A “ESTUDANTADA” QUE CONSTRANGEU O BRASIL.
Por Abdon Marinho.
DOMINGO, 08 de julho de 2018, um dia para o Poder Judiciário esquecer – ou para lembrar como exemplo do nunca mais deve ser repetido.
Mal acabara a corrida de fórmula um, meu celular começou a receber mensagens dos diversos grupos informando que o Tribunal Regional Federal da Quarta Região — TRF4, sediado em Porto Alegre, RS, determinara a soltura do ex-presidente Lula, condenado a doze anos e um mês de prisão pelo próprio tribunal.
A primeira impressão que tive, confesso, foi que se tratava de “fake news”. Acessei os principais sites do país e lá estava a notícia com todas as letras: o Desembargador Rogério Favreto, no plantão, atendendo a um pedido de três deputados do Partido dos Trabalhadores — PT, concedera uma ordem de Habeas Corpus determinando a imediata soltura do condenado em primeira e segunda instância pelo próprio tribunal.
Sem a pretensão de lecionar nada, acho oportuno pontuar algumas questões.
A primeira questão é a natureza do HC impetrado.
Qualquer primeiranista de direito sabe ao se reclamar pela liberdade de alguém tem que se identificar quem é a autoridade coatora, ou seja, quem está restringindo a liberdade do paciente. É isso que determina a competência de quem vai conceder ou negar a ordem. Essa informação é essencial para a concessão da ordem e para saber a quem a ordem de soltura se dirige.
Foi identificado o juízo da 13a Vara da Justiça Federal do Paraná, subordinada ao TRF4 e, portanto, subordinada à jurisdição do desembargador plantonista.
Além do mais, para concessão da ordem seria necessário um “fato novo”, uma vez, como dito anteriormente, trata-se de um condenado em duas instâncias, que já teve infinitos recursos julgados pelas mais diversas instâncias da justiça brasileira, tendo, todas elas, por unanimidade (a exceção do STF que decidiu por maioria), que a prisão é regular e legitima.
Os impetrantes, advogados e deputados petistas impetraram a ordem sabendo de antemão que, exceto numa condição de anormalidade, a ordem jamais seria concedida, diante dos obstáculos legais.
Talvez, por isso, enquanto todos ainda choravam a derrota da seleção brasileira, meia hora depois de iniciado o plantão do fim de semana, com um relator, que por seus vínculos, sensível a tese jurídica dos impetrantes, buscaram a soltura do ex-presidente, a despeito dos obstáculos legais referidos.
O Regimento Interno do TRF4 limita a atuação do juízo de plantão, senão vejamos:
“Art. 92. Nos sábados, domingos e feriados, nos dias em que não houver expediente normal, e fora do horário do expediente, haverá plantão no Tribunal, mediante rodízio dos Desembargadores, em escala aprovada pelo Plenário.
§ 2º O plantão judiciário não se destina à reiteração de pedido já apreciado pelo Tribunal, inclusive em plantão anterior, nem à sua reconsideração ou reexame, ou à apreciação de solicitação de prorrogação de autorização judicial para escuta telefônica”.
Não bastasse a regra explicita do regimento interno do tribunal, uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, a de número 71, no seu artigo 1º, repete o que já consta no RI: “§ 1º. O Plantão Judiciário não se destina à reiteração de pedido já apreciado no órgão judicial de origem ou em plantão anterior, nem à sua reconsideração ou reexame ou à apreciação de solicitação de prorrogação de autorização judicial para escuta telefônica”.
Apesar de destes obstáculos explicitados tanto no regimento quanto na resolução do CNJ, o desembargador plantonista achou oportuno conceder a ordem de habeas corpus sob o argumento de que sugira um “fato novo”: o lançamento da pré-candidatura do ex-presidente condenado e que o mesmo precisaria está livre para participar de reuniões, debates, entrevistas, etc.
Ora, esse “fato novo” é conhecido desde que o ex-presidente saiu do governo para dar lugar a senhora Dilma Rousseff quando frustrada a tentativa de terceiro mandato seguido. Quando, em 2014, a substituta se recusou a ceder a vaga, foi motivo de stress público. Quando, através do processo de impeachment a presidente caiu, o ex-presidente presidente se anunciou pré-candidato, não descendo mais do palanque desde então. Nem mesmo com o processo, a condenação e a prisão o afastou do palanque.
Na verdade, o condenado, sempre usou esse fato, o fato politico, como uma tentativa de esmaecer as graves acusações contra ele. Não é sem razão que os críticos do ex-presidente refere-se a ele como “palanque ambulante”.
Assim, qualquer pessoa que examine as coisas com um mínimo de bom senso chegará a conclusão de que essa argumentação é absurda, que não faz qualquer sentido.
Mais: faz parecer que houve um tentativa de fuga tramada por aliados do ex-presidente, os deputados impetrantes, e que essa “tentativa” contou com a providencial simpatia do desembargador plantonista, um ex-militante do partido dos trabalhadores, que foi subordinado direto de expressivas figuras da organização partidária nos cargos que ocuparam nos governos que comandaram, inclusive, subordinado do ex-presidente.
Numa situação tão complexa, era de se esperar de um magistrado plantonista que agisse com cautela. Até porque, é duvidosa a competência do TRF4, uma vez que a jurisdição já se esgotara com a decisão que acolheu o recurso especial e não acolheu o recurso extraordinário da defesa.
