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A “ESTU­DAN­TADAQUE CON­STRANGEU O BRASIL.

Escrito por Abdon Mar­inho

AESTU­DAN­TADAQUE CON­STRANGEU O BRASIL.

Por Abdon Marinho.

DOMINGO, 08 de julho de 2018, um dia para o Poder Judi­ciário esque­cer – ou para lem­brar como exem­plo do nunca mais deve ser repetido.

Mal acabara a cor­rida de fór­mula um, meu celu­lar começou a rece­ber men­sagens dos diver­sos gru­pos infor­mando que o Tri­bunal Regional Fed­eral da Quarta Região — TRF4, sedi­ado em Porto Ale­gre, RS, deter­mi­nara a soltura do ex-​presidente Lula, con­de­nado a doze anos e um mês de prisão pelo próprio tribunal.

A primeira impressão que tive, con­fesso, foi que se tratava de “fake news”. Aces­sei os prin­ci­pais sites do país e lá estava a notí­cia com todas as letras: o Desem­bar­gador Rogério Favreto, no plan­tão, aten­dendo a um pedido de três dep­uta­dos do Par­tido dos Tra­bal­hadores — PT, con­ced­era uma ordem de Habeas Cor­pus deter­mi­nando a ime­di­ata soltura do con­de­nado em primeira e segunda instân­cia pelo próprio tribunal.

Sem a pre­ten­são de lecionar nada, acho opor­tuno pon­tuar algu­mas questões.

A primeira questão é a natureza do HC impe­trado.

Qual­quer primeiranista de dire­ito sabe ao se recla­mar pela liber­dade de alguém tem que se iden­ti­ficar quem é a autori­dade coa­tora, ou seja, quem está restringindo a liber­dade do paciente. É isso que deter­mina a com­petên­cia de quem vai con­ceder ou negar a ordem. Essa infor­mação é essen­cial para a con­cessão da ordem e para saber a quem a ordem de soltura se dirige.

Foi iden­ti­fi­cado o juízo da 13a Vara da Justiça Fed­eral do Paraná, sub­or­di­nada ao TRF4 e, por­tanto, sub­or­di­nada à juris­dição do desem­bar­gador plantonista.

Além do mais, para con­cessão da ordem seria necessário um “fato novo”, uma vez, como dito ante­ri­or­mente, trata-​se de um con­de­nado em duas instân­cias, que já teve infini­tos recur­sos jul­ga­dos pelas mais diver­sas instân­cias da justiça brasileira, tendo, todas elas, por una­n­im­i­dade (a exceção do STF que decidiu por maio­ria), que a prisão é reg­u­lar e legitima.

Os impe­trantes, advo­ga­dos e dep­uta­dos petis­tas impe­traram a ordem sabendo de antemão que, exceto numa condição de anor­mal­i­dade, a ordem jamais seria con­ce­dida, diante dos obstácu­los legais.

Talvez, por isso, enquanto todos ainda choravam a der­rota da seleção brasileira, meia hora depois de ini­ci­ado o plan­tão do fim de sem­ana, com um rela­tor, que por seus vín­cu­los, sen­sível a tese jurídica dos impe­trantes, bus­caram a soltura do ex-​presidente, a despeito dos obstácu­los legais referidos.

O Reg­i­mento Interno do TRF4 limita a atu­ação do juízo de plan­tão, senão vejamos:

Art. 92. Nos sába­dos, domin­gos e feri­ados, nos dias em que não hou­ver expe­di­ente nor­mal, e fora do horário do expe­di­ente, haverá plan­tão no Tri­bunal, medi­ante rodízio dos Desem­bar­gadores, em escala aprovada pelo Plenário.

§ 2º O plan­tão judi­ciário não se des­tina à reit­er­ação de pedido já apre­ci­ado pelo Tri­bunal, inclu­sive em plan­tão ante­rior, nem à sua recon­sid­er­ação ou reex­ame, ou à apre­ci­ação de solic­i­tação de pror­ro­gação de autor­iza­ção judi­cial para escuta telefônica”.

