A perversão da democracia.
Por Abdon Marinho.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, no seu artigo 37, estabelece: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”.
Por sua vez, o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, complementa: “§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
Assim, nos últimos trinta anos, tendo os princípios e as regras quanto à publicidade como bússola, as gestões públicas têm, sob o olhar vigilante do Ministério Público e do Poder Judiciário, procurado seguir a Constituição.
O longo processo de adaptação às normas não tem sido fácil e, aqui e ali, encontramos publicidade estatal, ainda que indiretamente, servido para a promoção pessoal dos governantes ou para potencializar o pouco que fazem – muitas vezes, o custo da propaganda é bem maior que aquilo que feito para a comunidade.
Os órgãos de controle, sobretudo o Ministério Público, tem “deixado passar” ou fingem que não viram quando os desacertos têm como protagonistas o governo estadual ou uma grande prefeitura.
Situação bem distinta quando se trata de pequenos municípios, quando até a divulgação da comemoração do aniversário da cidade enseja ações de improbidade, se da peça, ao juízo do MPE, se vislumbra qualquer conotação de promoção pessoal – ainda que não tenha sido, ainda que o gestor tenha sido surpreendido com a publicidade ou dela, sequer tenha tomado conhecimento antes da veiculação.
Conheci – e conheço –, diversos casos em que o MPE movimentou (e movimenta) a máquina do Poder Judiciário pleiteando condenações de prefeitos e ex-prefeitos porque alguém de sua assessoria teria publicado em algum jornal local notícia ou mesmo publicidade paga dando conta do aniversário da cidade.
Por anos a fio correm processos de tal natureza com custos para o Estado, sobrecarregando o Judiciário com processos sem quaisquer sentido.
Conheço um ex-gestor que há mais de dez anos responde a uma ação dessa natureza porque, no dia do aniversário da cidade, tiraram uma foto dele cortando o bolo, publicaram no jornal e, por descuido, a tesouraria pagou a divulgação do evento.
O valor gasto com tal publicidade – que, estava longe de caracterizar promoção pessoal –, não foi 2 mil reais. O MPE entendeu que era promoção pessoal e o cidadão ainda hoje responde pela conduta, gastando com advogados, o Poder Judiciário gastando tempo e pessoal com um processo que poderia ter sido resolvido com um acordo ou, sequer, existido.
Como resultado disso esse ex-gestor disse-me certa vez que quando escuta alguém cantar “parabéns pra você”, sai correndo; de bolo, nunca mais quis saber.
Pois bem, faço essa breve digressão para, dentro do tema, em comparação ao tratamento dispensado aos gestores municipais, confrontar o “silêncio” dos órgãos de controle, sobretudo, do Ministério Público (federal e estadual) a uma perversão da democracia que vem ocorrendo no nosso país e no nosso estado.
Já tratei aqui – em textos anteriores –, dos riscos que corre a democracia brasileira ao tornar desigual as disputas eleitorais.
Como sabemos, além dos recursos públicos repassados aos partidos: fundo partidário e fundo de campanha — quase todo utilizado nas campanhas eleitorais dos que já são detentores de mandatos, que na verdade são os “donos” dos partidos, os parlamentares brasileiros dispõem, ainda, de uma outra vantagem em relação aos demais cidadãos: são executores do orçamento do país.
Não bastasse isso, o fato de disporem de milhões em recursos financeiros para distribuírem nas suas “bases eleitorais”, as excelências, diante do silêncio obsequioso dos órgãos de controle, Ministério Público à frente, têm abusado das vantagens e violado sistematicamente a Constituição Federal.
O amigo leitor – eleitor –, já deve ter visto em outdoor, busdoor e por diversas mídias senadores, deputados federais e estaduais fazerem promoção pessoal alardeando que “mandaram” tantos mil ou milhões para isso ou aquilo, para este ou aquele município.
