A defesa da Constituição e a hipocrisia.
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- Criado: Sábado, 09 Novembro 2019 16:59
- Escrito por Abdon Marinho
A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO E A HIPOCRISIA.
Por Abdon Marinho.
O Supremo Tribunal Federal — STF decidiu ser inconstitucional o cumprimento antecipado da pena após o julgamento em segunda instância no oposto do decidira há apenas três anos, quando assentou que tal antecipação não era inconstitucional.
O tribunal – a exceção de um dos seus membros, Alexandre de Moraes, que ingressou na corte após aquele entendimento, mas manteve a posição do seu antecessor –, é o mesmo, bastou apenas que um dos seus integrantes “virasse a toga” para o que era constitucional virar inconstitucional, no caso, quem mudou de posição foi o ministro Gilmar Mendes, respeitado como um dos maiores constitucionalistas do país, autor de livro que sustentando haver constitucionalidade no cumprimento antecipado da pena e que, no julgamento anterior, dizia que o Brasil ao adotar aquele entendimento estava se aproximando do “mundo civilizado”.
Agora, sem muitas explicações sobre a mudança de entendimento, inverteu a posição da Corte.
Uma decisão da mais elevada Corte do país formada no “voto de minerva” é algo sobre a qual devemos refletir.
Apenas um voto alterou a jurisprudência do STF, sendo que este voto foi o mesmo que formou o entendimento anterior e o presidente do tribunal ao desempatar ainda tentou uma alternativa salomônica tal qual já havia votado noutras ocasiões dando vitória à nova minoria, mas sem êxito.
A corte saiu dividida. A nação mais dividida ainda.
As paixões nunca foram boas conselheiras, por isso mesmo devemos analisar os fatos longe dos seus calores.
Nos últimos trinta anos o tribunal apenas deixou de entender ser o cumprimento antecipado da pena era constitucional no intervalo de 2009 a 2016 – apesar de muitos serem levado ao cárcere antes do trânsito em julgado de seus processos –, e, a partir de agora.
Algumas perguntas precisam ser respondidas: durante todos aqueles anos os ministros foram ignorantes ao cumprimento da Constituição da qual são guardiões? Durante todos os anos onde estavam estes que agora batem no peito dizendo que, finalmente, o Brasil voltou ao trilho constitucional? O que faziam enquanto milhares de brasileiros iam ao cárcere após o julgamento em primeira instância, segunda instância ou ficavam presos provisórios indefinidamente? Os ministros vencidos ao sustentarem ser possível o cumprimento antecipado da pena são indignos de permanecerem como tais, pois defensores de tese contrária ao mandamento constitucional?
Sempre digo que devemos ser cautelosos com o que desejamos ou com o que expomos.
Com efeito a Constituição da República é clara ao estabelecer no artigo 5º, cláusula pétrea, portanto: “LVII — ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”
Os que estão festejando, como uma vitória de final de copa, o fato do cidadão não poder ir para a cadeia cumprir sua pena mesmo que já tenha sido condenado por duas instâncias da justiça, talvez estejam festejando por não terem lido o inciso completo. Ele começa com ninguém.
A Constituição da República, começa diversos incisos do artigo 5º, com o pronome indefinido ninguém, que significa nenhuma pessoa.
É assim com os incisos: II — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; VIII — ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; XX — ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; LIII — ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV — ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Estou certo que todos concordam que o pronome indefinido ninguém contidos nos incisos acima, como bem ensina a boa gramática, refere-se à nenhuma pessoa.
Assim, tenho por certo, que do mesmo modo é o “ninguém” do inciso LVII.
Na interpretação de que o cidadão só pode iniciar o cumprimento da pena após o trânsito em julgado não podemos esquecer que o mandamento se aplica a todos. Nenhuma pessoa, portanto, neste entendimento, deveria ser preso até que se esgotasse a possibilidade de intentar todos os infindáveis recursos previstos na legislação.
Não concordar que assim seja é corromper a Constituição Republicana. Afinal, também, consta como cláusula pétrea ínsita no “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza …”.
Quando o presidente do STF abriu a sessão de julgamento desta matéria, fez questão de dizer que o que estavam julgando não era algo direcionado a um cidadão, mas sim, um entendimento a ser aplicado a todos os brasileiros. Algo assim.
Pois bem, não faz muitos dias uma revista semanal digital, a Crusoé, relacionou diversos julgados destes mesmos ministros que entenderam que a prisão só pode acontecer após o trânsito em julgado, mantendo presos cidadãos que furtaram uma bermuda, um pote de manteiga, uma galinha ou mesmo alguns trocados.
Agora, desde a última decisão do STF pela “inconstitucionalidade” da prisão após condenação em segunda instância, assistimos ao desfile de corruptos de colarinho branco deixando a cadeia após serem condenados em segunda instância – e até terceira instância –, para que aguardem até à morte o trânsito em julgado dos seus processos.
Qual a diferença entre aqueles pobres coitados que roubaram para comer ou tomados pela necessidade da dependência química destes que sua conta e risco resolveram roubar milhões ou bilhões, conscientes de seus atos?
Qual a diferença entre o cidadão que matou uma pessoa, ainda que de forma dolosa, ou seja, com a intenção de matar, daquele que roubou milhões da saúde e provocou a morte de centenas ou milhares de cidadãos?
Qual diferença que há entre o traficante que leva o infortúnio a milhares de pessoas e as suas famílias daquele cidadão que roubou milhões da educação roubando sonho de milhões de jovens e até mesmo os entregando nas mãos dos traficantes?
Quero compreender que dar tratamento diferenciado a estes igualmente criminosos é verdadeiramente corromper a Constituição. Não admitir isso é ser hipócrita.
E recorro, como já fiz tantas vezes ao Sermão de Vieira: “Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome”. Padre Antônio Vieira, Sermão do Bom Ladrão.
Não existe norma acima da Constituição. Se o STF decidiu ser ofensivo à carta o cumprimento da pena sem que o condenado tenha esgotado toda sua capacidade recursal, deveria, de ofício, ter determinado a soltura de todos os que encontram na idêntica situação dos ricos que já aviavam seus apelos durante a sessão de julgamento.
Como disse o ministro Marco Aurélio Mello, relator da matéria, quem vai devolver um dia a mais que cidadão ficou preso indevidamente?
Vou além, o Supremo deveria, também, de ofício determinar a soltura de todos aqueles que não quiseram ou não puderam recorrer, porque acreditaram na impossibilidade de reversão de suas sentenças condenatórias à luz do entendimento anterior. Ninguém cumpre pena voluntariamente. Foram para o cárcere “enganadas” pelo Estado que lhe disse não haver possibilidade de mudança em suas sentenças. Esse mesmo Estado está “roubando” dias de liberdade destas pessoas.
Ao dizer que ofende a Constituição da República a manutenção de prisão sem que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o honesto a ser feito pelo STF é determinar a soltura de todos que não tiveram a chance de esgotar todos os recursos possíveis e mesmo dos presos provisórios ou aprisionados preventivamente, se ilícito manter preso quem já condenado uma, duas, três ou quatro instâncias o que dizer daquele que, embora preso preventivamente pode ser absolvido?
Conforme demonstrado acima a interpretação literal do dispositivo invocado para soltar os criminosos de colarinho branco é o mesmo que deveria ser invocado para esvaziar todas os cárceres do país uma vez, como já dito, não haver qualquer regra a desafiar o mandamento constitucional, nem mesmo a lei universal do bom senso.
Abdon Marinho.
P.S. A charge que ilustra o texto peguei emprestada do amigo Cordeiro Filho.