AS EXCELÊNCIAS BUSCAM UMA LICENÇA PARA DELINQUIREM?
Por Abdon Marinho*
AO ESTIMADO leitor que tanto abuso com longas elocubrações, peço desculpas e, também, um favor: pesquise por quaisquer meios – ou que apenas reflita –, se em algum lugar do mundo existe uma elite política recebendo do sacrificado contribuinte tantas benesses e privilégios quanto a brasileira.
Se fosse dado a apostas, apostaria, sem medo de perder, que não encontramos no mundo uma elite – ou seria casta –, tão privilegiada.
Talvez até encontre alguma coisa semelhante em alguma ditadura perdida nos confins da África ou em alguma republiqueta de bananas do Caribe.
Nas democracias civilizadas termos políticos recebendo salário polpudos, moradia, gorda verba para contratar assessores e custear despesas, até mesmo pessoais, soa como escândalo.
Ouvi um comentário de um jornalista que trabalha na capital há muitos anos que a primeira alergia (acho que usou esta palavra ou ojeriza) que acomete o cidadão investido em um mandato quando chega a Brasília é a maçaneta.
Pode ser trivial mas diz muito sobre a classe dirigente do país.
Ao se tornar parlamentar ou alto executivo, às custas do desgramado do contribuinte, o cidadão não consegue abrir a porta do escritório ou gabinete; apertar o botão do elevador; carregar a própria pasta ou mesmo abrir a porta do carro no qual se desloca com o nosso combustível – faço um cálculo dirigi-lo –, tem sempre alguém ali no ponto para prestar-lhe esse obséquio, essa adulação.
O xerimbabo que faz isso não o faz “de graça”, é, também, alguém “bancado” pelo contribuinte.
Não bastasse todas as mordomias para o desempenho do mandato – agora falo especificamente de deputados federais e senadores –, lá atrás decidiram que parte do orçamento da União seria gasta por suas excelências, através de emendas parlamentares, individuais ou de bancada.
Claro que a partir de então – e apenas por coincidência –, começamos a ter notícias de parlamentares que “do nada” ficaram ricos; aumentaram as posses sensivelmente.
O cidadão chegava a Brasília puxando uma cachorrinha (outros nem cachorrinha tinham) e de lá voltavam como verdadeiros magnatas.
Pessoas que conhecemos sem possuir recursos para comprar uma antena de televisão, dessas no estilo “espinha de peixe”, no curso dos mandatos se tornaram donas de emissoras de televisão, conglomerados de comunicação; fazendas, aviões, mansões, etc.
É bem verdade que alguns até alegaram que a fortuna amealhada foi fruto de sucessivas vitórias nas loterias oficiais.
Já outros, sem terem ganho nas loterias, herdado fortuna ou “bamburrado” nos garimpos, ou terem alguma atividade econômica paralela, atribuem o próprio sucesso financeiro à economia que fizeram ao longo dos anos.
Outros sabem que qualquer tentativa de explicar não cola e silenciam como se a patuleia fosse completamente ignorante.
Mas só as emendas ou nacos de poder na estrutura executiva não parecia suficiente aos bons propósitos de suas excelências.
Muitas vezes o Poder Executivo, devido ao dinheiro pouco ou mesmo por “vendeta” pessoal não “soltava” a verba, privando as excelências de atenderem às suas bases.
Tomados pela preocupação em atender as bases e o povo mais sofrido, as excelências encontram uma solução insuspeita: a chamada emenda impositiva.
A partir de então, chovesse ou fizesse sol a verba das excelências através de suas emendas impositivas estavam asseguradas e garantidas para obras ou investimentos de seus interesses. Claro que tudo dentro da completa lisura e escrutínio dos órgãos de controle, jamais passando pela cabeça das excelências quaisquer outros motivos que não o do interesse público.
Dizem – mas nunca se apresentou quaisquer provas e eu, particularmente, não acredito –, que muitas excelências, com a certeza dos recursos assegurados no orçamento, passavam ou passam suas emendas a outros colegas, recebendo destes colegas o valor da emenda com um certo deságio.
Como disse, não acredito em tais insinuações e, certamente, se alguma emenda de parlamentar do sul do país veio parar no Maranhão ou vice versa ou se alguma emenda foi destinada a municípios onde o parlamentar nunca foi votado ou teve atuação política, deve ter sido por conta, unicamente, do interesse público.
Apesar das emendas impositivas garantindo aos parlamentares a execução de nacos do orçamento, até bem pouco tempo, os municípios para onde tais verbas estavam sendo destinadas precisavam apresentar e cumprir determinadas formalidades, tais como apresentar projetos básicos, etc.
Preocupados em fazer os recursos públicos chegarem nas “bases” as excelências aprovaram não faz muito tempo uma alteração na legislação dispensando de tais formalidades. Ou seja, a verba pública poderia ser repassada aos municípios para execução das obras ou programa sem apresentação das formalidades prévias.
A iniciativa de tal alteração legislativa foi da então senadora Gleisi Hoffmann, presidente do Partido dos Trabalhadores — PT e contou com o apoio da maioria dos parlamentares nas duas casas do Congresso Nacional.
