NÃO SE FAZ CABO DE GUERRA COM A DEMOCRACIA.
Por Abdon Marinho.
QUANDO menino, lá no meu povoado e/ou já na sede do município, era comum brincarmos de “cabo de guerra”. A brincadeira consistia em dividir a turma em dois grupos, colocá-los em campos opostos segurando um lado de uma corda; no meio de terreno (geralmente um com muita areia) era feito um risco.
Cada um dos puxava seu lado da corda na intenção de obrigar o grupo rival a cruzar o risco demarcatório. O grupo que conseguisse fazer isso vencia a brincadeira.
Era comum no puxa-puxa um grupo, mais forte, não apenas obrigar o outro a cruzar o risco como, também, levá-lo ao chão. Quando isso ocorria dava-se uma algazarra com gritos dos “vencedores” e da plateia – quem chegava todo sujo em casa já estava certo de levar uma “pisa” dos pais.
Eu mesmo, embora zambeta, mas com muito mais agilidade que hoje, participei de muitos “cabos de guerra”, puxando a corda com toda a dedicação e determinação.
Pois bem, se enquanto brincadeira infantil o “cabo de guerra” tinha todo o “charme” e era algo lúdico nos seus vários aspectos, o mesmo não se pode dizer quando tenta aplicar a mesma “brincadeira” à democracia brasileira.
A cada dia assistimos, estarrecidos, os dirigentes da nação, os poderes constituídos da República, tratarem os negócios e interesses públicos como uma brincadeira infantil de “cabo de guerra” onde o objetivo de um grupo é levar o outro ao chão, de preferência, até mesmo aniquilando-o fisicamente.
Mas não se pode “brincar” de cabo de guerra com a democracia, pois caso assim façam não teremos um grupo vencedor, ao contrário, todos perdem, a nação perdem. Aliás, dificilmente poderemos falar em nação quando estivermos diante da aniquilação dos poderes constituídos ou mesmo de algum deles.
Vejo muita “gente boa” segurando e puxando um dos lados da corda sem se darem conta de que não estamos diante de uma competição esportiva ou de uma brincadeira infantil, mas, sim, de atitudes e posições que determinarão o futuro da nação – se tivermos uma nação depois.
O último “round” deste “cabo de guerra” diz respeito à condenação pelo Supremo Tribunal Federal - STF, de determinado deputado federal e a concessão de “indulto” ao mesmo pelo presidente da República, no dia seguinte ao julgamento pela Suprema Corte.
Condenado no dia 20 de abril, no dia seguinte, antes mesmo da lavratura do acórdão condenatório, o presidente anunciou que estaria concedendo o indulto ao deputado de forma voluntária – quer dizer, a defesa do condenado não chegou a requerer.
Diversos amigos, no mesmo dia e no dia seguinte, me perguntaram o que achava de tudo que estava acontecendo.
A primeira coisa que me pareceu foi que o presidente da República buscou confrontar uma decisão da mais elevada corte do país, tendo ou não razão, como disse anteriormente, o que está em jogo é o futuro que queremos para o pais enquanto nação.
Um presidente da República não pode se dar ao “desfrute”, ficar “zangadinho” e atravessar um decreto afrontando uma decisão judicial para, podemos dizer, a sua satisfação pessoal, uma vez que não havia risco iminente de prisão do seu “aliado” político. O processo, sequer, teve acórdão publicado e, após a publicação do mesmo, teria lugar outros recursos no próprio STF, sem contar que a própria defesa do “condenado” não chegou a ingressar com tal pedido – e não poderia uma vez que o deputado não se encontrava na fase de cumprimento de pena.
Logo me parece claro que a motivação do presidente foi o interesse pessoal o desborda das suas prerrogativas constitucionais.
Uma segunda pergunta que me fizeram foi se o presidente poderia editar tal decreto.
O indulto é uma previsão constitucional inserta no artigo 84, XII, Constituição Federal:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;
Logo não se discute se o presidente pode editar o decreto de indulto. A discussão é se da forma que fez está correto.
O Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941, no seu artigo 734: “Art. 734. A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da Republica, a faculdade de concedê-la espontaneamente”.
Tal artigo está inserto no capítulo que trata da Graça, do Indulto e da Anistia.
Vemos acima à luz de tal dispositivo, que o presidente poderia concedê-la sem qualquer “provocação”, ou seja, ao seu talante.
Surge ai, entretanto, o primeiro senão.
Toda essa parte do CPP encontra-se disciplinada pela Lei de Execução Penal - LEP, Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984.
As pessoas que entendem do assunto muito mais do que eu sustentam que a lei nova tratar inteiramente de determinado assunto derrogaria a lei anterior. Segundo estes mesmos entendidos, a LEP, até por ser lei, ser mais nova, teria derrogado aquela parte do CPP que dispõe do mesmo assunto.
A LEP, por sua vez, trata do assunto, a partir do seu artigo 187, entretanto, sem a evocação da “Graça” e sem estabelecer a possibilidade do presidente da República conceder o indulto – que tem a previsão de ser individual –, de “ofício”, basta ver o que estabelece o artigo 188: “Art. 188. O indulto individual poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa”.
Os artigos seguintes do mesmo diploma, estabelece como se processa e qual o rito do indulto até desaguar no decreto presidencial.
Uma das primeiras lições de direito que aprendi foi que o agente público só pode fazer aquilo que esteja em estrita obediência à norma legal, diferente do agente privado, que pode fazer tudo aquilo que a lei na veda.
Em outras palavras, em uma democracia todos, e principalmente o presidente da República que prestou juramento de observar e fazer cumprir a Constituição e as leis, estamos submetidos ao seu império.
É dizer, o presidente pode sim editar um decreto indulto individual ou coletivo – e sempre melhor que seja coletivo e com princípios gerais, sem “olhar a cara do freguês” –, mas para isso precisa cumprir os requisitos e caminhos impostos pelas leis que a todos submetem.
Não é demais lembrar que no Brasil, desde a sua independência, mesmo no período imperial, nunca tivemos um governo absolutista, impondo suas vontades acima das leis e da ritualística processual.
Um dos artigos mais importantes da nossa Constituição, ao meu sentir, é o artigo 5º, lá está dito: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ..”.
Veja o que nos assegura a Carta Magna: “que todos somos iguais perante a lei …”, logo não me parece razoável que numa república moderna, como a nossa, alguém “seja mais ‘igual’ que os demais em função de sua proximidade com o governante, coleguismo, aliança política ou algo que os valha”.
Imaginemos, como diria o outro, se a “moda pega”. Fulano de tal e Beltrano de tal, lá de onde judas perdeu as botas, ambos cometeram os mesmos delitos, mas o primeiro, por ser “amigo” do presidente, é indultado e o segundo não.
Isso lhes parece razoável?
Temos exemplos mais concretos e palpáveis.
Algum dentre vós acharia razoável que a presidente de então, ao término do julgamento dos envolvidos no processo do chamado escândalo do mensalão, editasse um decreto, nos moldes deste que está em tela, indultando os condenados pelo mesmo STF que agora tem sua decisão afrontada?
Podemos pensar para frente. Alguém achará razoável que o senhor Lula, caso seja eleito, indulte o seu aliado e amigo Zé Dirceu, o capitão do time do seu governo, que acaba de ter sentenças condenatórias confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ?
Diante de tudo que disse e até com base na lei universal da razoabilidade, acredito que o presidente da República cometeu mais um crime de responsabilidade, previsto na Lei nº. 1.079, de 10 de abril de 1950, a saber: “5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças”.
Acredito que para qualquer pessoa, até porque isso é algo que vem sendo publicamente estimulado, resta claro que o presidente está a “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário”.
O meu apelo e chamamento é para que as autoridades maiores da nação entendam que governar, administrar e fazer prosperar uma nação é incompatível com sentimentos e interesses pessoais e, sobretudo, com jogos infantis como o “cabo de guerra”.
Abdon Marinho é advogado.