TRISTEZA E NOSTALGIA.
COMO todos desta ilha, quiçá do estado, assisti com incomum tristeza a tragédia que vitimou uma criança no Município de Paço do Lumiar, na região metropolitana da capital. Impossível que um fato tão bárbaro não nos comova e nos faça refletir.
Afinal, que mundo é este em que vivemos? Como, crianças que deveriam ser protegidas por todos encontram o abuso, a violência e a morte? O que, afinal, se passa com a humanidade? Viramos bestas humanas?
Volto no tempo para lembrar o quanto éramos felizes na nossa infância e adolescência.
Morávamos no interior, primeiro no povoado e depois na sede.
Com seis ou sete anos lá estava eu, ainda com minhas limitações (ou apesar), subindo nas goiabeiras, nas mangueiras, nos cajueiros ou nos pés de ingá para colher as frutas da época e comer lá em cima mesmo.
Bastava passar no calção que estavam prontas para consumo.
No inverno brincávamos nos igarapés e açudes. Uma bóia de pneu era companhia para ficar horas dentro d’água; às vezes saímos para passarinhar com nossas baladeiras e bornais cheios de pedrinhas como munição; ou pescar com anzol.
Devo confessar que nunca fui muito bom passarinhar ou pescaria, mas valia pela ocupação da mente.
Lembro que fazíamos nossos próprios brinquedos. Uma lada de óleo “Du Reino”, uma velha “japonesa” (que era como chamávamos as sandálias), uma tábua e alguns pregos, viravam um carrinho que podíamos puxar para cima e para baixo; uma cachopa de tuncum, babaçu ou macaúba, sem muito trabalho, virava um carrinho de rolimã que usávamos para escorregar ladeira abaixo, manhãs ou tardes inteiras subindo e descendo as ladeiras mais íngremes (vejo, hoje, as pessoas pagando para descer aquelas dunas no Rio Grande do Norte e lembro que já fazíamos isso há mais de quarenta anos); e tinha ainda o esconde-esconde, o jogo de peteca ou de piões (eu mesmo fazia belos piões), o cancão.
Nossos dedos, pernas, costas eram laceradas pelos cortes, pelo arame farpado das cercas eram testemunhas. Cortávamos um dedo, enterrava na terra até estancar o sangue.
E, já trabalhava, ia com meu pai ou outro adulto, buscar em outros povoados ou roças longínquas, o arroz que fora comprado “na folha”. Eram quilômetros e quilômetros encima de uma cangalha, por veredas fechadas, pagávamos o arroz, fechávamos os sacos com barbante e voltávamos para casa, sobre a carga.
Não raro, ia buscar o gado na quinta para levá-lo ao curral.
Eram anos de fartura, tínhamos as galinhas, os ovos, os capões, os porcos, cabras, umas reses. Da roça saia o arroz que era seco, torrado e “pilado” em pilões, o feijão, o milho, a abóbora, melões e as melancias. Sem luz elétrica, os pedaços de carne ou toucinhos eram armazenados em latas grandes de gordura de porco.
Nas noites de luar, ficávamos até mais tarde debulhando o milho ou feijão, enquanto ouvíamos um rádio de pilha, no estilo jabuti, ou ouvindo os causos.
Mais “velho”, já com nove ou dez anos e morando na sede do município (Governador Archer e depois Gonçalves Dias), os dias eram mais divididos: manhãs no colégio e a tarde e noite nas brincadeiras, nos quadrinhos.
Eram jogos de peteca, queimado, tantos outros. Lia com avidez, quadrinhos da turma da Mônica, Pato Donald, Tio Patinhas (meu favorito, até hoje).
Já começava a ler, também, obras mais sérias, os clássicos da literatura mundial, brasileira e também sobre a mitologia grega.
E, ainda, devo confessar, as revistinhas de sacanagem, muitas com páginas coladas por substâncias estranhas. Pegávamos estas revistas dos mais velhos e as tínhamos escondidas em lugares altos ou debaixo de colchões.
Naquela época, com dez ou onze anos, já morando em Gonçalves Dias, pegava minha “monareta” (um tipo de bicicleta), e descia, sozinho, rumo ao Centro Novo, nosso povoado de origem, distante cerca de 6 km (até me surpreendo com estas lembranças: não sei como pedalava doze quilômetros e não morria), para visitar os parentes ou mesmo só para passear.
Essa farra toda até meus doze anos, quando meu pai colocou uma quitanda e a entregou para tomar de conta, já era um “adulto” fazia o ginásio, no turno da noite, no Colégio Bandeirante.
O dia passava no comércio, vendendo cachaça, fumo de rolo, cigarros, quartas de café, óleo, açúcar, dindins, e outros produtos, todos pesados e medidos por mim.
Nos horários mais vagos, usava o tempo jogando damas, lendo quadrinhos, “bolsilivros”(como chamávamos os livros de bolso) ou mesmo livros comuns, história, geografia, literatura.
Além da conivência diária com bêbados, raparigas e todo tipo de gente, à noite, na volta das aulas, que iam até as nove e meia ou dez horas, voltava, muitas vezes sozinho ou com os amigos, pela rua dos cabarés e até encostávamos em alguns.
A minha quitanda, aliás, ficava do lado da casa de uma rapariga. Inúmeras foram às vezes que me pediu fiado durante o dia para pagar com o apurado da noite. Eu, e todos, sabíamos, não era segredo, o que ela fazia a noite para amanhecer com o dinheiro no dia seguinte.
Isso tudo durou até vir para São Luís, fazer o segundo grau no Liceu Maranhense. Mesmo na ilha, com quinze anos, andava a cidade toda, saia do Liceu e ia até a Casa do Estudante, no final da Rua do Passeio, ou ia para a Praça Gonçalves Dias, onde ficava até oito ou nove horas.
Fazia isso sozinho ou com alguns colegas. Às vezes até íamos ao Bairro de Fátima, tido como violento na época, andando pé quilômetros, passando vielas ou becos, outras vezes descíamos a Camboa, como escudo, só a farda do colégio.
Nada nos acontecia. Não éramos molestados ou importunados. Saíamos de casa e voltávamos quando queríamos, às vezes, só avisando, quando tínhamos uma ficha telefônica, que iríamos chegar mais tarde. Já aqui em São Luís, que tinha telefone, no interior, saíamos e voltávamos só tendo o cuidado de está em casa no horário das refeições.
Lembro que no interior, durante o dia as portas das casas ficavam abertas, a noite apenas encostadas com uma cadeira, o último a entrar passava a chave.
Não tínhamos a preocupação de andar olhando em volta, com medo.
Fomos criados assim, com essa liberdade, confiança.
Eu vendia cachaça, conhaque, pitu, fumo, cigarros, o dia inteiro, nunca tive a curiosidade de beber ou fumar. Outros vícios, nem cogitávamos da existência.
Assisto o horror dos nossos dias, com crianças presas dentro casa, vivendo em bolhas, sem conseguir pegar um ônibus, sem ir numa venda, sem conhecerem nada vida.
Fico pensando como foi que nos tornamos estes tipo de sociedade, com tanta violência, quando crianças, jovens, mesmo os adultos ou velhos, não estão seguros nem dentro de casa, trancados.
Fico pensando no quanto minha infância e adolescência foram felizes apesar de todas as restrições físicas e/ou financeiras.
Certamente já fomos pessoas bem melhores.
Abdon Marinho é advogado.
TRISTEZA E NOSTALGIA.
Escrito por Abdon Marinho
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