Outro dia, para o meu espanto, vi foi na televisão, em horário nobre, um senador aparecendo em um comercial de quase um minuto, na principal rede de televisão do estado, mostrando que um emenda sua estava sendo utilizada para a reforma de um prédio público.
Como assisto pouco televisão e quando assisto é mais para ver um filme ou noticiário, não posso precisar se o referido comercial foi exibido noutros canais de televisão ou noutros horários.
Outra coisa que também não sei é se o custo destas propagandas em jornais, rádios, televisões, outdoor, busdoor, internet, estão sendo custeadas com verbas públicas, muito embora saibamos que de uma forma ou de outra, no final, quem paga a conta sou eu, é você, somos nós.
Em todo caso, muito embora seja provável que o custo de tais promoções estejam saindo dos cofres públicos, diretamente, o principal é o uso do recurso público, para a promoção pessoal do parlamentar.
O deputado ou senador não tirou o dinheiro do bolso dele para realização de uma obra, compra de um equipamento, fazer uma estrada, uma quadra, escola ou mesmo comprar cestas básicas para distribuir, estes recursos de emendas parlamentares, são recursos públicos.
Não podem as excelências usarem tais recursos para se promoverem politicamente, gracejar a simpatia dos eleitores.
Veja que absurdo, os governos estaduais e municipais, devem fazer sua publicidade em obediência ao artigo 37 e §1°, da Constituição Federal, ou seja, sem dela constar símbolos, imagens ou qualquer outra coisa que possa caracterizar promoção pessoal, mas os parlamentares podem aparecer em em todas as mídias, inclusive, na televisão “estrelando” comercial divulgando que mandou tal emenda para isso ou aquilo e até mostrar o canteiro de obras, ficar por meses com a cara estampada nos outdoor, busdoor, blogues, mídias sociais, dizendo que fizeram isso ou aquilo com a sua cota de emendas.
Muito embora só agora tenha atentado para uso de televisão e rádio – que são concessões públicas –, para esse tipo de absurdo.
Bem verdade que usavam, acredito que as suas expensas, para desejarem feliz natal ou ano novo.
Todas as outras modalidades de promoção pessoal, ferindo a Constituição, vêm de longe.
Até aqui, não tive notícias de ações de improbidade administrativa propostas pelo sempre vigilante Ministério Público.
Se existem, desde já me penitencio, mas tal notícia não é de conhecimento da patuleia.
Já as ações contra os “prefeitinhos” que, por descuido, deixaram que jornal divulgassem uma fotografia sua cortando o bolo de aniversário da cidade, existem no quilo; ações porque não publicaram uma licitação ou contrato como o MPE entende que deva ser feito, é só o que tem.
O que vem ocorrendo no Brasil – não é apenas no Maranhão –, é uma grave violação aos princípios democráticos, ouso dizer, que um “atentado” à própria democracia.
Perverteram à democracia brasileira a tal ponto que não podemos mais falar em igualdade no processo eleitoral.
Como um cidadão comum vai pleitear um mandato popular contra um detentor de mandato que na maioria das vezes é o “dono” de um partido? Que recebe milhões de recursos públicos para custear suas campanhas? Que dispõe de outros tantos milhões em emendas parlamentares obrigatórias? Que dispõe de recursos públicos para promoção pessoal e que, diante do silêncio dos órgãos de controle, se promovem através das mais variadas mídias, divulgando a aplicação dos recursos?
E, nem falemos do “caixa” pessoal que o atual formato da política brasileira tem possibilitado.
Como um cidadão comum, sem vinculação a qualquer esquema político, pode disputar com os atuais detentores de mandatos?
Como fica a tal igualdade entre os brasileiros ou direito que tem qualquer cidadão de pleitear um mandato popular?
O cidadão comum não tem condições de disputar. O cidadão comum está alijado do direito de tomar parte nos negócios do Estado que garante a Constituição Federal.
A democracia brasileira agoniza à vista de todos.
A democracia brasileira é quase um cadáver insepulto.
Abdon Marinho é advogado.