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A bomba queimou

Escrito por Abdon Mar­inho


A BOMBA QUEIMOU.

MORAR em sítio tem seus per­calços.

No fim da tarde de quarta-​feira, véspera do feri­ado de Tiradentes, alcança-​me a noti­cia: — a bomba do poço arte­siano queimou.

Quem liga já é o eletricista que cos­tuma aten­der min­has deman­das e que fora chamado pelo caseiro para olhar o que estava acon­te­cendo.

A infor­mação de que fora a bomba do poço arte­siano a dan­i­fi­cada tem relevân­cia pois temos diver­sas bom­bas: do lago de carpas, da piscina e a do poço.

Emb­ora todas sejam impor­tantes para o fun­ciona­mento do sítio, a do poço é a prin­ci­pal. Local­izada a mais de 80 ou 90 met­ros, quando queima temos retirá-​la para sub­sti­tu­ição ou con­serto o que demanda a con­vo­cação de pes­soas espe­cial­izadas.

Sem con­tar que sem água cor­rente as coisas ficam bem mais difí­ceis. Per­gun­tei se ainda tinha água na caixa, o que me respon­deu de forma pos­i­tiva e fui atrás da empresa que fez a última limpeza do poço e instalou a bomba há menos de um ano.

Ao dono da empresa que fez a manutenção e tro­cou a bomba indaguei a razão da bomba ter queimado com menos de um ano de uso: — cer­ta­mente oscilação da rede elétrica, doutor. Pro­cure a nota fis­cal que amanhã irei aí.

Em pleno feri­ado, a primeira coisa que fiz após tomar o café da manhã e ali­men­tar os peixes foi me mudar para o escritório que man­tenho em casa à procura da ben­dita nota.

Atur­dido com a notí­cia e tendo saído mais cedo do escritório na véspera, pedi a um colega que procurasse, jun­ta­mente com um man­ual, na minha sala. Ele achou o man­ual mas não a nota fis­cal.

Aí, como dizia, logo nas primeiras horas da manhã me pus a des­ocu­par as gave­tas na ten­ta­tiva de encontrá-​la.

Des­ocu­par gave­tas, organizá-​las é um encon­tro com o nosso pas­sado e com nós mes­mos. Em uma caixa encon­trei minha primeira carteira da OAB com quase um quarto de século de existên­cia. É um livrinho com espaço para ano­tações, as vezes que vota­mos nas eleições da classe, alguma coisa de leg­is­lação clas­sista, e out­ros detal­hes.

Veio-​me as lem­branças daquele dia, dos cam­in­hos tril­ha­dos até lá e tudo que veio depois até aqui.

Guarda­dos em uma escarcela diplo­mas e históri­cos esco­lares do primeiro e segundo graus – mais lem­branças.

Em um enve­lope trans­par­ente fotografias de ami­gos, par­entes – algu­mas min­has –, pes­soas que já par­ti­ram desta vida e out­ras que par­ti­ram da minha vida.

Em um saquinho do “Foto Som­bra”, fotografias em três por qua­tro para fixar em algum doc­u­mento ou para inscrição em alguma ficha coisa; em um outro diver­sas carteiras de habil­i­tação, escrupu­losa­mente ren­o­vadas desde de 1998; em outro, as carteir­in­has da OAB, alguns cartões de crédi­tos ven­ci­dos e out­ros nunca usados.

Em outra gaveta alguns esto­jos com os ócu­los que usei desde que descobrir-​me míope, reló­gios, quin­quil­harias eletrôni­cas que foram ficando sem uso e sendo guarda­dos muitas vezes por não querer jogar no lixo que possa demorar tanto a se decom­por ou pelo velho hábito de guardar coisas her­dado do meu pai que cos­tu­mava dizer: — guarde, meu filho, pois quem guarda tem.

Em meio a tan­tos “acha­dos e per­di­dos” encon­tro uma luneta adquirida a não sei quanto tempo, que tinha por obje­tivo servir para obser­vação dos pás­saros aqui no sítio, acho que a usei uma ou duas vezes depois ficou esque­cida em uma gaveta.

Doc­u­men­tos, papéis, reci­bos, com­pro­vantes disso ou daquilo na intenção (e pre­ocu­pação) de algum dia pre­cisar amon­toa­dos noutro canto de gave­tas.

Até um com­pro­vante de votação das eleições de 1996, ate­s­tando que com­pareci ao primeiro turno daquele pleito encon­trei entre os vários papéis.

