, não sou racista mas acho muito estranho um negro na academia do “meu” condomínio; ou não sou racista, minhas domésticas são negras.
Mesmo o racismo que ocorre à vista de todos, como o caso daquela agressão de uma mulher branca a uma mulher preta, chamando-a de fedida ou que seu cabelo “era ruim”, etc.; ou da outra preta que teve uma compra recusada em razão da dona da loja recusar-se a vender a ela por conta de sua cor, além das diversas ofensas; ou os reiterados casos ocorridos nos estádios de futebol onde torcidas organizadas ou não agridem determinados jogadores em razão da cor da sua pele, e tantos outros casos patentes de racismo.
Mesmo nesses exemplo que despertam repulsam no momento em que ocorrem, logo depois, começam a escamotear ou a “colocar panos quentes” para livrar a cara dos racistas.
Durante muitos anos usaram o caminho da desqualificação do crime. Como o crime de racismo, nos termos da Constituição é imprescindível e inafiançável, dizia-se que os crimes, se ocorridos, teriam sido meras “injúria racial”, e diversos outros argumentos de igual valia.
O Supremo Tribunal Federal — STF, em boa hora, endureceu a interpretação, dando a tais crimes e a inúmeros outros o mesmo tratamento, como no caso da homofobia, transfobia e tantos outros relacionados à condição sexual da vítima.
Apesar disso – não sei se por conta da visibilidade que os fatos passaram a ter com o advento dos celulares, internet, etc. –, não tem um dia, uma hora que não nos deparamos com um exemplo de agressão racial ou em razão da condição sexual das pessoas.
Vivemos em uma sociedade doente em que tudo é motivo para descarregar suas frustrações e covardias. Quase sempre fazem isso contra pessoas que julgam ser inferiores a elas ou que não deveriam ocupar o mesmo espaço que elas ou usando seus discursos de ódio como ferramenta de promoção pessoal ou para ganharem dinheiro. Sim, assim como existe um público de doentes que “consomem” pornografia infantil ou pedofilia, existem o público consumidor para os discursos de ódio contra mulheres, negros, judeus, homossexuais, transexuais, etcetera.
O exemplo de grande repercussão mais recente de discurso de ódio para fins políticos foi o proferido por deputado federal mineiro, o mais votado do Brasil, proferido na Câmara dos Deputados, no Dia Internacional da Mulher, que, como dito acima, é também uma vítima preferencial de uma série de violências.
No caso do deputado federal, poder-se-ia alegar que sua violência contra os transexuais na tribuna do parlamento é decorrente de sua ignorância por conta da pouca idade.
Na verdade, não é isso. O Brasil, nos últimos anos, tem vivido a cruel experiência de cultuar diversos tipos de ódio pelos motivos mais banais, mas que rendem dividendos, sejam eles financeiros, sejam eles políticos.
E retornamos ao racismo explícito ou estrutural existente no Brasil e que corrobora com a intenção de ganho financeiro e/ou político.
Ainda repercute na mídia, a operação policial que resgatou cerca de 200 trabalhadores de uma situação análoga à escravidão.
Análoga é uma espécie de eufemismo para o que foi revelado. Soube-se que os trabalhadores eram mantidos aprisionados, sob severas ameaças de morte e em condições absolutamente insalubres.
Destes trabalhadores ficou-se sabendo que mais 90% (noventa por cento) eram negros.
Vem cá, existe alguma diferença significativa entre a realidade destes trabalhadores com a realidade do régime escravocrático vigente no país até 1888?
Ao meu sentir a diferença é que se passaram 135 anos desde a Abolição da escravatura, o que torna a prática, nos dias atuais, ainda mais abominável.
Mais infamante que as práticas relatadas acima, só mesmo o fato de haver pessoas “do bem” culpando as vítimas ou não fazendo qualquer exame de consciência sobre o ocorrido, como fez o vereador do Município de Bento Gonçalves, ao tratar do assunto na tribuna do parlamento municipal; ou os donos das vinícolas muitas delas premiadas nacional e internacionalmente e estrelasse programas de televisão, não dando “a mínima” para aquelas pessoas que, com seu trabalho, as colocam em destaque.
O Brasil precisa se reencontrar com decência. Não é concebível que ainda tenhamos que conviver com o racismo, com os preconceitos e com todo tipo de intolerância.
O respeito ao próximo dar-se por sua condição humana (extensiva, também aos animais) e deve preceder a todas as demais. Não é a cor da pele, o gênero, a condição física ou psicológica, a condição sexual, etcetera que devem determinar o espaço de cada um ou as oportunidades a serem dispensadas a eles.
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, conforme preceitua a nossa Carta Magna no seu artigo 5º.
Por uma sociedade com mais igualdade para todos.
Abdon C. Marinho é advogado.