Uma outra medida que também caminhou no mesmo sentido: garantir celeridade nos repasses de tais verbas aos destinatários, e que consta deste mesmo pacote de bondades foi que tais verbas passaram, a partir do repasse, a integrar o patrimônio dos municípios, ficando a fiscalização e controle de tais recursos ao encargos dos TCE’s e não mais do Tribunal de Contas da União — TCU ou da Controladoria Geral da União — CGU.
Na mesma esteira de bondade das excelências aos municípios estabelece-se a possibilidade de repasses de emendas parlamentares como recursos fundo a fundo.
O Brasil, praticamente, fez ressurgir aquele instrumento que muito ouvimos falar mas que nunca testemunhamos do chamado “recurso a fundo perdido”.
Apesar de todas as mordomias, benesses e até a possibilidade de disporem das verbas do orçamento da União, chega-nos rotineiramente notícias de que a cada votação importante nas casas do Parlamento, o Poder Executivo tem que abrir as torneiras do orçamento público para destinar emendas as bases dos parlamentares.
Agora mesmo, por ocasião da eleição para as mesas da Câmara dos Deputados e do Senado da República, foi noticiado – e jamais negado pelos envolvidos –, que a União foi sangrada em três bilhões de reais em emendas para as excelências.
Isso em plena pandemia, quando nos falta vacinas, insumos, UTI’s e quando milhares de brasileiros já perderam a vida.
O governo federal, com a desculpa da “governabilidade” achou ser devido ao invés de negociar compra de vacinas ou mesmo de produzi-las, despender essa fortuna em emendas para atender as bases das excelências que aceitaram sufragar seus votos nos candidatos do Planalto.
Claro que não devemos generalizar, assim como existem muitas pessoas puras nas zonas de meretrício, na mesma proporção deve haver de gente honesta e de bons propósitos participando deste tipo de articulação.
Assim como não deve ser considerado como corrupto os governos que coonestam com tais “ajustes”.
Depois de tudo isso que vos narro, chegou-me a notícia de que o Congresso Nacional “trabalha” com incomum celeridade numa Proposta de Emenda Constitucional que, na prática, deixa as excelências fora do alcance da lei na eventualidade de virem a praticar algum delito.
Vou esmiuçar ponto por ponto da PEC em textos posteriores, mas em linhas gerais, mesmo que uma excelência mate alguém em praça pública ele estaria fora do alcance da lei. Pois só poderá ser preso em flagrante por decisão do STF. Caso essa decisão viesse a ser tomada, mesmo assim, a excelência ficaria sob a guarda da sua casa parlamentar em dependência própria ou mesmo na sua casa em prisão domiciliar.
Essa é só uma degustação grosseira do que querem “inventar” suas excelências em nome do que chamam “imunidade parlamentar”.
Acho que foi CESARE BONESANA, o marquês de Beccaria (Milão no ano de 1738 — 1794), que disse, talvez com outras palavras mas com este sentido que “o crime persegue o homem como a sua própria sombra”.
Quando tomei conhecimento do conteúdo da PEC “tramada” pelas excelências, não acreditei. Pensei: por que suas excelências precisam de proteção constitucional para colocá-los a salvo de algum delito? Pretendem eles cometer algum crime ou querem ficar fora do alcance da lei por crimes que já cometeram? Por qual motivo precisam as excelências de um “salvo-conduto” para exercerem o mandato?
Quando menino, não em Barbacena, mas em Gonçalves Dias/Governador Archer, imaginava que os representantes do povo brasileiro eram pessoas que por suas qualidades eram escolhidas para representá-los.
Estamos vendo que a realidade não é bem essa. Os “representantes do povo” não representam o povo pois querem se colocar acima dele.
A imunidade parlamentar, como instrumento de proteção ao exercício do mandato – e que já deveria ter sido colocada em desuso –, não pode servir para acobertar delitos cometidos por quem quer que seja, muito menos por parlamentares que deveriam ser o maior exemplo de retidão e caráter.
Noutro giro, em princípio, vislumbro que a PEC viola a cláusula pétrea da Constituição da República, inserta no artigo 5°, que estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.
Ora, a persistir a ideia PEC poderíamos reescrever o artigo acima para dizer que todos são iguais, mas que os parlamentares são “mais iguais que os demais cidadãos”. O que me parece inviável.
Como disse, trataremos de todos os pontos da PEC em um texto específico, porém é oportuno que a sociedade fique atenta a esse tipo de abuso.
Na defesa dos próprios interesses, as excelências não descansam, queriam aprovar a tal emenda de “afogadilho” e continuarão tentando – e acabarão por consegui-lo.
O que querem é uma “licença” para cometeram delitos e ficarem a salvo do escrutínio da lei.
E, finalmente, como certa vez disse um parlamentar: “Está no parlamento do Brasil é melhor do ir para céu pois para ir para o céu você precisa morrer antes”.
Enquanto tratam do “seu” céu tornam nossa vida um inferno.
Fiquemos atentos.
Abdon Marinho é advogado.