A cada novo papel, a cada novo item, uma breve parada para recor­dar o tempo pas­sado, a situ­ação vivida, as pes­soas envolvi­das, o que fiz ou o que deix­amos de fazer.

Algu­mas coisas achei ser a hora de jogar no cesto de lixo mais próx­imo, out­ras tive o tra­balho de arru­mar e deixar por mais um tempo nas gave­tas dos móveis. Gave­tas que na ver­dade são janelas da vida que pas­sou.

Ah, a nota fis­cal bus­cada ainda não foi encon­trada.

Seguire­mos na busca ou à procura de outra alter­na­tiva.

Abdon Mar­inho é advo­gado.

BOL­SONARO PODE CHUTAR A GRÁVIDA?

Escrito por Abdon Mar­inho

BOLSONARO PODE CHUTAR A GRÁVIDA?

Por Abdon Marinho.

O SAUDOSO Cafeteira (Epitá­cio Cafeteira Afonso Pereira), ex-​deputado fed­eral, ex-​prefeito de São Luís, ex-​governador, ex-​senador, além de pro­tag­o­nista de “cau­sos” mem­o­ráveis era pos­suidor de um feel­ing político extra­ordinário – o que não sig­nifica que tam­bém não errasse.

Estive­mos jun­tos em duas eleições: a que gan­hamos e não lev­a­mos, em 1994 e a que não poderíamos gan­har, em 1998. Depois ainda cuidei do processo em que ques­tion­avam sua eleição para o Senado República quando elegeu-​se já numa col­i­gação com o grupo Sar­ney, em 2006.

Pois bem, quando diante de deter­mi­na­dos cenários políti­cos, Cafeteira dizia: – este só perde de começar a chutar grávida na Praça Deodoro; ou, — este aí nem se começar a chutar grávida na Praça João Lis­boa perde a eleição.

A dupla Bolsonaro/​Lula ou Lula/​Bolsonaro, con­forme preferirem, criou uma situ­ação em que qual­quer um dos dois poderá “chutar grávi­das” sem que tal fato retire o país da nefasta situ­ação de divisão em que se encon­tra, com o ódio, não ape­nas entre os políti­cos, mas, prin­ci­pal­mente, entre os cidadãos.

Como venho dizendo há qua­tro anos, o maior ali­ado do petismo/​lulista é o bol­sonar­ismo, assim como o maior ali­ado do bol­sonar­ismo é o petismo/​lulista, são as faces da mesma moeda e tra­bal­ham jun­tos para levar o país à destruição.

Tanto fiz­eram que pela primeira vez desde a rede­moc­ra­ti­za­ção do país, em 1985, poder­e­mos ter uma dis­puta pres­i­den­cial encer­rada no primeiro turno, muito emb­ora saibamos que a larga maio­ria da pop­u­lação, no fundo, no fundo, preferiria out­ras opções a estas duas que estão postas.

A maio­ria dos eleitores de ambos os lados, mes­mos entre aque­les que já estão “cristal­iza­dos”, a opção por um ou por outro ocorre em função do adver­sário e não do can­didato em si.

Veja que Bol­sonaro mesmo com uma rejeição acima de 50%, segundo algu­mas pesquisas, teve um sig­ni­fica­tivo cresci­mento e aproximou-​se do Lula, primeiro, porque “sui­ci­daram” a can­di­datura do ex-​juiz Sér­gio Moro e, segundo, por conta dos posi­ciona­men­tos destram­bel­ha­dos de Lula.

A polar­iza­ção irra­cional é a respon­sável pela migração dos eleitores que dis­cor­dam dos posi­ciona­men­tos do ex-​presidente, como por exem­plo em relação ao aborto, à lim­i­tação do poder de com­pra da classe média, a esse anacro­nismo em relação as diver­sas ditaduras ditas de esquerda ao redor do mundo e mesmo o bisonho posi­ciona­mento em relação a invasão da Ucrâ­nia pela Rús­sia (muito emb­ora, no último caso, os dois can­didatos se assemel­hem na ado­ração ao car­ni­ceiro de Moscou), para a can­di­datura do atual pres­i­dente.

Na polar­iza­ção mais do que as qual­i­dades dos can­didatos, conta de ver­dade, os defeitos dos opo­nentes.

