AbdonMarinho - A defesa da Constituição e a hipocrisia.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

A defesa da Con­sti­tu­ição e a hipocrisia.


A DEFESA DA CON­STI­TU­IÇÃO E A HIPOCRISIA.

Por Abdon Marinho.

O Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF decidiu ser incon­sti­tu­cional o cumpri­mento ante­ci­pado da pena após o jul­ga­mento em segunda instân­cia no oposto do decidira há ape­nas três anos, quando assen­tou que tal ante­ci­pação não era inconstitucional.

O tri­bunal – a exceção de um dos seus mem­bros, Alexan­dre de Moraes, que ingres­sou na corte após aquele entendi­mento, mas man­teve a posição do seu ante­ces­sor –, é o mesmo, bas­tou ape­nas que um dos seus inte­grantes “virasse a toga” para o que era con­sti­tu­cional virar incon­sti­tu­cional, no caso, quem mudou de posição foi o min­istro Gilmar Mendes, respeitado como um dos maiores con­sti­tu­cional­is­tas do país, autor de livro que sus­ten­tando haver con­sti­tu­cional­i­dade no cumpri­mento ante­ci­pado da pena e que, no jul­ga­mento ante­rior, dizia que o Brasil ao ado­tar aquele entendi­mento estava se aprox­i­mando do “mundo civ­i­lizado”.

Agora, sem muitas expli­cações sobre a mudança de entendi­mento, inver­teu a posição da Corte.

Uma decisão da mais ele­vada Corte do país for­mada no “voto de min­erva” é algo sobre a qual deve­mos refle­tir.

Ape­nas um voto alterou a jurisprudên­cia do STF, sendo que este voto foi o mesmo que for­mou o entendi­mento ante­rior e o pres­i­dente do tri­bunal ao desem­patar ainda ten­tou uma alter­na­tiva salomônica tal qual já havia votado noutras ocasiões dando vitória à nova mino­ria, mas sem êxito.

A corte saiu divi­dida. A nação mais divi­dida ainda.

As paixões nunca foram boas con­sel­heiras, por isso mesmo deve­mos anal­isar os fatos longe dos seus calores.

Nos últi­mos trinta anos o tri­bunal ape­nas deixou de enten­der ser o cumpri­mento ante­ci­pado da pena era con­sti­tu­cional no inter­valo de 2009 a 2016 – ape­sar de muitos serem lev­ado ao cárcere antes do trân­sito em jul­gado de seus proces­sos –, e, a par­tir de agora.

Algu­mas per­gun­tas pre­cisam ser respon­di­das: durante todos aque­les anos os min­istros foram igno­rantes ao cumpri­mento da Con­sti­tu­ição da qual são guardiões? Durante todos os anos onde estavam estes que agora batem no peito dizendo que, final­mente, o Brasil voltou ao trilho con­sti­tu­cional? O que faziam enquanto mil­hares de brasileiros iam ao cárcere após o jul­ga­mento em primeira instân­cia, segunda instân­cia ou ficavam pre­sos pro­visórios indefinida­mente? Os min­istros ven­ci­dos ao sus­tentarem ser pos­sível o cumpri­mento ante­ci­pado da pena são indig­nos de per­manecerem como tais, pois defen­sores de tese con­trária ao man­da­mento constitucional?

Sem­pre digo que deve­mos ser cautelosos com o que dese­jamos ou com o que expomos.

Com efeito a Con­sti­tu­ição da República é clara ao esta­b­ele­cer no artigo 5º, cláusula pétrea, por­tanto: “LVII — ninguém será con­sid­er­ado cul­pado até o trân­sito em jul­gado de sen­tença penal condenatória;”

Os que estão fes­te­jando, como uma vitória de final de copa, o fato do cidadão não poder ir para a cadeia cumprir sua pena mesmo que já tenha sido con­de­nado por duas instân­cias da justiça, talvez este­jam fes­te­jando por não terem lido o inciso com­pleto. Ele começa com ninguém.

A Con­sti­tu­ição da República, começa diver­sos incisos do artigo 5º, com o pronome indefinido ninguém, que sig­nifica nen­huma pes­soa.

É assim com os incisos: II — ninguém será obri­gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em vir­tude de lei; III — ninguém será sub­metido a tor­tura nem a trata­mento desumano ou degradante; VIII — ninguém será pri­vado de dire­itos por motivo de crença reli­giosa ou de con­vicção filosó­fica ou política, salvo se as invo­car para eximir-​se de obri­gação legal a todos imposta e recusar-​se a cumprir prestação alter­na­tiva, fix­ada em lei; XX — ninguém poderá ser com­pelido a associar-​se ou a per­manecer asso­ci­ado; LIII — ninguém será proces­sado nem sen­ten­ci­ado senão pela autori­dade com­pe­tente; LIV — ninguém será pri­vado da liber­dade ou de seus bens sem o dev­ido processo legal;

Estou certo que todos con­cor­dam que o pronome indefinido ninguém con­ti­dos nos incisos acima, como bem ensina a boa gramática, refere-​se à nen­huma pes­soa.

Assim, tenho por certo, que do mesmo modo é o “ninguém” do inciso LVII.

Na inter­pre­tação de que o cidadão só pode ini­ciar o cumpri­mento da pena após o trân­sito em jul­gado não podemos esque­cer que o man­da­mento se aplica a todos. Nen­huma pes­soa, por­tanto, neste entendi­mento, dev­e­ria ser preso até que se esgo­tasse a pos­si­bil­i­dade de inten­tar todos os infind­áveis recur­sos pre­vis­tos na leg­is­lação.

