A PROFECIA DE RUI BARBOSA OU UMA NAÇÃO DE CONCEITOS INVERTIDOS.
O VELHO Rui Barbosa, baiano de Salvador, a Águia de Haia, jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador. Em suma, um dos mais brilhantes intelectuais de sua época que cunhou, como um espécie de profecia: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
Faltando poucos anos para o centenário da morte do intelectual, que ocorrerá em 2023, nunca, como no Brasil de agora, suas palavras pareceram tão apropriadas.
Lembrava delas ao refletir sobre as reações a uma medida adotada pelo juiz de direito Carlos Roberto de Oliveira Paula em renunciar as vantagens que não considerava em acordo, ao menos em tese, com os preceitos constitucionais.
Com um senso de justiça extremamente aguçado e a coragem de enfrentar homéricas batalhas contra o status quo, contra o conformismo que toma de conta da sociedade brasileira, não titubeia mesmo em tomar as medidas que a sociedade não compreende, como colocar presos em prisões domiciliares ou mesmo mandar soltá-los quando o Estado não permite que as penas sejam cumpridas em condições minimamente dignas. Ou quando enfrenta a própria administração da Justiça se esta lhe nega direitos, seus e de outrem. Os exemplos são as vezes que bateu as portas do Conselho Nacional de Justiça reclamando disso ou daquilo. Com vitória ou com derrota, mas sem medo de enfrentar o bom combate.
No mesmo dia que protocolou sua renúncia aos “penduricalhos”, comunicou-me a decisão: – Abdon, acabo de renunciar aos auxílios concedidos aos magistrados. Por ter convicção de que estão errados, recebê-los vinham me consumindo.
Perguntei se estava preparado para as reações que iria enfrentar dos seus colegas e as incompreensões.
Disse-me que sim. Não estava.
Cerca de duas semanas após o protocolo da renúncia o reencontrei e me narrou os momentos de profunda angústia que passara em virtude das inúmeras agressões e incompreensões sofridas.
Mais do que nota da associação acusando-o de hipocrisia, pesou no seu desalento as manifestações contrárias dos colegas, muitos deles, bem próximos de si. Como se fazer a coisa certa fosse o errado.
E veja que apenas protocolou um requerimento pedindo a retirada dos auxílios que considera indevidos. Uma opção exposta ao presidente do Tribunal de Justiça e da qual não fez qualquer proselitismo. Disse que renunciava e pediu ao presidente que fossem retiradas, Ponto.
A reação foi algo estupefaciente, os magistrados, homens da lei, são sabedores do mandamento constitucional de que devem ser remunerados em parcela única, com as exceções devidamente estabelecidas no mesmo mandamento.
A série de auxílios disso ou daquilo (um tribunal até instituiu um folclórico auxilio peru), soa como uma agressão à sociedade brasileira, já exausta de tanto pagar tributos, para custear uma máquina administrativa cada vez maior.
Nenhum poder, menos ainda o Poder Judiciário – que é a derradeira trincheira da cidadania –, pode se permitir que alguma dúvida paire sobre a idoneidade de seus membros.
Os tais “auxílios extras” ou penduricalhos destoam do papel que queremos e desejamos ver desempenhado pelos magistrados nacionais.
A iniciativa do magistrado Roberto de Paula chama a atenção para esta inconformidade (para não dizer nome pior).
Como conceber que promotores promovam e juizes julguem, por exemplo, improbidade administrativa de gestores se eles próprios têm receitas questionadas pela sociedade?
As tais vantagens percebidas ainda que legais (e falta decidir sobre isso), certamente destoam do quadro social do país.
Os veículos de comunicação informam um aumento considerável da pobreza dos cidadãos, são famílias inteiras morando nas ruas, são quase 13 milhões de desempregados. Até ressuscitaram a “Campanha Natal Sem Fome”, criada pelo sociólogo Betinho em décadas pretéritas.
Como justificar o recebimento de auxilio moradia para um magistrado ou promotor que possui residência no mesmo município que exerce função? Ou caso daqueles casados com outro integrante da magistratura ou do Ministério Público? Os dois recebem? O que dizer, ainda, do inusitado auxilio peru?
Como podemos ver, a incursão do Poder Judiciário para seguir o mau exemplo de outros poderes em “driblar» o teto de ganhos estabelecidos pela Carta Constitucional criou, em prejuízo ético e moral dos seus membros, uma série de situações vexatórias e injustificáveis que a sociedade tem censurado.
O desconforto no seio do Judiciário não foi e não é causado pelo fato de um ou mais dos seus membros se recusarem a perceber uma vantagem que não considera justa – a partir da leitura que faz das leis e do quadro social –, mas sim pela existência destas vantagens.
São elas que expõe o Poder Judiciário a questionamentos diversos – e nem falemos de tantas outras coisas que são noticiadas quase diariamente.
Ao meu sentir, falta comedimento, bom senso e a compreensão dos servidores de Estado de eles existem para servir a sociedade, o Estado. A sua missão é como um sacerdócio a exigir abnegação e desprendimento.
É o que penso.
Abdon Marinho é advogado.