Em análise ante­rior, quando se vis­lum­brava a pos­si­bil­i­dade de surg­i­mento e até do cresci­mento de uma ter­ceira via, imag­i­nava a can­di­datura do atual pres­i­dente ape­nas como anteparo a impedir o avanço das destas can­di­dat­uras, mas sem o poten­cial de ameaçar ou impedir a vitória do ex-​presidente Lula.

E era assim que o cenário político se por­tava até o aniquil­a­mento da can­di­datura Moro e o can­didato Lula resolver falar o que pensa sobre deter­mi­na­dos temas.

Nem mesmo o ex-​governador e adver­sário histórico do petismo, Ger­aldo Alkimin, escal­ado como forma de equi­li­brar a chapa petista, foi sufi­ciente para con­ter os arrou­bos anacrôni­cos de Lula quando este começou a falar, pelo con­trário, parece que os mes­mos arrou­bos acabaram por con­t­a­m­i­nar o político pin­da­mon­hangabense, recon­hecido pela tem­per­ança.

Aos fatores acima – e não menos impor­tante –, merece destaque a atu­ação da mil­itân­cia política dos bol­sonar­is­tas.

Estes “militantes-​raiz”, que provavel­mente não alcança vinte mil­hões de almas, estão em cam­panha vinte e qua­tro horas por dia, sete dia por sem­ana, não con­hecem o Natal, a Sem­ana Santa ou qual­quer outro feri­ado ou assunto, é o tempo todo em gru­pos de aplica­tivos, redes soci­ais ou mesmo na rua fazendo o seu pros­elit­ismo politico, com pau­tas ver­dadeiras ou fal­sas e, prin­ci­pal­mente, fer­men­tando o germe da dis­cór­dia entre os eleitores.

Para estes mil­i­tantes o seu líder ou men­tor, a sua família e o seu gov­erno não pos­suem um defeito, estão efe­ti­va­mente fazendo a trans­for­mação que o Brasil pre­cisa e que nos aguarda um futuro glorioso.

Para eles não existe inflação e se existe a culpa jamais pode ser atribuída ao gov­erno, as aos adver­sários ou a mídia e tam­bém ao STF que não deixa o gov­erno trabalhar.

A destru­ição da Amazô­nia ates­tada por todos os insti­tu­tos de pesquisa do Brasil e do mundo, inclu­sive ofi­ci­ais, não existe e se ocorre não é por culpa do gov­erno brasileiro, mas dos gov­er­nos estrangeiros, da mídia e do STF.

Assim, tam­bém, como são cul­pa­dos pela froux­idão com que gov­erno lida com a gri­lagem de ter­ras, a invasão de reser­vas ambi­en­tais ou mesmo da explo­ração das ter­ras indí­ge­nas por garimpeiros crim­i­nosos.

Se o dólar subiu e ocor­reu de forma injus­ti­fi­cada a desval­oriza­ção do real, tam­bém, não foi culpa do gov­erno mas dos gov­er­nos ante­ri­ores, bem como o aumento dos com­bustíveis não lhes dizem respeito.

A cor­rupção não existe mais no Brasil por isso mesmo acabou-​se com a Oper­ação Lava Jato. Sem cor­rupção qual o sen­tido de se con­tin­uar inves­ti­gando “malfeitos”?

Se pas­tores estavam inter­me­diando negó­cios den­tro MEC ou do FNDE, mesmo que nas reuniões com os prefeitos estivessem sen­ta­dos lade­ando o min­istro e depois das reuniões saíssem para achacarem os prefeitos, o gov­erno ou mesmo o min­istro nada tinha com o fato, bem provável que o min­istro fosse o Cristo reen­car­nado na sua figura e ali estivesse entre os dois pas­tores. Muito emb­ora tenha sido o próprio min­istro que tenha dito no áudio vazado que as regalias dos ser­vos do Sen­hor den­tro da pasta se dava por recomen­dação do próprio presidente.

Como o pres­i­dente nada tenha com fato daqui a cem anos saber­e­mos os motivos de tan­tas reuniões com os pas­tores den­tro do Palá­cio do Planalto.

Os mais afoitos do bol­sonar­ismo chegam a cobrar os vídeos das entre­gas das propinas ou das nego­ci­ações das mes­mas e colo­cam a culpa na imprensa ou em que fez as denún­cias.

Os mes­mos vídeos que cobram para diz­erem que as tor­turas ocor­ri­das no Brasil durante o período da ditadura mil­i­tar nunca existiram.