Não bas­tasse a regra explicita do reg­i­mento interno do tri­bunal, uma res­olução do Con­selho Nacional de Justiça, a de número 71, no seu artigo 1º, repete o que já con­sta no RI: “§ 1º. O Plan­tão Judi­ciário não se des­tina à reit­er­ação de pedido já apre­ci­ado no órgão judi­cial de origem ou em plan­tão ante­rior, nem à sua recon­sid­er­ação ou reex­ame ou à apre­ci­ação de solic­i­tação de pror­ro­gação de autor­iza­ção judi­cial para escuta telefônica”.

Ape­sar de destes obstácu­los explic­i­ta­dos tanto no reg­i­mento quanto na res­olução do CNJ, o desem­bar­gador plan­ton­ista achou opor­tuno con­ceder a ordem de habeas cor­pus sob o argu­mento de que sugira um “fato novo”: o lança­mento da pré-​candidatura do ex-​presidente con­de­nado e que o mesmo pre­cis­aria está livre para par­tic­i­par de reuniões, debates, entre­vis­tas, etc.

Ora, esse “fato novo” é con­hecido desde que o ex-​presidente saiu do gov­erno para dar lugar a sen­hora Dilma Rouss­eff quando frustrada a ten­ta­tiva de ter­ceiro mandato seguido. Quando, em 2014, a sub­sti­tuta se recu­sou a ceder a vaga, foi motivo de stress público. Quando, através do processo de impeach­ment a pres­i­dente caiu, o ex-​presidente pres­i­dente se anun­ciou pré-​candidato, não descendo mais do palanque desde então. Nem mesmo com o processo, a con­de­nação e a prisão o afas­tou do palanque.

Na ver­dade, o con­de­nado, sem­pre usou esse fato, o fato politico, como uma ten­ta­tiva de esmae­cer as graves acusações con­tra ele. Não é sem razão que os críti­cos do ex-​presidente refere-​se a ele como “palanque ambu­lante”.

Assim, qual­quer pes­soa que exam­ine as coisas com um mín­imo de bom senso chegará a con­clusão de que essa argu­men­tação é absurda, que não faz qual­quer sen­tido.

Mais: faz pare­cer que houve um ten­ta­tiva de fuga tra­mada por ali­a­dos do ex-​presidente, os dep­uta­dos impe­trantes, e que essa “ten­ta­tiva” con­tou com a prov­i­den­cial sim­pa­tia do desem­bar­gador plan­ton­ista, um ex-​militante do par­tido dos tra­bal­hadores, que foi sub­or­di­nado direto de expres­si­vas fig­uras da orga­ni­za­ção par­tidária nos car­gos que ocu­param nos gov­er­nos que coman­daram, inclu­sive, sub­or­di­nado do ex-​presidente.

Numa situ­ação tão com­plexa, era de se esperar de um mag­istrado plan­ton­ista que agisse com cautela. Até porque, é duvi­dosa a com­petên­cia do TRF4, uma vez que a juris­dição já se esgo­tara com a decisão que acol­heu o recurso espe­cial e não acol­heu o recurso extra­ordinário da defesa.

Outra coisa, a decisão que man­dou pren­der o ex-​presidente foi da Oitava Câmara do TRF4. Logo a autori­dade coa­tora, seria aquele órgão judi­ciário e não o juízo da 13ª Vara do Paraná.

Como pode­ria um plan­ton­ista ultra­pas­sar todos esses óbices e man­dar soltar um con­de­nado sob o pálido argu­mento de que seria um pré-​candidato e que pre­cisa fazer sua cam­panha? Será que qual­quer um, nas mes­mas condições, pode invo­car tal argumento?

Outro ponto a mere­cer atenção é a con­duta do juiz Sér­gio Moro.

A defesa e seus críti­cos apon­tam que ele não pode­ria deixar de cumprir a decisão ou que não pode­ria intrometer-​se no assunto por que estaria no gozo de férias.

Vamos por partes. O juízo da 13ª Vara do Paraná foi apon­tado como coa­tor e foi “inti­mado” a prestar esclarec­i­men­tos no prazo de 05 (cinco) dias sobre os fatos artic­u­la­dos na petição ini­cial.

Logo, ainda que se ques­tione o fato de ter sus­pendido suas férias, deci­dido no domingo, ter ques­tion­ado a ordem de soltura.

Resta claro que ele não agiu “de ofi­cio” ou “se atrav­es­sou” no processo, ele foi chamado a se man­i­fes­tar nos autos.

