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Armários do saber.

Escrito por Abdon Mar­inho


Armários do saber.

Por Abdon C. Marinho*.

LEONEL BRIZOLA (19222004), politico que fez car­reira no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, cos­tu­mava dizer que a edu­cação não era cara, o que, efe­ti­va­mente, era cara era a ignorância.

Dizia isso, sobre­tudo, depois de, retor­nando do exílio, em 1979, e eleger-​se gov­er­nador do Estado do Rio de Janeiro, em 1982, ini­ciar o pro­grama dos Cen­tros Inte­gra­dos de Edu­cação Pública, os CIEP’s.

Há quarenta anos Brizola enx­er­gava a importân­cia da edu­cação de qual­i­dade na vida de cri­anças e na con­strução de um país.

Aliás, nas palavras de Mon­teiro Lobato: “uma nação se faz com homens e livros”.

Em meus vagares fico imag­i­nando se ao invés de crit­i­cas todos os gov­er­nantes do Brasil, do prefeito ao pres­i­dente, pas­sando pelos gov­er­nos estad­u­ais, tivessem seguido o exem­plo de Brizola e apos­tado com seriedade na edu­cação inte­gral de nos­sas cri­anças.

Estaríamos com tan­tos jovens amar­gando as incertezas da vida, da mar­gin­al­i­dade? Estaríamos com um país mel­hor? Teríamos nos lib­er­tado dos armários da ignorân­cia?

Outro que sem­pre cito ao falar ou debater sobre a edu­cação pública nacional, Cristo­vam Buar­que, dizia lá atrás, há mais de vinte anos, pelo menos, que o ensino fun­da­men­tal do país dev­e­ria ser fed­er­al­izado, ou seja, que o gov­erno fed­eral dev­e­ria “tomar de conta” e não os municí­pios.

Muito emb­ora, nos ter­mos da Con­sti­tu­ição Fed­eral, a edu­cação seja respon­s­abil­i­dade de todos – “A edu­cação, dire­ito de todos e dever do Estado e da família, será pro­movida e incen­ti­vada com a colab­o­ração da sociedade, visando ao pleno desen­volvi­mento da pes­soa, seu preparo para o exer­cí­cio da cidada­nia e sua qual­i­fi­cação para o tra­balho” –, a própria Carta esta­b­ele­ceu que os municí­pios pri­or­i­tari­a­mente atu­ar­iam na edu­cação infan­til e no ensino fun­da­men­tal; Esta­dos e Dis­trito Fed­eral, no ensino fun­da­men­tal e médio; e a União “o sis­tema fed­eral de ensino e o dos Ter­ritórios, finan­ciará as insti­tu­ições de ensino públi­cas fed­erais e exercerá, em matéria edu­ca­cional, função redis­trib­u­tiva e suple­tiva, de forma a garan­tir equal­iza­ção de opor­tu­nidades edu­ca­cionais e padrão mín­imo de qual­i­dade do ensino medi­ante assistên­cia téc­nica e finan­ceira aos Esta­dos, ao Dis­trito Fed­eral e aos Município”.

Em escritos mais recentes, Buar­que assenta que o prob­lema edu­ca­cional do país alicerça-​se na desigual­dade do sis­tema ensino que não ofer­ece as mes­mas opor­tu­nidades a todas as cri­anças e ado­les­centes; e ainda que os entes respon­sáveis dev­e­riam envi­dar os esforços necessários para que as cri­anças chegassem aos 08 (oito) anos de idade alfa­bet­i­zadas em pelo menos duas lín­guas.

Desde sem­pre que sou um entu­si­asta e defen­sor da edu­cação pública e de qual­i­dade. Fui dos que foi “pra rua” nos anos oitenta exigindo mel­ho­rias, que brigou pelas garan­tias de tal qual­i­dade e val­oriza­ção dos edu­cadores na Con­sti­tu­ição, que defendeu o FUN­DEF, o FUN­DEB e todas demais matérias rela­cionadas as mel­ho­rias do ensino no país. Logo, não estranho quando escuto sobre VAAT, VAAR, SAEB, ENEM, PISA e diver­sas out­ras siglas.