Mesmo os desac­er­tos do gov­erno fed­eral, as omis­sões ou retardo na aquisição de vaci­nas durante a pan­demia que ceifou a vida de quase sete­cen­tas mil pes­soas não ocor­reu por culpa do gov­erno ou por sua inques­tionável negação.

Na ver­dade nem mesmo a pan­demia exis­tiu e todas essas mortes são uma ficção midiática ou porque os que mor­reram eram mesmo “morre­dores”.

Se algum incauto ousa ques­tionar por que não dizer que se tratar de assunto de inter­esse da segu­rança nacional e dec­re­tar um sig­ilo por 100 anos?

O gov­erno, o pres­i­dente, os seus asse­clas nada têm a ver com os infortúnios que ator­men­tam o país mas são donos de todo mérito das coisas boas que ocorrem.

Agora mesmo estão dia e noite divul­gando que pres­i­dente baixou a conta de luz da pat­uleia em vinte por cento ou mais. Isso é dito à exaustão.

Na ver­dade, a conta de luz foi ele­vada através de diver­sas taxas por conta da escassez de água nos reser­vatórios. Como este inverno foi/​está sendo bas­tante chu­voso os reser­vatórios estão cheios, nat­ural que se reti­rasse as ban­deiras que ele­varam as con­tas, porém mesmo isso que parece tão óbvio é “ven­dido” como mérito do gov­erno.

Não tarda pas­sarão a difundir agradec­i­men­tos ao pres­i­dente pelas chu­vas que estão caindo.

Ainda que não rep­re­sen­tem o pen­sa­mento majoritário do país, a difusão que fazem – através de gru­pos de aplica­tivos, redes soci­ais, etc –, de suas ideias ou mesmo das próprias pau­tas, sejam elas reli­giosas, arma­men­tis­tas, anti-​vacinas, de cos­tumes ou mesmo dos pre­con­ceitos que car­regam, acabam por induzir o voto no atual man­datário, mais, prin­ci­pal­mente, minam as can­di­dat­uras adver­sárias, prin­ci­pal­mente, a can­di­datura do ex-​presidente Lula, eleito como inimigo a ser batido.

Não vejo esse nível de mil­itân­cia em nen­huma outra can­di­datura, mesmo na can­di­datura do

Lula, que sem­pre foi maior que o petismo, ainda que muitos eleitores este­jam dis­pos­tos a votar nele, segundo as pesquisas mais de quarenta por cento ou num cenário de segundo turno, bem mais de cinquenta por cento, não vemos os seus eleitores ou defen­sores se ocu­pando (não como os bol­sonar­is­tas) em fazer qual­quer defesa ou defendê-​lo dos mais vari­a­dos tipos de ataques, dev­i­dos ou inde­v­i­dos.

Para os bol­sonar­is­tas o fato do sen­hor Bol­sonaro chutar ou não grávi­das não faz qual­quer difer­ença, mas irão espal­har que os out­ros estão fazendo isso para con­quis­tar estes votos.

No cenário atual – e se nada difer­ente acon­te­cer –, acho que a eleição poderá ser definida no primeiro turno, con­forme dito ante­ri­or­mente, e o resul­tado me parece indefinido.

Abdon Mar­inho é advo­gado.

O Brasil está doente.

Escrito por Abdon Mar­inho


O BRASIL ESTÁ DOENTE.

Por Abdon Marinho.

DECERTO que o texto que orig­i­nal­mente plane­jei para este Domingo de Ramos não era o que escreverei nesta manhã.

Pre­tendia falar de política mas noutro sen­tido, nas renún­cias de políti­cos para dis­putar out­ros car­gos, na sucessão no estado com o vice-​governador sendo alçado à tit­u­lar e can­didato à reeleição e as “mex­i­das” políti­cas que estão ocor­rendo com pactos inque­bráveis sendo rompi­dos, amizades des­feitas, foguetes dando ré e até mesmo alguns bois “avoando” na Praça João Lis­boa.

Dou um tempo em tais pau­tas para tratar de uma outra que me parece bem mais urgente: o nosso país está doente.

Quando falo em doença não me refiro ape­nas aque­las que se mate­ri­al­izam de forma “física”, o empo­brec­i­mento das famílias; a cares­tia; a fome; o desem­prego; a destru­ição do meio ambi­ente; a edu­cação e a saúde sucateadas; a ciên­cia e tec­nolo­gia inex­is­tistes; a infraestru­tura precária; e tan­tos out­ros males que nos afligem.