O juiz diante de uma ordem fla­grante­mente ile­gal fez o cor­reto, ques­tio­nou o cumpri­mento através da medida jurídica cabível, dizendo não ser o juízo da 13ª Vara a autori­dade coa­tora, esta­b­ele­cendo, assim, o con­flito de com­petên­cia entre o plan­ton­ista e a Câmara que deter­mi­nou o cumpri­mento da pena.

Ora, ques­tion­ado sobre um pos­sível con­flito pos­i­tivo de com­petên­cia pelo juízo de piso, nada mais nor­mal que o rela­tor da matéria viesse aos autos se man­i­fes­tar.

Visto por este prisma, nada mais comum que o juiz nat­ural do feito no TRF4 “avo­casse” o processo para sus­pender a decisão.

Diante de tanta coisa inusi­tada, a decisão do desem­bar­gador Gebran Neto, numa ten­ta­tiva de “sal­var” a honra do tri­bunal, ainda disse que o mag­istrado plan­ton­ista foi lev­ado a “erro” pelos impe­trantes. Estes rapa­pés são comuns nos meio judiciário.

Inco­mum, o ponto fora da curva, foi, ape­sar da decisão do chamado juiz nat­ural e ainda em face da grave reper­cussão da matéria, o plan­ton­ista insi­s­tir na deter­mi­nação de soltura do con­de­nado, estip­u­lando um prazo de uma hora para a Poli­cia Fed­eral cumprir, sob pena de respon­s­abil­i­dade e desobediência.

E, se foi ques­tionável que tenha insis­tido na deter­mi­nação da soltura do con­de­nado após o alerta do feito pelo juiz de piso sobre uma pos­sível incom­petên­cia, acred­ito que tenha saído um pouco mais do tom, com a insistên­cia, após a man­i­fes­tação do rela­tor orig­i­nal do processo que, como disse na sua decisão, “avo­cou” para si a respon­s­abil­i­dade para delib­erar sobre o HC impe­trado, inclu­sive, com emis­são de opinião, extra autos, através de entre­vista a uma rádio do Rio Grande do Sul.

A tal insistên­cia levou o pres­i­dente daquela corte, aten­dendo a uma solic­i­tação do Min­istério Público Fed­eral, a sus­pender a lim­i­nar con­ce­dida e retornar os autos ao juízo nat­ural, o rela­tor do feito na Oitava Câmara.

Antes de nos per­gun­tar ou apon­tar quem agiu certo, quem agiu errado, quem extrapolou nas suas atribuições, fazem-​se necessários out­ros ques­tion­a­men­tos:

Quem ganha com tamanho tumulto proces­sual? Os advo­ga­dos do ex-​presidente já não estão ques­tio­nando o cumpri­mento da pena após decisão de segunda instân­cia no Supremo Tri­bunal Fed­eral? Não estão com recurso no Supe­rior Tri­bunal de Justiça dis­cutindo a con­de­nação? Será que acham “nor­mal” depois do processo ter per­cor­rido todas as instân­cias, com os mais vari­a­dos recur­sos, com uma “cane­tada” se des­man­che todas as decisões já tomadas?

O mín­imo que se espera do Poder Judi­ciário é cautela, é parcimô­nia, é serenidade.

Ainda que ache, pes­soal­mente, que as decisões do juízo da 13ª Vara, do rela­tor nat­ural e do pres­i­dente do TRF4 este­jam for­mal­mente cor­re­tas e resta­b­ele­ceu a nor­mal­i­dade do curso proces­sual, aquele tri­bunal – e o Poder Judi­ciário, de forma geral –, saem do episó­dio chamus­cado. Entrou naquilo que se cos­tuma dizer: cômico, se não fosse trágico.

Foi um espetáculo grotesco, con­strange­dor para a sociedade e para as insti­tu­ições.

Pior que isso, só se tivesse ocor­rido a soltura do con­de­nado sob a fajuta argu­men­tação de que não se pode negar o dire­ito de um cidadão – ainda que con­de­nado em duas instân­cias, por um crime que o inabilita a con­cor­rer a qual­quer cargo, e ser, por­tanto, duas vezes, “ficha suja” –, fazer sua “pré-​campanha”, e, no dia seguinte, ou poucos dias depois, o juízo nat­ural do processo, deter­mi­nar mais uma vez sua prisão. Sim, pois a menos que esteja tudo errado no dire­ito, a decisão que deter­mi­nou a soltura, ape­sar de todos os obstácu­los, não teria como se sus­ten­tar.