É dizer, não me é descon­hecido qual­quer tema rela­cionado à edu­cação nacional – talvez não saiba tanto quanto um pres­i­dente de sindi­cato que passa o dia inteiro estu­dando ou falando sobre o assunto, mas não passo “ver­gonha” –, ainda mais agora que por “ossos” do ofí­cio tenho o dever de con­hecer.

Faço tais digressões para pon­tuar que em mais quarenta anos de “mil­itân­cia” jamais tinha ouvido falar na “tese” com que deparei nos últi­mos dias.

À guisa de criticar a “per­for­mance” dos estu­dantes maran­henses no último Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, um dos can­didatos der­ro­ta­dos no último pleito estad­ual, em réplica ao secretário respon­sável pela pasta disse que o maior prob­lema do mesmo seria o fato dele (secretário) não se “assumir” conclamando-​o “a sair do armário”, que “ficaria mais bonito”.

Como estu­dioso (ou, ao menos, curioso) do assunto, nem na hora que me chegou a notí­cia ou mesmo decor­rido dias das exor­tações não con­segui “alcançar” a linha de raciocínio do “crítico”. Afi­nal, o que teriam os “armários” onde, suposta­mente, autori­dades se “guardariam” com os indi­cadores edu­ca­cionais?

Vejam, tanta gente por tanto tempo estu­dando alter­na­ti­vas para o drama edu­ca­cional brasileiro sem nem descon­fiar a solução seria tão sim­ples: abrir os armários.

Rapaz, ninguém pode­ria descon­fiar de tal coisa.

Na per­spec­tiva do opos­i­tor, imag­ino que todos os saberes este­jam den­tro dos armários junto com as autori­dades. Abrindo-​se se as por­tas dos armários para que as autori­dades pos­sam sair, os prob­le­mas edu­ca­cionais estarão resolvi­dos.

Os saberes “lib­er­a­dos” dos armários estarão disponíveis para as cri­anças e ado­les­centes e “choverão” notas altas nas avali­ações.

Será que o mesmo raciocínio fun­ciona para out­ras áreas do Estado?

Aber­tas as por­tas dos armários da infraestru­tura sur­girão viadu­tos, rodovias, estradas nov­in­has para per­cor­re­mos.

Aber­tas as por­tas dos armários da saúde, os hos­pi­tais públi­cos ficarão um pri­mor, não fal­tarão leitos ou vagas, os médi­cos estarão sem­pre disponíveis em quais­quer espe­cial­i­dades. É até pos­sível que ninguém mais nem adoeça.

Nessa mesma esteira podíamos fazer uma cam­panha “abaixo os armários”. Tudo seria muito mais fácil.

Resolvido: por um mundo sem armários!

Não é descabido pen­sar que na even­tu­al­i­dade do cidadão chegar ao poder algum dia ter­e­mos um gov­erno “sem armários”, um gov­erno “de por­tas aber­tas”. Se o cidadão entende que os prob­le­mas se resolve “sem armários”, não tem nada mais fácil de se resolver.

Se o leitor que chegou até aqui perce­beu que estou sendo irônico podemos continuar.

Já escrevi diver­sas vezes sobre a chamada “ofensa gay” – inclu­sive tem um texto com esse título –, dizendo que acho incom­preen­sível, em pleno século XXI, que pes­soas, públi­cas ou não, “tachem” out­ras gays, ou cobrem que se “assumam” ou que “saiam do armário” não intenção de “ofendê-​las”.

Mais, que pes­soas, públi­cas ou não, sintam-​se “ofen­di­das” por terem sido chamadas assim.

Ser gay é algo tão abom­inável a ponto ser uti­lizado como sucedâ­neo de ofensa?

As excelên­cia que se uti­lizam disso para “ofender” ou as que se sen­tem “ofen­di­das” dis­pen­sam os votos dessas pes­soas (da sopa de letrin­has) nas eleições?

