AbdonMarinho - Como os livros salvaram minha vida.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Como os livros sal­varam minha vida.


Como os livros sal­varam minha vida.

Por Abdon C. Marinho.

RECEN­TE­MENTE li uma frase do econ­o­mista amer­i­cano James Heck­man (Chicago, Illi­nois, EUA, 1944 -), gan­hador do Prêmio Nobel de Ciên­cias Econômi­cas do ano 2000, que diz: “a tarefa de prover con­hec­i­mento às cri­anças deve começar tão cedo quanto pos­sível, de modo que se ergam alicerce sóli­dos para for­mar adul­tos pro­du­tivos e ino­vadores – duas qual­i­dades tão caras a uma econo­mia mod­erna”.

Desde sem­pre pre­ocu­pado com a edu­cação e já tendo escrito algu­mas dezenas de tex­tos sobre o assunto, fiquei espe­cial­mente feliz pelo fato do econ­o­mista amer­i­cano, lau­reado com o Nobel – repita-​se –, cor­rob­o­rar com aquilo que venho dizendo a minha vida inteira: o Brasil só ocu­pará o seu ver­dadeiro lugar no mundo se tiver­mos uma edu­cação forte, igual­itária, inclu­siva, que desde a mais tenra idade coloque a cri­ança como sen­hora de seu próprio des­tino, provendo-​a de condições obje­ti­vas edu­ca­cionais que não a deixe em desvan­tagem em relação às demais cri­anças.

Trata-​se de uma ver­dade tão óbvia que não pre­cis­aríamos de palavras boni­tas ou de efeito para expressá-​la.

Não faz muito tempo, durante uma sem­ana inteira, o Jor­nal da Band exibiu uma série de reporta­gens sobre o incen­tivo ao hábito de leitura para cri­anças na primeira infân­cia e os resul­ta­dos sur­preen­dentes que se pode alcançar com um hábito ou com ini­cia­ti­vas tão sin­ge­las na vida e para futuro destas cri­anças e do país.

Foi neste mesmo período que durante uma visita do amigo José Fer­reira, por alguma razão, pusemo-​nos a con­ver­sar sobre a importân­cia dos livros nas nos­sas vidas. Ele me con­tou da vez que levou uma surra da mãe por gasto todo o din­heiro que gan­hara de um tio ou padrinho, em uma viagem de férias, com­prando revis­tas em quadrin­hos. Por serem pobres, ela já con­tava com esse recurso para alguma despesa nas fes­tas de natal. Depois da “pisa”, ele pas­sou a con­sumir o “pro­duto do crime” em furtivas leituras em um beco próx­imo a sua casa.

Contei-​lhe tam­bém das min­has exper­iên­cias e de como os livros “sal­varam” minha vida.

Coloco como ponto de par­tida para minha relação com os livros o “dia seguinte” ao falec­i­mento da minha mãe. Não que tenha enveredado pelo mundo das leituras quando ela par­tiu, nada disso, quando tal fato se deu tinha pouco mais de cinco anos, naquele tempo só entrá­va­mos na escola depois dos sete, no meu caso, por conta da defi­ciên­cia física, demorou um pouco mais.

Uma vez um amigo me ques­tio­nou sobre a forma como colo­quei a minha orfan­dade em um texto ou vídeo. Segundo ele, dera a enten­der que ficara órfão de mãe e pai, simul­tane­a­mente, e, em seguida dizia que desde muito cedo aju­dava meus pais nas ativi­dades do dia a dia e em um comér­cio.

Na ver­dade, quando minha mãe mor­reu de parto, deixou uma “escad­inha” de 09 fil­hos, de 21 a 0 anos, que o meu pai ficou com a respon­s­abil­i­dade de criar – e fez isso diante de suas pos­si­bil­i­dades –, da mel­hor forma. Quando nos deixou, todos os fil­hos de seu primeiro casa­mento, já estavam bem encam­in­hados ou pelo menos já tin­ham um “rumo” na vida.

Sem­pre con­sid­erei como orfan­dade – pelo menos “con­tar” a par­tir daí –, o pas­sa­mento de minha mãe, pois quando a mãe falta ces­sam todas as nos­sas refer­ên­cias, sentimo-​nos estrangeiros na nossa própria casa, nos sen­ti­mos sem um “lugar” nosso, sem um acol­hi­mento, sem alguém para secar nos­sos pran­tos ou per­gun­tar das nos­sas dores.

No meu caso, as neces­si­dades eram um pouco maiores uma vez que após a poliomielite minha mãe pas­sou a desem­pen­har o papel de cuidadora, fisioter­apeuta, enfer­meira, e tan­tos out­ros. Sem ela, findara-​se o reinado de D. Abdon I — e único.

Acho que já ia pela casa dos sete ou oito anos quando, depois de pas­sar alguns meses na escol­inha de “latada” do povoado, fui man­dado para morar com meus irmãos em Gov­er­nador Archer, na Rua do Sossego, para estu­dar no colé­gio Alde­nora Belo.

Eram cri­anças cuidando de cri­anças, não tinha como dar certo. Os primeiros meses, em um mundo total­mente difer­ente, não foram fáceis. Eu ia para escola, cir­culava um pouquinho por lá – as vezes nem isso –, e “fugia” para casa.