Teríamos de volta toda aquela nov­ela para deter­mi­nar a prisão do cidadão, com dire­ito a comí­cios, man­i­festos, tumul­tos, etc., sem con­tar com o plausível risco de fuga.

Uma inco­mum decisão secun­dadas por out­ras igual­mente inco­muns, num dia inco­mum, leva o país, em sus­pense, ser, mais uma vez, motivo de piadas ao redor do mundo.

Me per­gunto a razão disso tudo. A quem inter­essa ridic­u­larizar a Justiça do Brasil? Quem ganha com o país sendo motivo de cha­cota mundial?

Abdon Mar­inho é advogado.

*A foto que ilus­tra é a capa do Jor­nal Extra do dia 09 de julho de 2018.

POLIOMIELITE: A DES­GRAÇA QUE AMEAÇA O BRASIL ACON­TE­CEU COMIGO.

Escrito por Abdon Mar­inho

POLIOMIELITE: A DES­GRAÇA QUE AMEAÇA O BRASIL ACON­TE­CEU COMIGO.

Por Abdon Marinho.

UMA notí­cia tem me assus­tado e emo­cionado ulti­ma­mente.

A noti­cia é que o Maran­hão é o segundo estado do Brasil – atrás ape­nas da Bahia –, em risco de retorno da poliomielite. Impres­siona essa nossa vocação para atrair des­graças.

Segundo informa o Min­istério da Saúde, em mais de 14% (qua­torze por cento) dos municí­pios do estado a cober­tura vaci­nal con­tra a pólio não chegou a 50% (cinquenta por cento). A recomen­dação é que a cober­tura vaci­nal atinja ao menos 95% (noventa e cinco por cento) das cri­anças.

O Brasil que há mais de trinta anos erradi­cou essa molés­tia, agora ver-​se enredado, mais uma vez com o retorno desta e de tan­tas out­ras, a exem­plo do sarampo que já começaram a fazer víti­mas.

Esta­mos diante de uma situ­ação que custo a enten­der.

Quero acred­i­tar que os pais são pes­soas que amam seus fil­hos, por quem, não raro, dariam a própria vida, ainda mais quando esta­mos falando de cri­anças, de zero a cinco anos ou um pouco mais.

Então, como jus­ti­ficar que estas pes­soas não dedique umas pou­cas horas para levar estas cri­anças aos pos­tos de vacina quando se sabe que o ano inteiro podem vaciná-​las con­tra doenças como sarampo ou a poliomielite?

Decerto não é falta de infor­mação. Por onde pas­samos, mesmo nas residên­cias mais humildes, com raras exceções, não se encon­tra uma tele­visão lig­ada a uma antena parabólica. Quando não, um rádio a pilha, um celu­lar. Ou seja, só mesmo em situ­ações abso­lu­ta­mente atípi­cas encon­tramos alguém que viva alheio às infor­mações cotid­i­anas, sem acesso a tele­visão, rádio, jor­nal, notí­cias de qual­quer natureza.

Assim, soa incom­preen­sível que doenças graves este­jam, mais uma vez ameaçando a vida de mil­hares de cri­anças por algo tão triv­ial quanto é a ausên­cia de vaci­nação.

Ainda mais, repito, quando sabe­mos que tais vaci­nas estão disponíveis o ano inteiro nos pos­tos de saúde; quando sabe­mos que, bem ou mal, as pes­soas têm um nível de infor­mação que as tor­nam capazes de enten­der a gravi­dade destas doenças que estavam errad­i­cadas e que ameaçam voltar com todo força pela sim­ples ausên­cia de vaci­nas; não bas­tasse isso, ainda se tem, pro­gra­mas estatais de saúde da família que garan­tem a visita de profis­sion­ais da área nas residên­cias das pes­soas; e, por fim, a exigên­cia de que cer­tos bene­fí­cios só sejam disponi­bi­liza­dos com a com­pro­vação da imu­niza­ção das cri­anças, que muitas das vezes é ape­nas algu­mas got­in­has min­istradas por via oral.