Nesse der­radeiro episó­dio, que me parece, a “ofensa gay” foi uti­lizada para “ofender” – pois não con­sigo “enx­er­gar” lig­ação entre o resul­tado obtido no ENEM pelos estu­dantes da rede estad­ual com supos­tos armários onde, por­ven­tura, alguma autori­dade esteja homiziada –, a reação no campo “oposto” pelo menos indi­re­ta­mente, foi de quem a rece­beu como “ofensa” – basta ver a reação dos diver­sos escribas alin­hados ao “ofen­dido” que saíram em defesa do mesmo acu­sando o “ofen­sor” de “baixaria”.

Então ficamos assim: de um lado pes­soas que uti­lizam, insin­uam sobre a condição sex­ual de out­rem na intenção de ofender; de outro, pes­soas que recebem tais insin­u­ações como “ofen­sas”; no meio, cri­anças e ado­les­centes que ape­nas querem uma edu­cação igual­itária e de qual­i­dade.

Os armários que inter­es­sam a essas cri­anças e ado­les­centes são os armários das esco­las onde pos­sam guardar seus mate­ri­ais didáti­cos, para­didáti­cos, esportivos, etc., de prefer­ên­cia em esco­las onde pos­sam pas­sar o dia inteiro estu­dando e apren­dendo.

Fora desses out­ros não inter­es­sam a elas.

O que nos resta é a tor­cida para que algum dia as pes­soas se lib­ertem dos seus armários da ignorân­cia e come­cem a tratar as pes­soas com a seriedade que é dev­ida por todos a todos.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

A morte do livreiro.

Escrito por Abdon Mar­inho

A morte do livreiro**.

Por Abdon C. Marinho*.

RAIMUNDO NETO, sócio há mais de um quarto de século e amigo há mais de trinta anos, no fim da tarde de segunda-​feira, 15 de janeiro, sem qual­quer comen­tário adi­cional, me enviou um “card”, uma espé­cie de bil­hete da mod­ernidade. Ele trazia o informe da “pas­sagem” do amigo Osmar Neres para o outro plano.

Aos ami­gos que estavam na sala no momento em que recebi a “noti­fi­cação fúne­bre” e aos fun­cionários (acho que só a secretária Rosân­gela Sales ainda estava pre­sente) repeti diver­sas vezes: — o Osmar par­tiu; o Osmar mor­reu …

Era como se eu mesmo quisesse convencer-​me das palavras que saiam da minha boca.

O fato ocor­reu no próprio dia 15 e aquela hora, pela pro­gra­mação con­tida no “card” já estava acon­te­cendo o depósito do corpo no der­radeiro local de des­canso.

Não tive a opor­tu­nidade de ir ao velório ou enterro dar os pêsames aos famil­iares ou mesmo um abraço fraterno.

No iní­cio da noite, quando voltava para casa em um carro de aplica­tivo já que o sen­hor Afrânio Mangueira está em gozo de férias, pen­sava nos momen­tos que pas­sei com o saudoso amigo, nos­sas con­ver­sas e “nego­ci­ações” em torno de livros.

No dia seguinte, antes de pegar a estrada para via­jar para o inte­rior, encon­trei com o sócio Raimundo Neto que disse que tão logo soube da notí­cia do pas­sa­mento de Osmar só lem­brou de mim.

Durante a viagem para o oeste do estado, região do Gurupi, emb­ora entretido pela con­versa dos cole­gas ou pela trilha sonora que tocava no carro, enquanto con­tem­plava o vastidão da estrada, aqui e ali, pon­tu­ada por uma cruz ou um marco qual­quer, lem­brava da perda do amigo.

Con­heci Osmar ainda no primeiro ou segundo ano de tra­balho na Assem­bleia Leg­isla­tiva, 19911992.

Ele pas­sara por lá para vender livros para o dep­utado Juarez Medeiros. Como o dep­utado não estava acabamos con­ver­sando com ele me con­ven­cendo a com­prar “Os Ser­mões”, do padre Antônio Vieira, finís­sima coleção em papel Bíblia, da Edi­tora Nova Aguilar. Foi a primeira grande obra adquirida com o suor do meu tra­balho.

