O SUPREMO E A QUEDA DO MURO DE BERLIM.
Por Abdon Marinho.
NÃO GOSTARIA – e não deveria –, a falar sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal — STF e os seus desdobramentos, ainda mais de fazê-lo em tão curto espaço de tempo entre este texto e o que já escrevi dedicado ao tema.
Esperava ter esgotado o assunto ou, então, só precisar falar lá na frente, quando já conhecêssemos os frutos da decisão.
Como nem sempre somos sempre somos senhores dos nossos quereres ou donos das nossas vontades, eis-nos aqui novamente.
O julgamento permanece um assunto “vivo”. Por onde passamos somos questionados sobre ele. Diferente de outros julgamentos que passados a fila anda – e a fila de processos é imensa –, este permanece a vagar e a despertar controvertidas paixões.
Os favoráveis já festejaram – e continuam a festejar –, a soltura de seus criminosos de estimação, potentados que dificilmente voltarão a conhecer as dependências internas dos cárceres – pelo menos enquanto possuírem dinheiro, obtidos ou não de forma lícita.
Os contrários preparam suas “armas” chamando manifestações públicas, propondo medidas no Congresso Nacional para mudar a lei e, até mesmo, a Constituição da República.
Como assentado em texto anterior, uma decisão em que bastou uma “virada de toga” para o que era água transformar-se em vinho, e, que em 31 anos de existência, só em curto período se entendeu de forma distinta ao entendimento recentemente adotado, não clama por uma mudança constitucional e, sim, por uma mudança no entendimento dos julgadores, o que será conseguido com o passar do tempo – que é inclemente e igual para todos –, ou com o clamor das ruas, que põe abaixo, inclusive, coisas bem mais sólidas.
A mudança de entendimento do Supremo sobre a constitucionalidade do cumprimento antecipado de pena (construção que acho imprópria, uma vez que alguém condenado por duas instâncias, três ou quatro, entendo não ser cabível dizer que está “antecipando” o cumprimento da pena) numa daquelas infelizes coincidências, “casou” com o noticiário sobre a comemoração do trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim – que pôs fim ao que ficou conhecido como “guerra fria”, a divisão material do mundo entre capitalistas ou ocidentais e socialistas ou orientais.
Durante quase trinta anos o muro que dividiu a antiga capital da Alemanha, separou um mesmo povo, suas famílias, seus amigos e pelo qual muitos pereceram na tentativa cruzá-lo, de repente caiu. Ou, já vinha caindo aos poucos, e naquele 09 de novembro de 1989, apenas teve seu desdobramento final.
Lembro de haver acompanhado aqueles fatos que se desenrolavam no “outro lado do mundo” quase que ao vivo, pela cobertura da televisão, do rádio e dos jornais – mas ainda muito distante da instantaneidade dos dias atuais.
O julgamento do STF teve seu desfecho apenas dois dias antes do trintenário da queda do muro. O noticiário se dividiu entre as duas coberturas revelando detalhes do julgamento, posicionamento dos ministros em julgamentos anteriores, situações em que foram contra ou a favor e as histórias das pessoas das duas Berlim, seus sofrimentos, seus dramas, como foram suas vidas do lado lá e de cá da “cortina de ferro”.
Como, em 1989, acompanhei a “história acontecer” me pus a recordar daqueles dias.
A queda do Muro de Berlim, deu-se poucos dias antes do segundo turno das eleições presidenciais, a primeira ocorrida depois de vinte e cinco anos, os 21 anos da ditadura e os cinco do governo civil de Sarney.
A disputa se dava entre Fernando Collor, representante da direita e Luís Inácio Lula da Silva, representante da esquerda. Ambos foram presidentes da República, naquela eleição Collor levou a melhor. A queda do muro influenciou o resultado? É possível que sim, o assunto foi explorado à exaustão.
Nos meus vagares passei a encontrar similitudes entre os dois acontecimentos: a queda do Muro de Berlim e o Julgamento do Supremo.
Para começar, os dois candidatos que estavam em trincheiras opostas naquela disputa de trinta anos atrás, agora são beneficiários diretos do julgamento do STF. E mesmo Sarney alvo dos dois naquele pleito não deixou de somar na convergência de interesses.
O Lula, preso e respondendo a quase uma dezena de processos, já foi solto e não corre mais o risco de voltar ao cárcere nesta encarnação.
Já o Collor igualmente respondendo a uma “penca” de processos mas “escondido” no biombo do mandato parlamentar, nunca viu e, agora, mesmo nunca terá o dissabor de conhecer, como hóspede, as dependências internas da repartição pública já habitada por Lula.
Ambos respondendo por crimes graves, mas até nisso o antigo “mauricinho” levou a melhor.