A ver­dadeira doença que desejo tratar – e que me parece muito mais grave –, é essa doença da “alma” que de uns tem­pos para cá pas­sou a acome­ter o país e o seu povo; essa falta de empa­tia pelo sofri­mento alheio; essa falta de respeito por aque­les que pen­sam difer­ente; esse ódio desme­dido; e até mesmo essa falta de humanidade.

Um exem­plo claro do falo (den­tre tan­tos) e que me mobi­li­zou para escr­ever o texto, foi a fala de um dep­utado fed­eral, filho de impor­tante político brasileiro – por motivos san­itários me abstenho de citar nomes –, na qual disse que sen­tira “pena” da cobra que fora uti­lizada na tor­tura da jor­nal­ista Miriam Leitão, ocor­rida nos anos de chumbo da ditadura mil­i­tar brasileira.

Como, diante da tor­tura, algum ser humano poder referir-​se à vítima de forma tão cruel? Dizer que sen­tir “pena” não vítima, mas do instru­mento de tor­tura? Qual é a clas­si­fi­cação que ocupa tal colo­cação na gale­ria das infâmias?

É que sinto pena dos ani­mais que são uti­liza­dos como sucedâ­neos das covar­dias humanas. Assim, por motivos diver­sos, con­cordo com dep­utado: ani­mais não dev­e­riam ser uti­liza­dos como armas ou instru­men­tos de tor­turas pois mesmo os mais bru­tos são inca­pazes, como os humanos, de faz­erem tanto mal à sua espé­cie.

Diante da reper­cussão neg­a­tiva à infâmia per­pe­trada, ao crime cometido, à falta de decoro patente, o dep­utado não deu-​se por achado, pediu o VAR – sigla em inglês para Video Assis­tant Ref­eree.

Na Copa do Mundo de 2018, a FIFA começou a uti­lizar o sis­tema eletrônico de auxílio aos árbi­tros a fim de com­pro­var, medi­ante o exame de ima­gens, que o lance efe­ti­va­mente ocor­reu como foi arbi­trado.

Pois é, por mais ina­cred­itável possa pare­cer, a excelên­cia teve o dis­parate de duvi­dar da existên­cia de tor­tura à jor­nal­ista, pedindo como prova idônea, den­tre out­ras, vídeos da tor­tura per­pe­trada pelos agentes do estado con­tra a mesma há cerca de 50 anos.

A primeira coisa que pen­sei ao tomar con­hec­i­mento dos ques­tion­a­men­tos da excelên­cia sobre inex­istên­cia de vídeos, relatórios cir­cun­stan­ci­a­dos, em três vias, assi­na­dos e carim­ba­dos pelos tor­tu­radores, foi: que tipo de droga alu­cinó­gena essa gente toma no café da manhã?

Emb­ora mais comum do que se imag­ina, a tor­tura é o crime mais odi­ento que se pode come­ter – acred­ito que seja até pior que a morte –, deixando mar­cas físi­cas e/​ou psi­cológ­i­cas nas suas víti­mas pelo resto de suas vidas.

De tão odi­ento, tal crime é objeto de mais de uma dezenas de trata­dos inter­na­cionais visando sua errad­i­cação e punição daque­les que a prati­cam. Mesmo nos dias de hoje, nas guer­ras em curso, um dos tra­bal­hos dos com­bat­entes, além de der­ro­tar os inimi­gos, é ocul­tar os crimes de guerra cometi­dos, notada­mente a tor­tura.

O dep­utado, que quase virou embaix­ador do Brasil nos EUA, por pos­suir como cre­den­ci­ais o fato de saber fritar ham­búr­guer, que foi ou é mem­bro da Comis­são de Relações Exte­ri­ores da Câmara dos Dep­uta­dos e que, imagina-​se, seja alfa­bet­i­zado, dev­e­ria ou teria o dever de saber que o crime de tor­tura por sua repulsa uni­ver­sal, exceto por alguns tor­tu­radores sádi­cos e/​ou per­ver­tidos não deixa ras­tros ou não fácies de serem com­pro­va­dos com provas doc­u­men­tais. Exis­tem, inclu­sive, trata­dos dos quais o Brasil é sig­natário, cred­i­tando à palavra da vítima como prova.