Acho que gastei mais da metade do salário e ainda ficaram os parce­las a perder de vista.

Assim, quase todos os meses Osmar apare­cia pelo gabi­nete para rece­ber uma parcela de um livro ou coleção ou para vender mais livros.

Foi com essa “estraté­gia” que me vendeu inúmeros livros.

Durante mais de trinta anos, quase que todos os meses, Osmar me “vis­i­tava”. Na Assem­bleia, na Col­iseu, nos comitês políti­cos, no escritório do edifí­cio Los Ange­les e, nos últi­mos vinte anos, no escritório da Rua dos Pin­heiros.

Nesse tempo todo acabou ficando amigo dos cole­gas sócios e das pes­soas que tra­bal­ham comigo há mais uma ou duas décadas.

As meni­nas, prin­ci­pal­mente elas, já infor­mavam pelo inter­fone: — o seu Osmar está aqui.

Ao que eu respon­dia: — já diga ele que não quero com­prar livro algum, que o din­heiro acabou, mas diga ele para entrar.

Chegava e dizia: – guardei para você, por exem­plo, “Obras de Luis de Camões”, tra­balho finís­simo de Lello & Irmãos — Edi­tores, direto da Rua das Irmãs Carmeli­tas, Porto, Por­tu­gal.

Fazia assim sem­pre que que­ria me fazer uma venda.

Como amante dos livros não resis­tia. Brigá­va­mos pelos preços, eu querendo pagar menos e ele argu­men­tando: — Abdon, veja que obra mag­ní­fica, que papel fino … esse papel Bíblia nunca será con­sum­ido por traças ou cupins. É difer­ente de uma obra em papel comum. E o con­teúdo, nem se fala.

Cada livro uma “briga”, uma conta nova.

E vieram as obras de Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Charles Baude­laire, Oscar Wilde, Mário de Sá Carneiro, Fer­nando Pes­soa, Olavo Bilac, José Lins do Rêgo, Vini­cius de Moraes, Eça de Queiroz … e tan­tos out­ros. Brasileiros, por­tugue­ses, france­ses, rus­sos, ingle­ses … pelas mãos de Osmar esses gênios da lit­er­atura dividi­ram espaço em minha estante e mente.

Todas essas obras em papel bíblia e invari­avel­mente das edi­toras Nova Aguilar e Lello & Irmãos Editores.

Em 2015, uma tragé­dia sem víti­mas fatais me atingiu: um incên­dio domés­tico levou parte dos meus livros raros. Como ia adquirindo-​os no for­mato nar­rado acima ao longo (a época) de um quarto de século, não tinha noção do que havia per­dido ou dos val­ores das obras.

Osmar bus­cou nos seus reg­istros e passou-​me a relação das obras e os val­ores das mes­mas para que pudesse jun­tar na ação judi­cial de ressarci­mento.

Infe­liz­mente, nesse tipo de acon­tec­i­mento, mesmo uma obra nova não é capaz de preencher o vazio deix­ado pela história do que se perdeu. Aquele livro, aquele disco, tem uma história que vai muito além do valor de tê-​lo adquirido. São tam­bém os momen­tos que se dedi­cou à leitura ou ao ouvi-​lo, as histórias daque­les momen­tos.

Em 1991, quando adquiri a primeira coleção de os ser­mões (adquiri duas) acon­te­cia isso ou aquilo, estava bem, pen­sava assim ou assado. Quando “chegou” aquele disco o ouvi pela primeira vez na pre­sença de fulano ou sicrano, falá­va­mos sobre isso …

Quando “perdemos” essas coisas é como se perdêsse­mos, tam­bém, parte da nossa história.

O lev­an­ta­mento das obras per­di­das (que con­seguimos lem­brar, alcançaram quase 100 mil, se cor­ri­dos os val­ores) mas o valor afe­tivo era incal­culável.