Outra coisa, a decisão que mandou prender o ex-presidente foi da Oitava Câmara do TRF4. Logo a autoridade coatora, seria aquele órgão judiciário e não o juízo da 13ª Vara do Paraná.
Como poderia um plantonista ultrapassar todos esses óbices e mandar soltar um condenado sob o pálido argumento de que seria um pré-candidato e que precisa fazer sua campanha? Será que qualquer um, nas mesmas condições, pode invocar tal argumento?
Outro ponto a merecer atenção é a conduta do juiz Sérgio Moro.
A defesa e seus críticos apontam que ele não poderia deixar de cumprir a decisão ou que não poderia intrometer-se no assunto por que estaria no gozo de férias.
Vamos por partes. O juízo da 13ª Vara do Paraná foi apontado como coator e foi “intimado” a prestar esclarecimentos no prazo de 05 (cinco) dias sobre os fatos articulados na petição inicial.
Logo, ainda que se questione o fato de ter suspendido suas férias, decidido no domingo, ter questionado a ordem de soltura.
Resta claro que ele não agiu “de oficio” ou “se atravessou” no processo, ele foi chamado a se manifestar nos autos.
O juiz diante de uma ordem flagrantemente ilegal fez o correto, questionou o cumprimento através da medida jurídica cabível, dizendo não ser o juízo da 13ª Vara a autoridade coatora, estabelecendo, assim, o conflito de competência entre o plantonista e a Câmara que determinou o cumprimento da pena.
Ora, questionado sobre um possível conflito positivo de competência pelo juízo de piso, nada mais normal que o relator da matéria viesse aos autos se manifestar.
Visto por este prisma, nada mais comum que o juiz natural do feito no TRF4 “avocasse” o processo para suspender a decisão.
Diante de tanta coisa inusitada, a decisão do desembargador Gebran Neto, numa tentativa de “salvar” a honra do tribunal, ainda disse que o magistrado plantonista foi levado a “erro” pelos impetrantes. Estes rapapés são comuns nos meio judiciário.
Incomum, o ponto fora da curva, foi, apesar da decisão do chamado juiz natural e ainda em face da grave repercussão da matéria, o plantonista insistir na determinação de soltura do condenado, estipulando um prazo de uma hora para a Policia Federal cumprir, sob pena de responsabilidade e desobediência.
E, se foi questionável que tenha insistido na determinação da soltura do condenado após o alerta do feito pelo juiz de piso sobre uma possível incompetência, acredito que tenha saído um pouco mais do tom, com a insistência, após a manifestação do relator original do processo que, como disse na sua decisão, “avocou” para si a responsabilidade para deliberar sobre o HC impetrado, inclusive, com emissão de opinião, extra autos, através de entrevista a uma rádio do Rio Grande do Sul.
A tal insistência levou o presidente daquela corte, atendendo a uma solicitação do Ministério Público Federal, a suspender a liminar concedida e retornar os autos ao juízo natural, o relator do feito na Oitava Câmara.
Antes de nos perguntar ou apontar quem agiu certo, quem agiu errado, quem extrapolou nas suas atribuições, fazem-se necessários outros questionamentos:
Quem ganha com tamanho tumulto processual? Os advogados do ex-presidente já não estão questionando o cumprimento da pena após decisão de segunda instância no Supremo Tribunal Federal? Não estão com recurso no Superior Tribunal de Justiça discutindo a condenação? Será que acham “normal” depois do processo ter percorrido todas as instâncias, com os mais variados recursos, com uma “canetada” se desmanche todas as decisões já tomadas?
O mínimo que se espera do Poder Judiciário é cautela, é parcimônia, é serenidade.
Ainda que ache, pessoalmente, que as decisões do juízo da 13ª Vara, do relator natural e do presidente do TRF4 estejam formalmente corretas e restabeleceu a normalidade do curso processual, aquele tribunal – e o Poder Judiciário, de forma geral –, saem do episódio chamuscado. Entrou naquilo que se costuma dizer: cômico, se não fosse trágico.
Foi um espetáculo grotesco, constrangedor para a sociedade e para as instituições.
Pior que isso, só se tivesse ocorrido a soltura do condenado sob a fajuta argumentação de que não se pode negar o direito de um cidadão – ainda que condenado em duas instâncias, por um crime que o inabilita a concorrer a qualquer cargo, e ser, portanto, duas vezes, “ficha suja” –, fazer sua “pré-campanha”, e, no dia seguinte, ou poucos dias depois, o juízo natural do processo, determinar mais uma vez sua prisão. Sim, pois a menos que esteja tudo errado no direito, a decisão que determinou a soltura, apesar de todos os obstáculos, não teria como se sustentar.
Teríamos de volta toda aquela novela para determinar a prisão do cidadão, com direito a comícios, manifestos, tumultos, etc., sem contar com o plausível risco de fuga.
Uma incomum decisão secundadas por outras igualmente incomuns, num dia incomum, leva o país, em suspense, ser, mais uma vez, motivo de piadas ao redor do mundo.
Me pergunto a razão disso tudo. A quem interessa ridicularizar a Justiça do Brasil? Quem ganha com o país sendo motivo de chacota mundial?
Abdon Marinho é advogado.
*A foto que ilustra é a capa do Jornal Extra do dia 09 de julho de 2018.