AbdonMarinho - O DIREITO E A ANGÚSTIA DA DEFESA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sábado, 23 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

O DIRE­ITO E A ANGÚS­TIA DA DEFESA.

O DIRE­ITO E A ANGÚS­TIA DA DEFESA.
Por Abdon Mar­inho.
NOS primeiros anos que se seguiram a rede­moc­ra­ti­za­ção do Brasil, a médica Maria Aragão con­vi­dou para um ciclo de palestras o líder comu­nista Luís Car­los Prestes. Ado­les­cente, envolvido com o movi­mento estu­dan­til, par­ticipei de um destes debates que ocor­reu no auditório da Bib­lioteca Pública Bened­ito Leite, um lindo espaço local­izado na cúpula daquela casa, no ter­ceiro andar.
Em um dos momen­tos da palestra o líder comu­nista nar­rou sobre a sua relação com o advo­gado Herá­clito Fon­toura Sobral Pinto. Pes­soas, abso­lu­ta­mente dis­tin­tas, o comu­nista que tinha como defen­sor o advo­gado católico prat­i­cante e con­sid­er­ado, politi­ca­mente, con­ser­vador, porém, fer­renho defen­sor dos dire­itos humanos.
Ainda, na opor­tu­nidade, contou-​nos que na sua defesa, quando preso por ter lid­er­ado o lev­ante comu­nista de 1935, aquele ícone da advo­ca­cia, à mín­gua de qual­quer leg­is­lação que socor­resse seu cliente, valeu-​se da lei de pro­teção aos ani­mais, o Decreto Lei 24.645÷34, san­cionado pelo próprio Getúlio Var­gas, coman­dante do gov­erno que o man­dara pren­der, a ditadura do Estado Novo.
Mais de trinta anos depois, ocorreu-​me esta lem­brança diante da polêmica situ­ação de um colega advo­gado que, tam­bém, na defesa de um dire­ito de seu cliente, bus­cou no remé­dio hero­ico, o habeas cor­pus, a lib­er­ação de um veículo e, por conta disso, sofreu uma vio­lenta repri­menda – gros­seira e desproposi­tada – por parte do jul­gador que exam­inou a matéria. Tendo o jul­gador, num claro excesso, recomen­dado que o causídico fosse sub­metido a novo exame de ordem, ou que se ado­tasse outra medida, igual­mente jocosa e revestida de humil­hação e con­strang­i­mento ao advo­gado e à advo­ca­cia.
A polêmica alcançou-​me no tra­jeto para uns com­pro­mis­sos em Caru­ta­pera e Luís Domingues – mais uma vez. Uma mera coin­cidên­cia ou uma com­pro­vação de que estou indo demais ao extremo norte do estado.
Enquanto per­cor­ríamos o longo tra­jeto (tanto ida quanto volta), pen­sava sobre a situ­ação: o quanto às vezes, a vida, as opções, nos pregam peças e nos trazem cer­tos diss­a­bores.
Decerto que o colega con­hece os lim­ites do remé­dio con­sti­tu­cional. Mas, não se pode olvi­dar que mesmo teve a pre­ten­são de ver “livre” o veículo para o cliente – um cidadão, já alque­brado pelos anos –, que uti­lizava o bem que dis­punha para se loco­mover, sendo pri­vado de tal dire­ito pelo retardo do Estado.
Será que apelaria para medida tão rad­i­cal se o Estado (aqui incluso tam­bém o estado-​juiz) tivesse agido de forma célere e enten­dido que por trás de uma demanda exis­tem vidas depen­dendo de uma solução? Estou certo que não.
Mas, como não se angus­tiar quando vemos medi­das – mesmo as mais sin­ge­las –, como um sim­ples despa­cho, um “cite-​se”, “mor­garem” nas prateleiras do Judi­ciário? Quando, diante de tanta neces­si­dade, um alvará não ser emi­tido sem uma causa plausível que não a preguiça? Como achar nor­mal que uma mísera perí­cia em um veículo, pas­sa­dos mais de 45 dias, resta sem ser feita? Have­ria algo a ser peri­ci­ado, depois de tanto tempo, com o veículo sofrendo as intem­péries da natureza, ao relento, pegando sol e chuva? Como explicar tais coisas ao cliente, quando o que ele reclama é algo tão sim­ples como ter um bem que com­prou, pagou e dele neces­sita para se loco­mover?
Que atire a primeira pedra o que nunca se indig­nou com a falta sen­si­bil­i­dade e mesmo senso de justiça de tan­tos que operam o dire­ito.
Busquei na memória. Ainda não tinha um ano advo­gando (já se vão mais de vinte) quando, cuidando de uma cam­panha eleitoral, chegou-​me um caso curioso: a emis­sora de tele­visão respon­sável pela ger­ação da pro­pa­ganda, ao nosso sen­tir, nunca cumpria como devia ou retar­dava no cumpri­mento as pou­cas vitórias que obtín­hamos.
Um dia, já indig­nado (a palavra a ser usada dev­e­ria ser outra) pedi ao juiz que deter­mi­nasse a prisão da pres­i­dente da emis­sora.