Sabedor disso e do quanto ficara abal­ado com a perda de parte sig­ni­fica­tiva da bib­lioteca, Osmar foi a minha casa e levou con­sigo tudo que con­seguimos tirar do incên­dio. Meses depois me devolvia pelo menos uma parte dos livros que con­sid­erá­va­mos não ter sal­vação. Soz­inho, em sua livraria, ele fiz­era o tra­balho de “recon­strução” dos meus livros, tro­cou as capas, cos­turou partes, cor­tou fol­has chamus­cadas pelo fogo … e tudo mais – o tra­balho ficou tão bom que pedi a ele para fazer a encader­nação de um livro que gan­hara do extinto jor­nal­ista Wal­ter Rodrigues.

As obras recu­per­adas por Osmar trazem con­sigo as mar­cas de uma tragé­dia mas são, tam­bém, a com­pro­vação de uma história de amizade e de amor aos livros.

Quando findou a pan­demia liguei para saber como estava e para convidá-​lo para bater um papo, já infor­mando que não com­praria nada dessa vez.

Osmar foi o “estranho” que fez parte da minha … da nossa vida …

Em meio a tan­tos assun­tos que pode­ria escr­ever hoje – ou nesse fim de sem­ana –, sobre política, equívo­cos, baixarias, etc., me pare­ceu mais ade­quado e inspi­rador ren­der hom­e­na­gens a um amigo muito querido.

Ao escr­ever sobre A morte do livreiro – os mais aten­tos devem ter perce­bido –, faço como a recor­dar outra obra que ele me vendeu e que, provavel­mente, perdeu-​se no incên­dio, “A morte do caixeiro-​viajante”, de Arthur Miller, autor amer­i­cano.

Osmar foi meu “livreiro-​viajante” durante mais de três décadas foi a todos os lugares onde tra­bal­hei me vender livros à vista ou fiado em conta que teve data de aber­tura mas nunca de encer­ra­mento, como fazem mesmo os caixeiros-​viajantes pelo Brasil a fora.

Quando, no dia seguinte à morte do livreiro, falá­va­mos sobre o acon­tec­i­mento o sócio Raimundo Neto, acos­tu­mado as nos­sas “brigas” em torno dos livros, per­gun­tou se no final de tudo quem ficara devendo a quem.

Apu­rando na conta-​corrente da vida, cer­ta­mente fiquei eu deve­dor de Osmar Neres, não finan­ceira­mente (acredito)x, mas por tudo que ele me trouxe de con­hec­i­mento e de boas lem­branças.

Enquanto escrevo esse texto, e sou “assis­tido” por tan­tos autores que ele me trouxe, só aumenta a minha certeza nisso.

*Abdon C. Mar­inho é advo­gado.

**A morte do livreiro é uma sin­gela hom­e­nagem ao amigo Osmar de Oliveira Neres (23÷12÷194815/​01/​2024).

Uma guerra desumana.

Escrito por Abdon Mar­inho


UMA GUERRA DESUMANA.

Por Abdon C. Marinho*.

DURANTE a sem­ana, em uma plataforma de stream­ing, assisti ao filme Golda — A Mul­her de Uma Nação, que retrata a guerra do Yom Kip­pur, em 1973, quando Sírios e Egíp­cios, aliás, as duas nações atacaram nesse feri­ado o Estado Israe­lense.

Trata-​se de um filme sobre a aquela guerra sem ser um filme de guerra. Mostra o con­flito a par­tir da visão da primeira mul­her a ocu­par o posto de primeira-​ministra de Israel – de 1969 a 1974, já com 70 anos de idade, enfrentando prob­le­mas graves de saúde –, tendo que tomar decisões de alto risco que pode­riam sig­nificar, inclu­sive, a extinção do estado judeu.

No filme o papel de Golda Meir é desem­pen­hado pela extra­ordinária Helen Mir­rem, que de tão per­feita na cara­ter­i­za­ção temos difi­cul­dades para iden­ti­ficar (eu mesmo só fui saber quem era quando vi nos crédi­tos).

