IMPEACHMENT NÃO É PALAVRÃO.
Por Abdon Marinho.
EXISTE um antigo aforismo que diz: “não há esforço sem recompensa”.
Apesar da mídia não ter dado o destaque devido, assistimos nos últimos tempos uma crescente insatisfação da sociedade com o Poder Judiciário brasileiro. Essa insatisfação exposta já há muito tempo na ágora da atualidade, a internet, teve uma manifestação digamos, física ou analógica, no último dia 17 de novembro de 2019, quando milhares de brasileiros, em diversas cidades do país, foram às ruas protestarem de forma veemente contra alguns ministros do Supremo Tribunal Federal — STF.
Os manifestantes, em pleno domingo ensolarado, ao invés de estarem com suas famílias, no recesso do lar, saboreando o almoço preferiram ir pra ruas carregando faixas com inscrições contra os ministros do Supremo. Esse é um fato bastante significativo.
Como disse, as diversas mídias, talvez para ocultar o fato, não tratou como deveria, os protestos acima referidos. Como se não falassem deles, os impedissem de terem acontecido. Uma espécie de negação.
Não me recordo de ter testemunhado algo semelhante, em tempo algum, em qualquer democracia do mundo – talvez protestos parecidos já tenham ocorrido em alguma ditadura periférica, assim mesmo, com raridade.
Não faz muito tempo a ministra Cármen Lúcia, do STF, disse saber que este “é o momento de falar mal de juiz e do Supremo”.
A ministra está equivocada. Há muito tempo o tribunal, devido ao comportamento de seus integrantes, é malvisto pela sociedade brasileira.
Os questionamentos sobre condutas inadequadas já remontam mais de duas décadas.
Como disse acima não há esforço sem recompensa. O que a nação assiste, com protestos nas ruas, com bonecos representando juízes, com hashtags com inscrições pedindo a saída de ministros, tudo isso, é a “recompensa” pelos anos de mal serviços prestados a nação.
Não se trata de “moda” ou de críticas infundadas, trata-se de uma justa reação há anos de desrespeitos aos cidadãos.
Nesta perspectiva soa quixotesca a busca do Supremo por inimigos externos. Como D. Quixote, de Cervantes, combatem moinhos de vento e não inimigos reais. Os verdadeiros inimigos da corte estão alojados dentro do tribunal de onde ameaçam não sairem tão cedo. Os verdadeiros inimigos são os internos – nos seus duplos sentidos.
Um dos ministros que foi alvo dos protestos, Gilmar Mendes, também conhecido com “soltador-geral da República”, envolve-se em polêmicas desde o seu ingresso na Corte. Jornalistas e juristas de renome questionam a qualidade e motivações de suas decisões desde sempre.
Em 2009, há uma década, portanto, o então ministro Joaquim Barbosa, em plena sessão, disse:
“— Vossa excelência não está na rua, não. Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro. É isso. […] Vossa excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar. O senhor respeite.»
Alguém consegue imaginar termos mais fortes para um ministro referir-se a outro? Foi uma reação intempestiva do ministro Barbosa?
É possível que alguns atribuam a acidez das palavras do ministro, naquela discussão de 2009, ao seu comportamento “difícil”, mas, veja, em 2018, noutro momento “célebre” da Corte, o ministro Barroso disse dirigindo-se ao colega Gilmar Mendes: “— Me deixa de fora do seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo, Vossa Excelência aqui fazer um comício, cheio de ofensas, grosserias. Vossa Excelência não consegue articular um argumento, fica procurando, já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para Vossa Excelência é ofender as pessoas”.
E acrescentou: “— Vossa Excelência, sozinho, envergonha o tribunal. É muito ruim. É muito penoso para todos nós ter que conviver com Vossa Excelência aqui. Não tem ideia, não tem patriotismo, está sempre atrás de algum interesse que não é o da Justiça. É uma coisa horrorosa, uma vergonha, um constrangimento. É muito feio isso”.
Podemos ficar apenas nestes dois momentos.
Outro alvo dos protestos das ruas, o ministro Dias Toffoli, é bem mais emblemático. Reprovado duas vezes em concursos públicos para juiz de direito, por obra e graça do destino, virou ministro da mais elevada Corte do país.