Ora, sabíamos que não havia qual­quer amparo à pre­ten­são, que, nos ter­mos da lei, dev­eríamos fazer uma rep­re­sen­tação ao min­istério público e que este, se enten­desse, faria uma denún­cia, que cer­ta­mente não daria em nada.
Naquela opor­tu­nidade, ouvindo reclames diver­sos, pré­cisá­va­mos, ao menos, ten­tar estancar os pre­juí­zos que está­va­mos tendo. Foi o que fiz.
Algum tempo depois, con­ver­sando com Wal­ter Rodrigues, tocamos no assunto e ele foi categórico: — Abdon, fizestes muito bem. Pela primeira vez na vida alguém teve a cor­agem de pedir a prisão Teresa Murad Sar­ney. Só mesmo você.
Não sei se disse isso como um chiste ou como um elo­gio.
O ver­dadeiro advo­gado não tem medo de, respei­tando os lim­ites da lei, pedir e cla­mar pelo dire­ito do seu cliente. Pelo con­trário, é a sua obri­gação.
O próprio Sobral Pinto já pon­tu­ava que a advo­ca­cia não era lugar para covardes.
Advo­ga­dos, não podemos, não deve­mos e não temos o dire­ito de nos aco­modar­mos, de não ousar­mos. Não podemos nos “bito­lar­mos” a só faz­er­mos aquilo que con­sta nos man­u­ais.
A ver­dadeira Advo­ca­cia com “A” é auda­ciosa e ousada. A par­tir das deman­das soci­ais trans­forma o dire­ito.
Não podemos, diante das neg­a­ti­vas ou das pre­ten­sões não aten­di­das, nós sen­tar­mos no meio-​fio e choramos, pelo con­trário, temos que con­tin­uar a luta até as instân­cias der­radeiras, até nos faz­er­mos ouvir.
Lem­bro que não faz muito tempo, acho que na eleição de 2016, chegou-​nos um caso em que, pelas vias ordinárias, já tín­hamos ten­tado tudo para reverter, sem con­seguir. Como a argu­men­tação tinha origem numa decisão do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, chamei os cole­gas e disse: — vamos fazer uma recla­mação ao Supremo. A reação deles foi: — tu é doido, onde já se viu ocu­par o Supremo com isso; não será con­hecido, etc.
Respondi-​lhes pior do que perder era não ten­tar­mos, não usar­mos de tudo que podíamos para resolver o réclame do cliente. Bem, para encur­tar a história, fize­mos a recla­mação e o Supremo não a con­heceu. Mas ten­ta­mos.
A Sobral Pinto só restou, segundo o próprio cliente, o decreto-​lei san­cionado para a pro­teção dos ani­mais. Será que não dev­e­ria usá-​lo? Será que foi ridículo fazê-​lo? Estou certo que não.
Conta o ane­dotário jurídico que, certa vez, no próprio Supremo, Rui Bar­bosa, defendeu, pela manhã uma tese, tendo obtido vitória e, à tarde, por ocasião de outra sus­ten­tação, defendeu uma tese que se opunha à primeira. Um dos min­istros o ques­tio­nou: — Dr. Rui, mais cedo o sen­hor defendeu uma tese diame­tral­mente oposta à esta.
O baian­inho, então, saiu-​se com esta: — Vossa Excelên­cia tem razão. Mas, na sessão da manhã eu estava errado.
Talvez seja ape­nas uma piada ou causo com o gênio do dire­ito brasileiro e tal fato nunca tenha se dado. Entre­tanto, estou certo que ele, difer­ente do afir­mado pelo mag­istrado, não se enver­gonharia da ati­tude do colega que, ante à sur­dez cos­tumeira da Justiça, teve de valer-​se do instru­mento excep­cional do Habeas Cor­pus na intenção de per­mi­tir que seu cliente pudesse se loco­mover em seu veículo.
Aliás, registre-​se, não foi a primeira vez que se fez uso de tal instru­mento para “lib­er­tar” coisas. Um caso, famoso pela sen­si­bil­i­dade – tanto do advo­gado quando do juiz –, foi o céle­bre “Habeas Pinho”, onde o advo­gado e boêmio Ronaldo Cunha Lima, em forma de poema, peti­cio­nou pela liber­dade do seu vio­lão e o juiz, igual­mente, em poema, o deferiu.
Eram out­ros tem­pos. Quando havia o respeito mútuo, quando mag­istra­dos se per­mi­tiam fazer poe­mas; quando o desejo de ver valer o bom dire­ito era supe­rior ao direto de fazer valer o inter­esse próprio e as próprias vaidades; quando a Justiça tinha o dire­ito de se fazer respeitar sem que lhe fosse apon­tado os próprios descam­in­hos.
Encerro estas pou­cas lin­has que escrevo a bordo do fer­ry­boat Baía de São José, que já se aprox­ima da Cidade de São Luís, não sem antes hipote­car minha total e sol­i­dariedade ao colega que, com deste­mor, ousou ir além dos lim­ites do foi ensi­nado nos ban­cos esco­lares. E, faço isso enquanto lamento o fato do mag­istrado haver se tor­nado, infe­liz­mente, ele próprio – que tem o dever zelar pelas boas relações e paci­ficar a sociedade – um pri­sioneiro das fór­mu­las e man­u­ais.
Abdon Mar­inho é advogado.