Se o dep­utado é capaz de calçar-​se soz­inho e já não usa mais fral­das, dev­e­ria saber que se o tor­tu­rador não instalou câmeras nas câmaras de tor­turas para depois saciar seus instin­tos doen­tios, as víti­mas menos ainda – impos­sível, até –, teria como doc­u­men­tar para depois com­pro­var a vio­lên­cia que sofr­era.

Talvez, por algum dis­túr­bio que não con­sigo imag­i­nar qual seja, a excelên­cia tenha imag­i­nado que uma vítima antes do iní­cio de uma sessão de hor­ror, pudesse pedir licença ao tor­tu­rador para insta­lar uma câmera de fil­magem e doc­u­men­tar o ato. Pelo menos “selfie”, né, dep­utado?

Isso se não con­seguir perce­ber que os atos de tor­turas acon­te­ce­ram há cerca de cinquenta anos, repito.

Quando digo que o Brasil é um país doente não é por exi­s­tir entre “os rep­re­sen­tantes do povo” energú­menos desta natureza ou quilate é, prin­ci­pal­mente, porque tais asnices encon­tram respaldo em uma parcela sig­ni­fica­tiva da sociedade.

Mesmo diante de algo tão abjeto como a tor­tura, encon­trei diver­sas pes­soas, muitas delas, inclu­sive, com mais de dois neurônios ativos, defend­endo a posição do dep­utado, con­cor­dando com ele e exigindo que a jor­nal­ista apre­sen­tasse os “vídeos” ou out­ros doc­u­men­tos ofi­ci­ais capazes de com­pro­var a tor­tura que sofrera.

Que tipo de gente é capaz disso?

Fiz­eram pior, cansa­dos de ques­tionar ou diante do ridículo de ques­tionar uma vítima de tor­tura com argu­men­tos tão bizarros, pas­saram a desqual­i­ficar a vítima de tor­tura, em com­ple­mento ao que já fiz­era o dep­utado.

Estes “humanos” uti­lizam de tex­tos, “memes” e até vídeos, rela­tando fatos e ou cir­cun­stân­cias profis­sion­ais ou de críti­cas a vitima que a atinge de forma lat­eral para desqual­i­fi­cação da mesma.

Na esteira do falo, vi, por estes dias, um vídeo, que acred­ito ser dos anos 80 ou 90, com críti­cas de um pro­fes­sor à jor­nal­ista. Tudo no script da desqual­i­fi­cação lat­eral como forma de apoio ao com­por­ta­mento repug­nante do dep­utado.

Quem faz isso? São os “cidadãos de bem”, pais de família, advo­ga­dos, juízes, evangéli­cos, todos cidadãos que se dizem amantes e tementes a Deus, mas que não acham nada demais repro­duzirem, repostarem, dis­sem­inarem, ainda que de forma lat­eral, ataques a uma sen­hora de quase setenta anos que foi vítima de tor­tura.

Na guerra política que não tem um dia, um min­uto de trégua, há mais qua­tro anos, “cidadãos de bem” não enx­ergam qual­quer mal em atacar, por ação ou omis­são uma sen­hora de setenta anos ou de noventa anos, como fiz­eram há poucos dias com Fer­nanda Mon­tene­gro depois que ela fez críti­cas ao atual gov­erno.

Que espé­cie de sen­ti­mento move uma mul­ti­dão, ainda que vir­tual, para atacar uma sen­hora de mais noventa anos e com vasta folha de serviços presta­dos ao país nos mais setenta anos como atriz senão alguma psicopatia?

É como vejo o que fazem com a jor­nal­ista Miriam Leitão, como fiz­eram ou fazem com a atriz Fer­nanda Montenegro.

Vejam que mesmo uma guerra odi­enta como esta de Putin con­tra a Ucrâ­nia encon­tra no doente Brasil uma mul­ti­dão de defen­sores para justificá-​la – neste caso, de diver­sas cor­rentes políti­cas –, ao argu­mento de que se trata de uma “guerra defen­siva”, de que a Ucrâ­nia estaria ameaçando os rus­sos com a pro­dução de armas de destru­ição em massa ou até mesmo que seria uma batalha con­tra uma tal Nova Ordem Mundial — NOM, diver­sos tipos de maluquices a ali­men­tar mentes doen­tias com teo­rias con­spir­atórias.

O pior de tudo isso é que o país não demon­stra capaci­dade recuperar-​se tão cedo.

Que o bom Deus tenha piedade de nós.

Abdon Mar­inho é advo­gado.