Golda Meir era judia ucra­ni­ana que viveu de 1898 a 1978, antes de migrar para a Palestina, em 1921 — e depois -, assis­tiu a perseguição con­tra os judeus na Europa Oci­den­tal durante a infân­cia e juven­tude. Durante a guerra do Yom Kip­pur, como diplo­mata expe­ri­ente, Golda mostrou forte lid­er­ança e habil­i­dade ao con­duzir o con­flito, que, como já dito acima, pode­ria ter cul­mi­nado como o fim de Israel. Já com a saúde debil­i­tada renun­ciou a cargo de primeira-​ministra em 1974 e fale­ceu, aos 80 anos, em 1978. Em setem­bro do ano de sua morte ocor­rida em dezem­bro, foi assi­nado o primeiro acordo de Camp David, entre Egito e Israel, que ren­deu aos líderes dos dois países (Anwar Sadat e Men­achem Begin) o Prêmio Nobel da Paz de 1978.

Fui “con­hecer” Golda Meir dez anos depois da sua morte, nos anos 1988/​89, quando durante alguns meses fiz o preparatório para o vestibu­lar no cursinho do pro­fes­sor José Maria do Ama­ral, na Rua dos Afo­ga­dos. O pro­fes­sor José Maria do Ama­ral é um grande entu­si­asta da “causa judaica” e uma espé­cie de fã número um da antiga primeira-​ministra de Israel, citando-​a sem­pre que sur­gia opor­tu­nidade nas suas aulas ou nos inter­va­los das mes­mas. Como se fosse hoje, lem­bro que pro­nun­ci­ava o nome dela “car­regando” no sobrenome Golda “mei­iir”. Nunca esqueci.

Acred­ito que a par­tir dessa “intro­dução” pas­sei a interessar-​me mais pelos acon­tec­i­men­tos do Ori­ente Médio. Li diver­sos livros, arti­gos, assisti out­ros filmes e séries sobre os inúmeros con­fli­tos entre Israel e seus viz­in­hos (acho que tem um livro ou filme com esse nome). Com o saudoso amigo e jor­nal­ista Wal­ter Rodrigues, sobre­tudo depois da primeira intifada, fize­mos muitos debates sobre os con­fli­tos e guer­ras daquela região. WR dizia com certa mofa ter certeza que não exi­s­tiria uma única pedra no Ori­ente Médio que não tivesse já sito ati­rada con­tra alguém.

Emb­ora já tenha tratado aqui, mais de uma vez, da atual guerra que se desen­volve em Gaza, a estre­ita faixa que fun­ciona como uma prisão ou campo de con­cen­tração para mais de dois mil­hões de palesti­nos, o filme assis­tido sobre a Guerra do Yom Kip­pur e, prin­ci­pal­mente, o papel dos líderes do país daquele momento e de agora me per­mi­ti­ram fazer um para­lelo entre os dois con­fli­tos, inclu­sive, para dizer que, quem nasceu Bibi Netanyahu jamais será Golda Meir.

O homem (ou mul­her) é a sua história e cir­cun­stân­cias. Isso tam­bém serve para os acon­tec­i­men­tos históri­cos.

Quando faze­mos os recortes dos fatos ocor­ri­dos no final dos anos sessenta e setenta e que cul­mi­nam com a Guerra do Yom Kip­pur, em out­ubro de 1973; e o ataque ter­ror­ista de 07 de out­ubro de 2023 que cul­mi­naram na guerra atual, vemos que há um grave descom­passo.

A despeito de ter­mos sérias con­tro­vér­sias sobre a gestão de Golda Meir e mesmo as mortes de palesti­nos durante a gestão e prin­ci­pal­mente durante a guerra, nada se com­para ao que vem ocor­rendo.

Em out­ubro de 1973, tín­hamos dois países, Egito e Síria, no norte e no sul, ata­cando de sur­presa o Estado Israe­lense com vis­tas à sua aniquilação, a sua extinção enquanto estado sober­ano.