Como lembrávamos – e agora nos fizeram recordar a exaustão –, a queda do Muro de Berlim foi precipitada por uma informação equivocada. Nos dias e semanas que precederam a queda do muro, protestos em diversas cidades da Alemanha Oriental clamavam por mais liberdade, apesar de viverem em um brutal atraso cultural no lado oriental, recebiam influência direta do outro lado muro através dos sinais clandestinos das emissoras de rádio e televisão.
Os burocratas do estado alemão oriental reuniram-se e, para diminuir a pressão, decidiram que iriam permitir visitas supervisionadas e reencontro entre os familiares separados que não se viam há anos.
Na hora de transmitir essa informação, o porta-voz, que não estivera presente à reunião, não transmitiu da melhor forma a decisão tomada e, a uma pergunta de um jornalista sobre quando começariam a permitir a visita dos cidadãos orientais ao lado ocidental da cidade, respondeu: — imediatamente!
Foi o que bastou para que os cidadãos corressem para os postos de passagem da fronteira sem que os guardas pudessem fazer nada. Já na mesma noite cidadãos comuns, com martelos e picaretas, começaram a derrubar o muro da vergonha.
No dia seguinte aquela que foram a fronteira mais segura e vigiada do mundo apresentava-se com vários pontos abertos e livres para o trânsito, os guardas já não tinham razão para ocupar seus postos.
A exemplo dos burocratas do Partido Comunista Alemão, a maioria dos ministros do STF também passaram uma mensagem à patuleia. Suas excelências decidiram que “ninguém” pode ser preso enquanto não sobrevier o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, conforme estabelece o inciso LVII, do artigo 5º, da Carta Constitucional.
Conforme aprendemos no primário, nas aulas da professora Margarida, o pronome indefinido “ninguém” destina-se a qualquer pessoa. Logo quando dizemos “ninguém” será sujeito a isso estamos dizendo que nenhuma pessoa se sujeitará a tal coisa.
Mas, tal qual os burocratas do Partido Comunista Alemão, ao assentirem ser inconstitucional a prisão antes de se esgotarem todos os infinitos recursos na derradeira instância da justiça, suas excelências não desejam que tal “benefício” se aplique a todos, neste caso, o “ninguém” contido na mesma Carta Constitucional “ganha” significado relativo, ou seja, ninguém, diferente do que aprendemos nas aulas do primário, não se aplica a quaisquer pessoas.
Neste caso, para que a estratégia dos ministros dê certo, os guardas da fronteira, digo, os juízes das instâncias iniciais, terão que segurar a turba. Vale dizer, embora ninguém possa ser preso até que ocorra o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, os magistrados das instâncias iniciais terão que decretar prisões preventivas, sob pena de se instalar portas-giratórias nos presídios.
O Supremo Tribunal Federal criou a esdrúxula situação em que o cumprimento de pena após condenação antes do trânsito em julgado é inconstitucional mas que é constitucional a prisão preventiva decretada pelo juiz de primeiro grau antes de qualquer condenação, e, depois, após a conclusão da instrução processual.
Ora, os juízes têm o dever de se manifestar sobre a necessidade de manutenção da prisão preventiva em diversos momentos quando a mesma é cabível, agora, diante da decisão do Supremo, em nome da paz social terão que decretá-la até quando não seja cabível, sob pena de levarem o país ao caos, com a soltura de todos que cometerem delitos. Sem contar que o próprio STF já decidiu que não se pode levar em consideração na decretação a gravidade do delito.
Noutras palavras, criaram as condições para o “rabo balançar o cachorro”.
Não me parece razoável que se diga ser inconstitucional que alguém passé a cumprir a pena após condenação em duas instâncias, pelo menos, mas se ache legal a manutenção ou decretação de prisão preventiva quando o réu já foi condenado e não representa mais qualquer risco a instrução processual ou à paz social.
Como no caso do muro de Berlim não podemos precisar quanto tempo esse tipo de novidade resistirá.
Conforme dissemos – bem lá atrás –, o Brasil vive sob a égide de um “pacto das elites” envolvendo os líderes dos três poderes da República e do Ministério Público, tanto assim que mesmo diante dos maiores absurdos todos fingem que nada acontece e trabalham em conjunto para colocarem no “gueto” as vozes dissonantes.
Agora mesmo, tantos os aliados do presidente Bolsonaro quanto os aliados do ex-presidente Lula, trabalham juntos para silenciar as ruas contra o pacto de impunidade que celebraram com a conveniência dos demais signatários.
O Brasil precisa “derrubar” esse muro se quiser conquistar a democracia.
Abdon Marinho é advogado.