Reflexões para a democracia.
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- Criado: Domingo, 28 Julho 2024 12:26
- Escrito por Abdon Marinho
Reflexões para a democracia.
Por Abdon C. Marinho.
EXISTIU UM TEMPO na história da humanidade em que era “normal” que uns escravizassem outros. A economia de muitas nações, por muito tempo, viveu dessa prática vergonhosa.
Embora tenhamos conhecimento de escravidão de outros povos, os africanos – e as nações da África –, foi quem mais sofreu com essa prática – e vivem com as suas consequências até hoje.
Aqueles que viviam da escravidão eram “cidadãos de bem”, protetores da família, da moral e dos bons costumes; iam missas de domingo com suas famílias e contavam com a simpatia de todos.
O Brasil viveu dessa prática odienta por séculos, até, precisamente, 1888, quando foi decretada a extinção da escravidão no nosso país.
Ainda hoje persiste práticas de escravidão – não apenas de negros, mas, também, de brancos –, em várias modalidades de exploração.
A miséria e a fome são os novos grilhões que aprisionam milhares, senão milhões de pessoas no Brasil e no resto do mundo.
Os “novos” escravocratas não estão escondidos nos “cafundós do Judas”, estão bem mais perto do que imaginamos, frequentam a “sociedade”, são tidos por cidadãos de bem, descolados, ricos, “bem sucedidos”, etc., o típico cidadão que se diz defensor da lei e dos bons costumes.
Muito embora a escravidão de negros tenha sido declarada extinta no Brasil, quase um século e meio depois, os efeitos da escravização continuam presentes na sociedade se manifestando contra os negros de forma velada ou escancarada nas várias formas de racismo que assistimos diariamente.
Muitas das vezes as discriminações sociais e o racismo ocorrem de formas tão sutis que mesmo as vítimas não se dão conta e acabam por aliar-se aos discriminadores racistas.
Existiu um tempo em que as mulheres eram consideradas cidadãs de segunda categoria, viviam em função do marido (e na dependência dele) ou do filho (e na dependência desse), não era considerada apta para o trabalho, para exercer quaisquer funções fora do lar e mesmo neste, deveria cumprir o papel de “parideira” estado sempre a disposição do homem quando este a quisesse “usar” e fazer filhos homens sendo “culpadas” por não engravidarem ou por não parirem filhos homens.
Uma novela de época tendo o grande ator José Wilker no papel principal na qual contracenava com não menos brilhante atriz Maitê Proença retrata muito bem essa fase triste da história brasileira.
Em todo mundo a conquista do direito de voto feminino foi muito demorada.
No Brasil só conquistaram esse direito a partir de 1932. Quase cem anos depois a participação da mulher na política brasileira e na vida pública nacional ainda é pífia. Basta ver o número de mulheres no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores, nas Cortes de Justiça, seja estadual, federal, nos cargos públicos de relevância.
Quando fazemos essa análise em relação as mulheres pretas aí sim é que não existe mesmo.
O Brasil – e também o mundo –, ainda vivem uma espécie de patriarcado racista onde uma elite rica, masculina e branca se acha no direito de comandarem os destinos da sociedade mundial.
Ainda hoje em muitas nações do mundo as mulheres não têm respeitado seus direitos mais elementares e mesmo nas chamadas democracias ocidentais sofrem toda sorte de violência.
Os números estão aí para serem confrontados.
A cada dia milhares de mulheres sofrem violência física ou sexual, são assassinadas por homens que ainda hoje se julgam seus donos; sofrem violência patrimonial sendo obrigadas a trabalharem para sustentarem rufiões e malandros de todo tipo, sob pena de sofrerem mais violência física ou serem mortas.
Todos os dias se tem notícia de crianças sendo “vendidas” para a prostituição ou mesmo para serem “escravizadas” de diversas formas.
Em maior ou menor grau, a misoginia e a violência de gênero se fazem presente nos dias atuais.
E se manifestam muitas das vezes das formas mais absurdas e também sutis.
Outro dia a Câmara dos Deputados do Brasil colocou em régime de urgência um projeto de lei que tinha por objetivo criminalizar as mulheres que praticassem o aborto após determinado lapso temporal. Como no Brasil o aborto só é permitido em três casos (nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e nos casos de anencéfalos) a pena assinada seria maior do que aquela determinada para o cidadão que estuprou a vítima.
Um outro caso, ainda no Brasil, que comprova o quanto ainda teremos que percorrer para chegarmos a uma sociedade minimamente civilizada, aprovou-se uma anistia aos partidos políticos que deixaram de cumprir a cota de gênero e os isentando de aplicar os recursos públicos nas campanhas de mulheres e negros.
Esse tipo de coisa, infelizmente, não é privilégio do estado brasileiro, agora mesmo, na campanha eleitoral americana, o candidato Donald Trump, desde sempre rico, branco, macho, disse que a candidata adversária não poderia tornar-se presidente daquele país por ser mulher e socialista.
Como socialismo é algo inexistente para os americanos, ele não “aceita” é a candidatura de uma mulher, e ao seu estilo, deverá atacá-la por todos meios baixos e sórdidos.
Ora, onde já se viu uma mulher pretender um cargo político de tanta relevância e responsabilidade?
Outro dia vi uma declaração do candidato a vice-presidente de Trump onde o mesmo dizia que a candidata democrata não estaria apta por nunca ter dado a luz, nunca ter parido.
Como podemos perceber os “cidadãos de bem” não conseguem se desvincularem do passado escravocrata, patriarcal e discriminatório contra todos aqueles que não são do seu “padrão”. Esse tipo de comportamento encontra-se na raiz das maiores tragédias da humanidade.
As vésperas das eleições no Brasil e nos Estados Unidos acho de fundamental importância para a sociedade fazer esse tipo de reflexão.
Que tipo de representação política os brasileiros queremos nas prefeituras e nas Câmaras Municipais: uma representação que procure resgatar e representar toda a sociedade brasileira com um número cada vez maior de mulheres, negros, pessoas com deficiência na política ou a representação do tempo dos coronéis?
Em relação as eleições presidenciais americanas vejo com extremo otimismo e bem-querer o ingresso da atual vice-presidente Kamala Harris para disputar o cargo de presidente.
Essa mulher filha de um pai imigrante jamaicano e de uma mãe imigrante indiana representa um sopro revigorante para o que se entende por democracia, um governo de todos e para todos. Mostra para milhões (ou bilhões) de meninas ao redor do mundo que elas podem chegar ou quiserem e que não podem aceitar por serem mulheres, negras, um papel secundário em qualquer lugar onde se encontrem.
O anormal numa sociedade é a desigualdade. Todos precisam ser iguais e tratados como iguais e igualmente merecedores da atenção, respeito e oportunidades.
Não parece razoável que em pleno século XXI ainda tenhamos que viver em um mundo com tanta desigualdade, intolerância e desrespeito aos que querem viver suas próprias vidas.
Abdon C. Marinho é advogado.