Sua investidura, basta olhar os jornais da época, causou inquietação e críticas, mais diversas, inclusive essa: como alguém que não conseguiu ser juiz numa comarca perdida nos rincões do país podia “virar” ministro do Supremo.
Recentemente completou uma década como ministro e, se alguma alma caridosa, em algum momento, chegou ter dúvidas se o seu ingresso na Corte se deu unicamente por ser “amigo do rei”, na presidência do tribunal, ele espantou toda e qualquer questionamento a respeito disso.
Não se trata “apenas” de ataques de “juizite”. São decisões de duvidosa legalidade, como a abertura de inquérito secreto por sua própria iniciativa, com nomeação de relator escolhido a dedo para investigar objeto incerto.
Antes, já tinha pedido – e conseguido –, censurar dois veículos de comunicação que traziam reportagens sobre detalhes pouco ortodoxos de sua vida financeira.
Não satisfeito solicitou dados do sigilo bancário e fiscal de cerca de seiscentos mil contribuintes entre pessoas físicas e jurídicas, depois de determinar a paralização de quase novecentos processos que tiveram como base relatórios do antigo COAF.
Isso só para citar os fatos mais “polêmicos”.
A derradeira prova cabal de sua incapacidade foi “alugar” a atenção da nação por quatro horas para proferir um voto cujo objeto caberia em, no máximo, 15 minutos, estourando, 20 ou 30 minutos, para, no final, ninguém entender a decisão que proferiu. Nem mesmos os seus colegas, acostumados ao linguajar empolado, ao término do voto sabiam qual tinha sido a decisão de sua excelência, isso depois de pedirem diversos esclarecimentos durante a manifestação.
Alguns sugeriram a contratação de um professor de javanês, em alusão ao clássico de Lima Barreto, já outros disseram, publicamente, que estavam diante de um novo idioma: o “toffolês”.
Quando o presidente da mais elevada Corte do país é tratado como piada por seus próprios pares é porque algo de muito errado há.
A pergunta que se faz é: como chegamos a isso?
A primeira resposta é que isso sinaliza a ausência e/ou o mau funcionamento das instituições republicanas.
Ao longo dos anos assistimos o aparelhamento do Poder Judiciário em suas várias instâncias. Cargos vitalícios de desembargadores e ministros sendo “repartidos” entre agremiações partidárias em detrimento dos interesses da nação.
As instituições não funcionaram (e não funcionam) por ocasião das investiduras e menos ainda quando surge a necessidade de retirar um ou outro ministro.
A falta de iniciativa e mesmo de ação das instituições democráticas suscitam os protestos nas ruas e, até mesmo, propostas de cunho antidemocrático.
Desde a redemocratização do país, e já sob a égide da Constituição de 1988, foram feitos os impeachment de dois presidentes da República, legitimados por milhões de votos; o parlamento já cassou dezenas de parlamentares e tantos outros foram condenados pela Justiça.
Os procedimentos de impeachment, os processos de cassação, assim como, a perda dos mandatos por decretação emanada do Poder Judiciário são legítimas, apesar disso, com motivos mais do que suficientes, não são abertos os processos de impeachment em face dos ministros do Supremo.
O Senado da República, que nos termos da Constituição possui a competência para levar a cabo o impeachment não permite nem que os mesmos sejam instaurados. São processos sérios, carregados em provas contundentes e argumentação farta, que o presidente do Senado ignora e deixa dormitar em suas gavetas.
É justamente essa omissão a raiz de todos os males. Os ministros, que se acham inatingíveis, deixam de se comportarem como magistrados para se comportarem como políticos, com um comportamento desregrado e emitindo opinião, fora dos autos, sobre tudo; noutra frente a sociedade que sabe não poder confiar nas instituições, sai às ruas pedindo soluções arbitrárias.
Estivessem as instituições funcionando de forma regular, sabendo suas atribuições, os procedimentos de impeachment seriam instaurados e os, supostamente, culpados, processados e julgados pelo foro competente, que não é a rua ou a ágora da internet.
Assim o Brasil vai trilhando rumo ao caos.
Abdon Marinho é advogado.