Torna-​se uma urgên­cia nacional iden­ti­ficar onde as fal­has estão ocor­rendo, inclu­sive com a respon­s­abi­liza­ção dos fal­tosos, a fim de se evi­tar maiores con­se­quên­cias àque­les que não têm condições de se defend­erem por si: as cri­anças.

O gov­erno fed­eral pre­cisa, ime­di­ata­mente, esta­b­ele­cer como critério de repasses de recur­sos vol­un­tários da União aos esta­dos e municí­pios, o cumpri­mento obri­gatório de cober­tura vaci­nal não infe­rior ao nível recomen­dado, como forma destes entes fed­er­a­tivos exi­jam dos pais que vacinem seus fil­hos, não ape­nas con­tra a poliomielite, mas tam­bém con­tra as demais molés­tias.

É ina­ceitável que uma doença tão grave, com con­se­quên­cias tão nefas­tas, seja tratada com tanta leniên­cia.

Como podemos admi­tir que municí­pios não vacinem 5% (cinco por cento) das cri­anças quando se é exigido um nível de vaci­nação de 95% (noventa e cinco por cento) para não cor­re­mos o risco da doença voltar? Como aceitar que ninguém responda por tamanho descal­abro?

Há alguns anos escrevi um texto inti­t­u­lado: “Sou Defi­ciente. E daí?”. Nele esclareço que o fato de ser­mos defi­cientes não nos faz mere­ce­dores de trata­mento difer­en­ci­ado ou pena, e que podemos, com nos­sos esforços, irmos muito além dos espaços que nos são destinados.

Mas, se é ver­dade que podemos ter uma vida com pos­si­bil­i­dades quase ilim­i­tadas, se não nos aqui­etar­mos, tam­bém é ver­dade que ninguém, pelos menos não os com sã con­sciên­cia, “escol­hem” serem defi­cientes, ainda mais quando estas “defi­ciên­cias” podem ser evi­tadas ou pre­venidas.

Estou certo que ninguém escolhe uma vida com dores e lim­i­tações per­ma­nentes.

Há quase cinquenta anos fui acometido pela poliomielite. Eram out­ros tem­pos. Morando no inte­rior do inte­rior, com pais sem nen­huma instrução, não tín­hamos acesso à vaci­nas, aliás, nem sabíamos de tal neces­si­dade.

Quando fui con­t­a­m­i­nado pelo vírus meus pais, par­entes e viz­in­hos, ficaram dias sem saber do que se tratava, o que estava acon­te­cendo, ten­tando a cura com remé­dios caseiros, chás, ben­z­i­men­tos e promessas.

Somente dias depois, quando nada fazia efeito – e não tinha como fazer –, minha mãe saiu, no lombo de um burro, até a cidade mais próx­ima onde pode­ria pegar um outro trans­porte que nos levaria a Teresina, Piauí, onde a doença foi diag­nos­ti­cada e recebi o trata­mento que evi­tou a minha morte e ameni­zou as seque­las. Ape­nas isso, pois tratando-​se de uma doença incurável, o máx­imo que os trata­men­tos con­seguem é amenizarem o sofri­mento dos por­ta­dores que de resto terão que con­viver com ela.

Desde então con­vivo com os efeitos da poliomielite e posso asse­gu­rar que, ape­sar de ser pos­sível a con­vivên­cia, ela nos impõe inúmeras lim­i­tações e dores per­ma­nentes.

Difer­ente de out­ras doenças, ou mesmo um aci­dente, que restringe os movi­men­tos dos mem­bros afe­ta­dos, a poliomielite, faz questão de nos lem­brar sua pre­sença diari­a­mente e não ape­nas através da atrofia dos mem­bros ou seu “afi­na­mento”, mas, tam­bém, através das dores que sen­ti­mos.

São dores nos pés, tornoze­los, não raro chegando até os joel­hos – con­forme a gravi­dade do ataque.

Isso sem con­tar que suas seque­las se tor­nam mais pre­sentes e lim­i­tantes com o pas­sar do tempo.

Quando mais jovem, por exem­plo, tinha mais agili­dade e resistên­cia que tenho hoje, andava para todos os lugares sem qual­quer ajuda. Hoje, já canso mais rápido, não posso ficar tanto tempo em pé e já pre­ciso fazer uso de uma ben­gala. Mas evito pen­sar que possa ainda pio­rar.