Desnecessário dizer que nas min­has primeiras “férias” de volta ao povoado, com meu pai tendo tomado con­hec­i­mento, das min­has “fugas” da escola gan­hei uma surra de cin­turão. Foi um santo remé­dio. No semes­tre seguinte nada de fugir de escola e procu­rava me esforçar o máx­imo para apren­der o que era ensi­nado. Com o auxílio de uma palmatória, éramos “incen­ti­vado” a apren­der a tabuada.

Com oito anos (ou mais) já lia e escrevia alguma coisa. Nas férias, meu pai aproveitava esse “con­hec­i­mento” para que ano­tasse em um caderno o peso das sacas de arroz que buscá­va­mos nas roças daque­les que haviam ven­dido o pro­duto “na folha”.

Foi no iní­cio da minha ado­lescên­cia que mer­gul­hei no mundo dos livros.

Emb­ora já gostasse de ler e tendo nos livros a chave para um mundo só meu, neste período mudou-​se para minha rua uma sen­hor­inha já de idade avançada (acho que mais de sessenta ou setenta anos) que pos­suía diver­sos livros.

Não sabia de onde viera ou da sua história, mas ela era uma leitora voraz, pas­sava horas e horas lendo. Me emprestava todos livros que não estivesse lendo para que eu lesse. Fui criando gosto pelo pas­satempo.

Quando mudei-​me para cap­i­tal, para seguir em frente nos estu­dos, perdi total­mente o con­tato com essa sen­hor­inha a ponto de nem lem­brar ou saber o seu nome – acho que só a chamavam de dona Mocinha.

Por vezes fico a pen­sar que todas as pes­soas que cruzam as nos­sas vidas fazem isso por algum propósito não deter­mi­na­dos por nós. O caso dessa sen­hora, sem­pre lem­bro como o mais ilus­tra­tivo.

Sem motivo algum, uma cri­ança órfã – devia ter dez, onze, no máx­imo doze anos –, defi­ciente, faz amizade com uma sen­hor­inha de idade avançada e dessa inter­ação faz des­per­tar o gosto por livros que fun­cionam como dro­gas a lhe per­mi­tir fugir de todos os seus anseios, inqui­etações e sofri­men­tos.

Nessa “fuga”, todo tipo de lit­er­atura me servia, dos livrin­hos recre­ativos com histórias de cow­boys amer­i­canos aos clás­si­cos da lit­er­atura brasileira e mundial; mitolo­gia grega; história clás­sica, geografia do Brasil e do mundo; ensaios pornográ­fi­cos e tan­tos outros.

Acho que nos dias de hoje pren­de­riam dona Mocinha por me colo­car em con­tato com tanto “mate­r­ial impróprio” a uma criança/​adolescente.

O certo é que lia tudo que me chegasse às mãos, fosse pelas mãos de dona Mocinha, fosse por quais­quer out­ras mãos. Favore­cia a leitura o fato de ficar durante todo o dia tomando de conta de um comér­cio que meu pai inau­gurou para que tomasse conta na Rua Dr. Paulo Ramos, que naquele tempo, como tudo, tinha outro apelido.

Outra coisa que favore­cia o hábito da leitura é que “naquele tempo”, anos setenta, oitenta, todo mundo lia alguma coisa. As mocin­has liam revis­tas Sétimo Céu, Sab­rina, Bianca, Bár­bara, etc; os meni­nos liam gibis, Tio Pat­in­has, Pato Don­ald, Zé Car­i­oca, etc; os jovens liam os “bol­silivros”, Tex, Zagor e mes­mos os clás­si­cos da lit­er­atura, como José de Alen­car, Gonçalves Dias … a leitura era o prin­ci­pal passatempo.

Já na ilha, morando com meu irmão e estu­dando no Liceu Maran­hense – e depois quando me prepar­ava para vestibu­lar –, con­tin­uei “vici­ado” em livros. Após as tare­fas domés­ti­cas ou qual­quer tempo livre cor­ria para a bib­lioteca.

Quando Cafeteira assumiu o gov­erno do estado, uma das primeiras medi­das, após deter­mi­nar que frota de veícu­los públi­cos de abób­ora, foi reati­var ou dar maior fun­cional­i­dade aos Cen­tros Soci­ais Urbanos, os CSU’s, através da Sec­re­taria de Assistên­cia Social. No cen­tro do Habita­cional Turu tin­ham diver­sos cur­sos des­ti­na­dos a todos os públi­cos (cheguei a fazer e ser cer­ti­fi­cado no curso de datilo­grafia) e tinha, tam­bém, uma bib­lioteca com mil­hares de vol­umes de livros, que li, capri­chosa­mente, uma grande parte (quase todos). Quando não estava mer­gul­hado nos livros de lit­er­atura, estava pesquisando nas enci­clopé­dias Barsa ou Britânica. Muito emb­ora hoje todo o con­hec­i­mento esteja à dis­tân­cia de um dedo, “basta dá um Google”, como dizem alguns, as enci­clopé­dias escritas tin­ham uma van­tagem: enquanto você pesquisava um tema, lia ou encon­trava diver­sos out­ros, indo muito além da pesquisa ini­cial. Essa é uma van­tagem do ensino analógico.

Foram essas exper­iên­cias, esse amor aos livros que me fiz­eram forte e me troux­eram até aqui.

E por tudo somos gratos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.