DEMOCRACIA, HIPOCRISIA E CONTRADIÇÕES.
FUI EDUCADO de forma bem simples. Desde cedo aprendi que o que é errado é da conta de «todo mundo». Minha primeira casa – num povoado chamado Centro Novo, distrito de Gonçalves Dias –, era de «chão batido» com paredes de barro socado, mas como dizem, limpinha. Aprendi desde criança a não cuspir no chão, ainda numa casa de chão batido. Nas casa de minha família e tantas outras da minha infância, existia um caixote de madeira com areia onde podíamos cuspir, ou ainda escarradeira. Lembro da minha avó, já ida nos anos, cuspindo numa delas.
Assim, se não cogitávamos cuspir no chão, inimaginável cuspir na cara de quem quer que fosse, muito menos, fazer isso como argumentação política.
Cuspir em alguém faz crê, ao menos para mim, que já não se tem mais qualquer argumento válido a discutir. O abjeto hábito de cuspir alguém não serve, sequer, como desculpa a repelir uma agressão.
Em 1992 a população brasileira, como fazemos nos dias de hoje, fomos às ruas pedir o impeachment do ex-presidente Collor de Melo.
Ele foi o primeiro presidente eleito após 21 anos de ditadura e pouco mais de um ano da promulgação da Constituição Federal, 1988. A democracia engatinhava.
Se escrutinarmos os fatos imputados ao ex-presidente cassado, em comparação com os que são atribuídos ao atual governo, aqueles parecem coisas de criança travessa.
Não lembro de ninguém – talvez apenas o próprio –, dizendo que se tratava de um golpe contra a democracia. Não lembro de ninguém dizendo tratar-se de risco à nossa jovem democracia, um risco que poderia levar o país de volta aos anos obscuros da ditadura.
Naquela oportunidade, os poucos que votaram a favor do ex-presidente, dizendo não haver motivos para o impedimento, não receberam placas ou foram saudados como heróis do povo brasileiro, muito pelo contrário.
Como disse, gosto de conceitos simples. Então, como nossa democracia recém-nascida, depois de duas décadas de ditadura, resistiu, como não resistirá agora, com instituições bem mais sólidas?
Uma outra pergunta que se impõe é: o nosso país melhorou ou piorou com afastamento de Collor de Melo?
Mais. Se o impeachment no presidencialismo é um golpe, por que nunca pediram desculpas a Collor? Por que nunca fizeram uma autocrítica por ter pedido o seu impedimento e o impedimento de todos os demais presidentes, de Sarney a FHC?
Dizem que a comunidade internacional deixará o país diante da instabilidade ocasionada pelo impeachment. Ora, se é assim, por que não fez isso quando, há mais de vinte anos, tiramos um presidente?
Vejam, antes dizia que a senhora Dilma Rousseff tinha perdido as condições políticas e administrativas para gerir o país. A estas, acho, devemos acrescentar as condições morais e éticas. Não recordo de lugar nenhum do mundo, onde um mandatário pediu sanções internacionais contra seu próprio país, como fez a senhora presidente, recentemente, em Nova York, ao dizer que notificaria os órgãos multilaterais Mercosul e Unasul, caso o processo de impeachment prossiga.
Não satisfeita, foi além, passou um «pito» público nos ministros do Supremo Tribunal Federal, tão somente pelo fato de terem dito que o processo de impeachment tem obedecido ao rito proposto na Carta Constitucional e na legislação correlata.
A atitude de sua excelência se aproximou muito de atentar contra a existência da UNIÃO e foi, sem dúvida, uma clara intromissão na autonomia dos outros poderes. Ambos, crimes de responsabilidade de que trata a CF, em seu artigo 85.
Os que propagam a tese contra o impeachment dizem que estão fazendo isso como uma defesa da democracia.
Acho muito interessante que digam isso. Acho interessante porque as pessoas que dizem estarem defendendo a democracia são as mesmas que, sem mudar de camisa, envergando a mesma camisa vermelha, defendem com unhas e dentes, a quase ditadura venezuelana, de Nicolás Maduro e a ditadura cubana, dos irmãos Castro ou a norte-coreana, de Kim Jong-Un.
Com relação a esta última, um dos partidos que dizem defender a democracia, o Partido Comunista do Brasil – PC do B, não faz muito tempo, emitiu uma moção de apoio.
Será que acham que a Venezuela, Cuba ou a Coreia do Norte, apenas para ficar nestes exemplos, são democracias avançadas?
Nos dias de hoje, a ditadura norte-coreana é uma das maiores ameaças à paz mundial. Dia sim, dia não, seu menino-ditador, a quem os nossos valentes defensores da «democracia» rendem homenagens, faz testes nucleares, ameaça os países vizinhos, massacra seu povo e condena seus opositores as penas mais horripilantes, extensivas aos membros de suas famílias.
Alguém conhece castigo mais cruel que uma pena passar da pessoa do condenado? Atingir, mulheres, irmãos, filhos, pais, adultos, jovens, idosos e crianças?
Como disse, gosto de conceitos simples.
Assim, quando defendo a democracia, o faço como conceito universal, algo que valha para todos os seres humanos. Não consigo ver sentido em dizer que defendem a democracia aqui, e confraternizar e apoiar regimes totalitários ao redor do mundo, que massacra por questão de gênero, que mata devido à situação sexual das pessoas, que oprime opositores, que prendem pessoas que nada fizeram, etc.
Assim como defendo a democracia como um valor universal, repudio com todas as minhas forças a tortura.
Não tenho respeito por nenhum torturador ou por quem os defende. Reputo a tortura como a mais abjeta das práticas. Mas faço isso em relação à todos. Tanto aos torturadores da ditadura brasileira quanto aos demais ao redor do mundo, sejam eles de direita ou esquerda, para mim sempre serão animais, sub-humanos.
Entendo não fazer sentido alguém se mostrar indignado com os torturadores brasileiros, reconhecidos pela justiça como tais, e manter obsequioso silêncio em relação a outros torturadores também reconhecidos como tais.
Existe algo mais estúpido que protestar contra a tortura vestido numa camisa com a estampa de Guevara ou dos irmãos Castro?
Achar normal o encarceramento por crime de opinião ou que se leve opositores ao paredão de fuzilamento tem a mesma bestialidade que dedicar um voto a um torturador.
Quem assim age, ao menos para mim, não são democratas, são apenas hipócritas ou ignorantes.
Abdon Marinho é advogado.