Daí minha imensa pre­ocu­pação com o que pode vir acon­te­cer com nos­sas cri­anças pelo desleixo dos pais – e tam­bém pela omis­são das autori­dades –, que, pelo que assis­ti­mos, não se mostra capaz de empreen­der uma cam­panha rig­orosa de vaci­nação, evi­tando que mil­hares de cri­anças mor­ram ou fiquem par­alíti­cas pelo resto da vida, levando uma vida de dores e lim­i­tações.

A poliomielite é uma grave doença com con­se­quên­cias e lim­i­tações que vão bem além do ensina os man­u­ais ou enci­clopé­dias de med­i­c­ina.

O Brasil que já havia errad­i­cado essa des­graça que tanto mal cau­sou a tan­tas pes­soas, não pode admi­tir que ela retorne para fazer novas víti­mas. Fazer pouco caso, ser­mos lenientes é come­ter um grave crime con­tra o futuro deste país.

Podem apos­tar: eu sei do estou falando.

Abdon Mar­inho é advo­gado.

A DESIGUAL­DADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.

Escrito por Abdon Mar­inho

A DESIGUAL­DADE DO PAÍS COMEÇA NA JUSTIÇA.

Por Abdon Marinho.

UMA piad­inha fez sucesso, por estes dias, nas redes soci­ais. O chiste dizia: Depois o STF matar o Brasil fugirá com o advo­gado? Não achei lá muita graça, até porque, quando o STF “matar” o Brasil, se fugir, será com quem encomen­dou o “assas­si­nato”, será com o “patrão” e os advo­ga­dos esta­mos bem longe de osten­tar tais condições, somos, tam­bém, víti­mas.

O chiste, entre­tanto, serviu para uma breve reflexão.

A primeira mis­são do STF é guardar a Con­sti­tu­ição da República. É o que se depreende da leitura dos artigo 102: “Com­pete ao Supremo Tri­bunal Fed­eral, pre­cipua­mente, a guarda da Constituição…”.

Pois bem, a Con­sti­tu­ição “guardada” pelo nosso STF, esta­b­elece logo no artigo 5º. um princí­pio que é basi­lar e de fácil com­preen­são, acred­ito, até que dis­pen­sável con­star na Carta, o princí­pio da igual­dade.

Con­sta lá: “Art. 5º Todos são iguais per­ante a lei, sem dis­tinção de qual­quer natureza, garantindo-​se aos brasileiros e aos estrangeiros res­i­dentes no País a invi­o­la­bil­i­dade do dire­ito à vida, à liber­dade, à igual­dade, à segu­rança e à propriedade…”.

Desnecessário infir­mar que sendo a igual­dade entre todos um princí­pio básico e con­stando tal princí­pio na Con­sti­tu­ição Fed­eral “guardada” pelo Supremo Tri­bunal Fed­eral, o der­radeiro lugar onde iríamos imag­i­nar que tal princí­pio não seria obser­vado seria no … STF. Certo?

Mas é isso que assis­ti­mos no nosso dia a dia? Os sen­hores min­istros guardiões da Con­sti­tu­ição, naquela que é a última cidadela da democ­ra­cia, têm tratado os cidadãos, aque­les que pagam impos­tos de forma igualitária?

Não pre­cisamos ir muito longe para saber que não.

Outro dia tomei con­hec­i­mento de uma entre­vista de um dos seus min­istros, Marco Aurélio Mello, a uma tele­visão por­tuguesa, onde o mesmo, do alto de sua sapiên­cia jurídica cun­hou: “a prisão de Lula viola a Con­sti­tu­ição».

O curioso na fala de sua excelên­cia é a par­tic­u­lar­iza­ção da questão, a sua indi­vid­u­al­iza­ção, “a prisão de Lula”. Ainda mais quando a colo­cação vem de um min­istro que, dia sim e no outro tam­bém, jacta-​se ao dizer que para ele processo não tem capa.

É diante de assertiva tão con­tun­dente que cabe ques­tionar: quan­tos são os mil­hares de brasileiros que na mesma condição do ex-​presidente estão cumprindo pena após con­de­nação em segunda instân­cia depois que o STF decidir, por seu órgão máx­imo, que não fere a Con­sti­tu­ição? Vou além, quan­tos mil­hares de brasileiros estão pre­sos pro­vi­so­ri­a­mente sem ter tido qual­quer con­de­nação judi­cial? Sabe­mos que uma grande parcela.

