O PAÍS CONSAGRA O JEITINHO.
CHEGA ser doloroso assistir as justificativas dadas para o fato do Senado Federal cassar o mandato da presidente Dilma Rousseff e, acatando provocação de aliados da cassada, votar uma segunda vez para retirar da pena a inabilitação por oito anos, além do período de mandato remanescente.
A explicação é simples: trata-se de um ramo do direito não ensinado nas universidades pátrias nem catalogado cientificamente e que atende pelo singelo nome de jeitinho.
As regras para o impedimento das autoridades da República são estabelecidas pela Constituição: começa na Câmara dos deputados que faz a primeira admissão – mas uma inovação trazida no processo da ex-presidente Dilma, no precedente anterior admitia e pronto, sem necessidade do referendo da segunda casa –, e ao Senado Federal cabendo o processo e julgamento, conforme preceitua o artigo 52, que transcrevo abaixo:
«Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I — processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999).
II –processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).»
No mesmo artigo, o parágrafo único traz as consequências. Transcrevo abaixo:
«Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.»
A inabilitação e à perda do cargo são consequências naturais do julgamento. Não existe previsão constitucional para a inovação que deram ao contido na Carta.
Entendo que o Senado Federal poderia cassar (como cassou), assim como poderia entender que presidente não cometera os crimes de responsabilidades que lhe foram imputados. Eram livres para votar conforme suas consciências mandassem. O que não poderiam (e não podem), eram mitigar a pena, aplicar a cassação sem inabilitação. Desavergonhadamente, reescreveram a Constituição, investiram-se na condição de constituintes causando instabilidade e insegurança jurídica ao país.
Vejam só o alcance da loucura que fizeram: se a ex-presidente Dilma tivesse renunciado (como fez o ex-presidente Collor), seria, para todos os efeitos, inelegível, nos termos da Lei Complementar 64⁄90:
«k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)».
No «arranjo» que o Senado Federal – presidido pelo presidente do STF –, fez, renunciar após a propositura de qualquer representação que possa ensejar a cassação, tornou-se mais grave que ser cassado pelo órgão competente, no caso presente, o Senado. Existe alguma lógica nisso? Não. Claro que não.
Calma que a situação é um pouquinho pior. Por que digo isso? Simples, dos políticos brasileiros, não é de hoje, nos habituamos a esperar os maiores absurdos, não nos surpreende que façam assim ou assado, que olhe os seus interesses antes dos interesses da nação, etc.
O grave do evento que comentamos é que a admissão da pataquada foi obra e graça do presidente do Supremo Tribunal Federal, o órgão a quem cabe, constitucionalmente, a guarda da Constituição, a quem cabe zelar e interpretar o que lá está dito.
Será que o parágrafo único do artigo 52, comporta qualquer outra interpretação que não aquela literalmente posta?
Por mais que se tente, a resposta é não. A inabilitação é consequência do julgamento que cassou o mandato.
A lei, muito menos a Constituição, não admitem «jeitinhos». Em tais textos, foi assim que aprendi, não existem palavras vãs.
O que fizeram, nas palavras da própria presidente cassada, foi rasgarem o mandamento constitucional. E, infelizmente, não vai acontecer nada. Ninguém, pelo que já ouvi dos diversos «entendidos», sequer vai questionar o que fizeram. A ninguém interessa a lei, o que é certo ou errado. É assim, que o Senado Federal com o concurso do presidente do Supremo aprovam e homologam, sem constrangimento, excrescências como a que assistimos.
Dão uma no cravo, outra na ferradura, e todos riem na cara dos cidadãos. Uma vergonha. Um vexame.
Abdon Marinho é advogado.