Não con­cor­dar que assim seja é cor­romper a Con­sti­tu­ição Repub­li­cana. Afi­nal, tam­bém, con­sta como cláusula pétrea ínsita no “Art. 5º Todos são iguais per­ante a lei, sem dis­tinção de qual­quer natureza …”.

Quando o pres­i­dente do STF abriu a sessão de jul­ga­mento desta matéria, fez questão de dizer que o que estavam jul­gando não era algo dire­cionado a um cidadão, mas sim, um entendi­mento a ser apli­cado a todos os brasileiros. Algo assim.

Pois bem, não faz muitos dias uma revista sem­anal dig­i­tal, a Cru­soé, rela­cio­nou diver­sos jul­ga­dos destes mes­mos min­istros que enten­deram que a prisão só pode acon­te­cer após o trân­sito em jul­gado, man­tendo pre­sos cidadãos que fur­taram uma bermuda, um pote de man­teiga, uma gal­inha ou mesmo alguns tro­ca­dos.

Agora, desde a última decisão do STF pela “incon­sti­tu­cional­i­dade” da prisão após con­de­nação em segunda instân­cia, assis­ti­mos ao des­file de cor­rup­tos de colar­inho branco deixando a cadeia após serem con­de­na­dos em segunda instân­cia – e até ter­ceira instân­cia –, para que aguar­dem até à morte o trân­sito em jul­gado dos seus proces­sos.

Qual a difer­ença entre aque­les pobres coita­dos que roubaram para comer ou toma­dos pela neces­si­dade da dependên­cia química destes que sua conta e risco resolveram roubar mil­hões ou bil­hões, con­scientes de seus atos?

Qual a difer­ença entre o cidadão que matou uma pes­soa, ainda que de forma dolosa, ou seja, com a intenção de matar, daquele que roubou mil­hões da saúde e provo­cou a morte de cen­te­nas ou mil­hares de cidadãos?

Qual difer­ença que há entre o traf­i­cante que leva o infortúnio a mil­hares de pes­soas e as suas famílias daquele cidadão que roubou mil­hões da edu­cação roubando sonho de mil­hões de jovens e até mesmo os entre­gando nas mãos dos traf­i­cantes?

Quero com­preen­der que dar trata­mento difer­en­ci­ado a estes igual­mente crim­i­nosos é ver­dadeira­mente cor­romper a Con­sti­tu­ição. Não admi­tir isso é ser hipócrita.

E recorro, como já fiz tan­tas vezes ao Ser­mão de Vieira: “Nave­g­ava Alexan­dre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a con­quis­tar a Índia; e como fosse trazido à sua pre­sença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-​o muito Alexan­dre de andar em tão mau ofí­cio: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respon­deu assim: Basta, sen­hor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imper­ador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexan­dres. Mas Sêneca, que sabia bem dis­tin­guir as qual­i­dades e inter­pre­tar as sig­nifi­cações, a uns e out­ros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem ani­mum latro­nis et piratae haben­tem. Se o rei de Macedô­nia, ou de qual­quer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e mere­cem o mesmo nome”. Padre Antônio Vieira, Ser­mão do Bom Ladrão.

Não existe norma acima da Con­sti­tu­ição. Se o STF decidiu ser ofen­sivo à carta o cumpri­mento da pena sem que o con­de­nado tenha esgo­tado toda sua capaci­dade recur­sal, dev­e­ria, de ofí­cio, ter deter­mi­nado a soltura de todos os que encon­tram na idên­tica situ­ação dos ricos que já avi­avam seus ape­los durante a sessão de jul­ga­mento.

Como disse o min­istro Marco Aurélio Mello, rela­tor da matéria, quem vai devolver um dia a mais que cidadão ficou preso indevidamente?

Vou além, o Supremo dev­e­ria, tam­bém, de ofí­cio deter­mi­nar a soltura de todos aque­les que não quis­eram ou não pud­eram recor­rer, porque acred­i­taram na impos­si­bil­i­dade de rever­são de suas sen­tenças con­de­natórias à luz do entendi­mento ante­rior. Ninguém cumpre pena vol­un­tari­a­mente. Foram para o cárcere “enganadas” pelo Estado que lhe disse não haver pos­si­bil­i­dade de mudança em suas sen­tenças. Esse mesmo Estado está “roubando” dias de liber­dade destas pes­soas.

Ao dizer que ofende a Con­sti­tu­ição da República a manutenção de prisão sem que tenha ocor­rido o trân­sito em jul­gado da sen­tença penal con­de­natória, o hon­esto a ser feito pelo STF é deter­mi­nar a soltura de todos que não tiveram a chance de esgo­tar todos os recur­sos pos­síveis e mesmo dos pre­sos pro­visórios ou apri­sion­a­dos pre­ven­ti­va­mente, se ilíc­ito man­ter preso quem já con­de­nado uma, duas, três ou qua­tro instân­cias o que dizer daquele que, emb­ora preso pre­ven­ti­va­mente pode ser absolvido?

Con­forme demon­strado acima a inter­pre­tação lit­eral do dis­pos­i­tivo invo­cado para soltar os crim­i­nosos de colar­inho branco é o mesmo que dev­e­ria ser invo­cado para esvaziar todas os cárceres do país uma vez, como já dito, não haver qual­quer regra a desafiar o man­da­mento con­sti­tu­cional, nem mesmo a lei uni­ver­sal do bom senso.

Abdon Mar­inho.

P.S. A charge que ilus­tra o texto peguei emprestada do amigo Cordeiro Filho.