Sabe­mos, tam­bém, que muitos estão estão encar­cer­a­dos sem qual­quer for­mação de culpa. E, ainda que muitos, os mais humildes, desas­sis­ti­dos, não têm condições, sequer, de con­sti­tuir um advo­gado, ficando seus proces­sos na dependên­cia das defen­so­rias públi­cas.

Quan­tos destes con­seguem que seus proces­sos ultra­passem as instân­cias ordinárias?

O ilus­tre min­istro assev­era: “Imagina-​se no campo da liber­dade a exe­cução pro­visória? Ninguém devolve ao cidadão a liber­dade per­dida”.

Ao meu sen­tir nada é mais impor­tante que a liber­dade, que, para mim, tem pre­cedên­cia até sobre a própria vida. Entre­tanto, enquanto o sen­hor Lula cumpre a pena a que con­de­nado por duas instân­cias, numa sala pri­v­a­tiva da Polí­cia Fed­eral, podendo rece­ber ami­gos, ali­a­dos políti­cos, com acesso a meios de comu­ni­cação, podendo, pas­mem, ser comen­tarista da Copa do mundo e agir como se fosse can­didato à presidên­cia da República, muitos out­ros, em condições mais favoráveis, com deli­tos mais leves e, até mesmo, sem terem sido jul­gadas, amargam nas mas­mor­ras medievais do sis­tema pri­sional brasileiro.

Se o min­istro acha escan­daloso o cumpri­mento da pena após segunda instân­cia o que tem a dizer de tan­tos out­ros brasileiros que estão pre­sos, muitos até, sem qual­quer con­de­nação? E enfrentando as condições mais abje­tas.

Se vale para um, tem que valer para todos.

Se querem soltar o sen­hor Lula e tan­tos out­ros con­de­na­dos, crim­i­nosos do “colar­inho branco” que afa­naram os cofres da nação têm que man­dar soltar todos os que se encon­tram em idên­tica situ­ação, sem olhar para capa do processo.

É bem provável que o traf­i­cante, o assas­sino, o estuprador, o pedó­filo, etc., até que o STF apre­cie seu último recurso, seja inocente. Não é mesmo?

Se todos são iguais per­ante a lei, segundo a Con­sti­tu­ição “guardada” por suas excelên­cias, nada mais justo que garan­tir a todos o mesmo trata­mento.

Vejam, a decisão sobre o cumpri­mento ante­ci­pado da pena, foi ado­tada pelo guardiões da Con­sti­tu­ição – é ver­dade que por maio­ria aper­tada –, desde 2016. De lá para cá, mil­hares de brasileiros foram pre­sos para ini­ciar o cumpri­mento da pena. Por que, só agora, quando tal medida pas­sou a alcançar o “andar de cima” virou um escân­dalo?

Um dos min­istros, árduo defen­sor da con­sti­tu­cional­i­dade da medida, Gilmar Mendes, disse por ocasião daquele jul­ga­mento, que a par­tir daquela decisão o Brasil pas­sava a inte­grar o mundo civ­i­lizado. Agora diz que volta­mos a Idade da Pedra.

O que acon­te­ceu neste curto espaço de tempo para a posição do min­istro dar uma quinada de 180º? Talvez esteja errado, mas só con­sigo enx­er­gar de novo a mudança dos des­ti­natários da medida.

Nestes últi­mos dias, a Segunda Turma do STF, num esforço con­cen­trado pelo “garan­tismo” deter­mi­nou a soltura de diver­sos con­de­na­dos em segunda instân­cia, além de out­ras medi­das ten­dentes a aumen­tar a certeza da impunidade no país. Man­dou soltar, absolveu, tran­cou inquéri­tos, arquivou denún­cias. Tudo den­tro da mais per­feita ordem e fun­da­men­tada na Con­sti­tu­ição que guardam.

O caso mais emblemático, acred­ito, tenha sido o do ex-​ministro José Dirceu con­de­nado a mais de trinta anos em primeira e segunda instân­cias.

Suas excelên­cias, cap­i­tanea­dos pelo min­istro Dias Tof­foli – a quem o bom senso recomen­daria a sus­peição, tendo em vista que foi sub­or­di­nado do con­de­nado, além de ter sido advo­gado do seu par­tido por muitos anos –, deter­mi­naram a sua soltura “de ofí­cio” tendo em vista que um dos min­istros pedira vista dos autos prin­ci­pais.