Em out­ubro de 2023, tive­mos um grupo ter­ror­ista, Hamas, pro­movendo um ataque con­tra Israel. Ataque bár­baro, inqual­i­ficável mas, que, inde­pen­dente de qual­quer coisa, muito longe esteve de se com­parar aos ataques do Yom Kip­pur.

Logo, a reação de Israel a tal ataque não pode­ria ser nos moldes que vem se desen­rolando com a pop­u­lação civil sendo aniquilada à des­culpa de com­bater o Hamas.

O Hamas, registre-​se, é um grupo ter­ror­ista que gan­hou “mus­cu­latura” política e mil­i­tar graças ao apoio de Israel.

Até o dia que assisti o filme (acho que dia 10 de janeiro), o número de mor­tos palesti­nos na guerra já alcançava a hor­renda quan­tia de 23 mil víti­mas, destas, setenta por cento, repito, SETENTA POR CENTO, mul­heres e cri­anças. Os demais mor­tos, não esta­mos dizendo ter­ror­is­tas, mas, civis.

Isso tudo em ape­nas 90 dias de guerra.

Quem assiste a guerra de longe, pode achar que é ape­nas um número, uma estatís­tica. Mas, imag­ine empil­har os cor­pos de 17 mil mul­heres e cri­anças. Imag­ine visu­alizar tal cena.

Quan­tos ter­ror­ista as forças armadas de Israel elim­i­nou para jus­ti­ficar a matança de civis? Dezes­sete mil só de mul­heres e cri­anças?

Sob qual­quer aspecto que exam­ine a questão não con­sigo encon­trar uma jus­ti­fica­tiva razoável para aceitar que para elim­i­nar um pun­hado de ter­ror­is­tas se matem tan­tos civis.

E não se trata ape­nas de mortes em si, já ter­ríveis, esta­mos falando de quase dois mil­hões de pes­soas desa­lo­jadas, assom­bradas, vivendo na certeza de logo podem ser as próx­i­mas víti­mas; esta­mos falando de mil­hares de feri­dos pas­sando por trata­men­tos médi­cos sem as mín­i­mas condições; esta­mos falando da fome, da sede e do frio a que estão sub­meti­das essas pes­soas.

O ataque ter­ror­ista do Hamas, por mais vio­lento e abjeto que tenha sido não jus­ti­fica a reação despro­por­cional do estado israe­lense con­tra os civis palesti­nos.

Não é des­culpa dizer que os ter­ror­is­tas uti­lizam os civis como “escu­dos humanos”. São quase 25 mil civis mor­tos, setenta por cento de mul­heres e cri­anças.

Não existe jus­ti­fica­tiva para isso.

Muito mais cedo do que tarde a história cobrará dos envolvi­dos a respon­s­abil­i­dade de cada um. Cobrará o fato dos líderes do mundo apoiarem ou silen­cia­rem diante de tanto sofri­mento imposto aos inocentes.

Como disse ante­ri­or­mente, não há jus­ti­fica­tiva plausível para Israel elim­i­nar tan­tos civis inocentes com a des­culpa de que com­bate o grupo ter­ror­ista que o ata­cou.

Isso fica muito mais evi­dente quando faze­mos os com­par­a­tivos entre os dois recortes históri­cos e mais ainda quando com­para­mos os homens e mul­heres e aquilata­mos suas reações ao redor do mundo.

Em boa hora – emb­ora já tar­dia­mente –, a África do Sul pro­to­colou denún­cia no Tri­bunal Penal Inter­na­cional con­tra Israel, medida apoiada pelo Brasil.

Toda guerra é desumana. A guerra da Rús­sia con­tra a Ucrâ­nia, por exem­plo, é outra aber­ração histórica que já cau­sou mil­hares de mor­tos mas que diante do que vem ocor­rendo em Gaza parece um “acon­tec­i­mento dis­tante”.

Os cidadãos de bem pre­cisamos deixar claro que não esta­mos de acordo com o que vem acon­te­cendo no mundo. Pre­cisamos externar isso de forma bas­tante firme. Pre­cisamos que nos­sas vozes façam ces­sar as barbáries.

Abdon C. Mar­inho é advo­gado.