Diante disso, o min­istro, que daqui a pouco será pres­i­dente do STF, “impetrou” em favor do con­de­nado que out­rora fora seu supe­rior hierárquico, uma ordem de soltura, sem maiores delon­gas, sem esperar o processo voltar do pedido de vis­tas, sob o argu­mento da abu­sivi­dade da prisão.

Como se fosse pos­sível haver rever­são de uma pena de trinta anos, con­fir­mada por duas instân­cias. No dia que isso ocor­rer, talvez seja hora de “fechar” o Judi­ciário, pois algo de muito grave estará acon­te­cendo.

Não sat­is­feito o min­istro rela­tor, futuro pres­i­dente, revo­gou uma deter­mi­nação do juiz de piso, tam­bém “de ofí­cio”, que deter­mi­nava ao con­de­nado a colo­cação de tornozeleira eletrônica, em face do risco de fuga. Sua excelên­cia proibiu tal medida consignando que a ini­cia­tiva tratar-​se-​ia de uma afronta à decisão do STF que con­ced­era ao con­de­nado em duas instân­cias, ex-​superior do min­istro, a liber­dade plena.

Diante de tudo isso, poder-​se-​ia dizer que sua excelên­cia e demais min­istros, ape­nas estavam – e estão –, pre­ocu­pa­dos com o cumpri­mento da Con­sti­tu­ição e a garan­tia da mais lídima Justiça, que a mesma devoção e cuidado se aplica a todos os demais cidadãos brasileiros.

Poder-​se-​ia ide­alizar isso. Mas, eis que chega ao nosso con­hec­i­mento que o min­istro tão pre­ocu­pado com as garan­tias e o império da Justiça não demon­strou a mesma com­paixão com um cidadão que teve negado segui­mento a um “habeas cor­pus” por que roubara – e fora con­de­nado por isso –, uma bermuda no valor de R$ 10,00 (dez reais), isso, ape­sar do Min­istério Público, tit­u­lar da Ação Penal, ter opinado pela con­cessão da ordem.

Quando soube de tal fato, prin­ci­pal­mente pela prox­im­i­dade dos acon­tec­i­men­tos que cul­mi­naram com a soltura de tan­tos cor­rup­tos que sub­traíram mil­hões dos con­tribuintes, recusei-​me a acred­i­tar, mas encon­trei o HC 143.921 de Minas Gerais, com a história.

Ora, primeiro que é um absurdo que tal demanda per­corra todas as instân­cias da Justiça sem ninguém encon­trar uma moti­vação para soltar o cidadão. Segundo, que, mesmo com alguma for­mal­i­dade impedindo o con­hec­i­mento e/​ou segui­mento do habeas cor­pus, o min­istro, como fez com o sen­hor José Dirceu, pode­ria “de ofí­cio” conceder-​lhe a liber­dade.

No caso morador de rua, ladrão de uma bermuda, sua excelên­cia enten­deu aplicar a jurisprudên­cia da Corte que apli­cação do princí­pio da insignificân­cia nos casos de rein­cidên­cia. No caso de Dirceu enten­deu inde­v­ida o entendi­mento do mesmo STF que diz ser lícita o cumpri­mento da pena a par­tir da con­de­nação em segunda instân­cia.

Quer dizer que é líc­ito man­dar soltar o sen­hor Dirceu con­de­nado em duas instân­cias por ter rou­bado mil­hões dos cidadãos, mais incor­reto soltar o cidadão que roubou uma bermuda de dez reais e que depois devolvera?

Este é o mod­elo de Justiça que legare­mos a pos­teri­dade?

Bem certo estava aquele salteador que uma vez afron­tou Alexan­dre Magno, con­forme nos narra Vieira: – basta sen­hor! Que eu, porque roubo em uma barca sou ladrão e vós que roubais em armada sois imperador?

Assis­ti­mos a isso na Justiça brasileira: os que muito roubam e têm o azar de serem con­de­na­dos (o que já é raro) têm todas as hon­ras e pre­ocu­pações dos inte­grantes das mais ele­vadas Cortes, já os que roubam tostões, amargam nos porões infecto dos cárceres.

Abdon Mar­inho é advo­gado.