ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA.
Por Abdon Marinho.
QUANDO mais jovem e, até, mesmo hoje, sempre que algo que não é positivo ou que representa uma contrariedade, costumo dizer: — só posso ter atirado pedra na cruz; ou, devo ter salgado a Santa Ceia.
Certamente nenhum dos meus antepassados ou mesmo eu, em outra encarnação, participou de tais eventos. Dizemos isso como forma de justificar as “marés de azar” que vez ou outra ameaçam nossos projetos ou sonhos.
Refletia sobre isso e ponderei que os brasileiros não apenas estivemos todos lá atirando pedras por ocasião da crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo como, também, erramos a mão no tempero da Santa Ceia e, se duvidar, é capaz termos sido nós a gritar por Barrabás diante de Pôncio Pilatos.
Apenas isso para justificar o atual quadro político nacional.
Imaginem que no mesmo dia que ouvi (ou li) um presidente da República minimizar ou tratar com menos importância o fato de um brasileiro, com problemas de saúde, ter morrido um camburão da Polícia Rodoviária Federal - PRF, transformada em câmara de gás, numa abordagem absolutamente desastrada, justificando que “esse tipo de coisa acontece até nas Forças Armadas”, li, também, que um ex-presidente da República que se ensaia candidato ao retorno do comando da nação, fez críticas ao governo americano pelo fato daquele governo – e a crítica deve se estender a outros líderes mundiais –, manter uma rede de ajuda militar e humanitária ao governo ucraniano e ao seu povo que resiste bravamente contra uma invasão injustificada, despropositada e cruel que, em mais de cem dias, já deixou milhares de mortos, cidades inteiras destruídas e milhões de refugiados.
Pois é, no mesmo dia, no intervalo de minutos, fiquei sabendo destes posicionamentos de um presidente e de um ex-presidente que disputam com chances reais de um dos dois comandarem o país a partir do ano vem.
O presidente não tem a compreensão de um fato de tal gravidade, memo que os autores não tenham tido a intenção de causar o evento morte – e até acredito que não tiveram –, não é algo a ser minimizado, pelo contrário, é algo para ser recriminado e colocado como exemplo daquilo que não deve mais acontecer.
No mínimo, é devido à família da vítima um pedido de desculpas, pois o cidadão/vítima é filho de alguém, esposo de alguém, irmão de alguém, pai de alguém, etc., não pode se minimizar uma situação como aquela com o argumento tosco de que tal fato ocorre noutras circunstâncias “até nas Forças Armadas”.
Ora, se ocorrem, não deveriam ocorrer. Uma família não coloca um ente querido para servir a pátria para que o mesmo morrer em “acidentes” que poderiam ser evitados se as autoridades responsáveis agissem com zelo e competência.
Quer dizer que para “limpar” a imagem do país perante o mundo diante da aterradora imagem de uma viatura da PRF transformada em “câmara de gás” o melhor que o chefe da nação elabora é uma desculpa de que “a vítima não foi a primeira e não será a última” e que isso acontece noutros lugares, até nas Forças Armadas?
Devemos ter salgado a Santa Ceia.
Já a incursão do ex-presidente pela política internacional não poderia ser mais infeliz. Quer dizer, poderia, a desgraça no Brasil, sempre pode ir além do imaginável.
Desde sempre alinhado com o atual presidente, que às vésperas da invasão russa foi a Moscou hipotecar solidariedade ao “povo russo” e não aos ucranianos, o ex-presidente todo esse tempo nunca se ocupou de apontar sua “artilharia verbal” para o verdadeiro culpado pela tragédia humanitária que ocorre no leste da Europa.
Sempre que falou conseguiu provar que em matéria de asneiras não fica devendo nada (ou muito pouco) ao atual ocupante da presidência.
Lembram que chegou a agradecer a Deus o surgimento do vírus da COVID que já ceifou quase 700 mil vidas no Brasil?
Em relação a invasão russa, já minimizou a tragédia humanitária; já disse que resolveria a guerra em duas ou três rodadas de cervejas; já fez “gracinhas” para o carniceiro de Moscou; e, principalmente, sempre que pode, colocou a culpa na vítima, como fez na última intervenção.
Para o ex-presidente, os ucranianos deveriam ter se rendido diante das primeiras ameaças e entregado a nação à potência invasora; poderiam hoje, “em paz” estarem sendo administrados pela mãe-Rússia e de quebra, poderiam, até, terem entregue o atual governo, as autoridades estrangeiras para que fosse julgado pelo crime de ter resistido.
Este é o o pensamento do ex-presidente e do seu entorno.
Há uma total falta de empatia pelas vítimas diretas ou indiretas de uma guerra que só tem um único culpado: o governo russo.
Do ponto de vista da humanidade é injustificável que em um conflito onde a vítima esteja sendo atacada fiquemos do lado do agressor.
A crítica feita pelo ex-presidente ao governo americano (e aos demais governos) é um posicionamento a favor do agressor e contra a vítima.
E vai além, responsabiliza indiretamente a vítima pela fome que a guerra provoca ao redor do mundo. A escassez de alimentos, o aumento do preço das mercadorias não foram provocadas pela Ucrânia, que é a vítima (é bom que se afirme isso) mas por quem iniciou e mantém a guerra, inclusive retendo os navios nos portos que tomou de assalto.
Imagino que nas brigas de escola o ex e o atual presidente se portavam do lado dos “grandões” quando aqueles estavam batendo nos coleguinhas menores.
Para eles, o Brasil deveria ter ficado “neutro” o que, em outras palavras, significa ter se aliado ao governo russo contra a Ucrânia, quando muito, dividir a responsabilidade pela guerra entre invasor e invadido.
Não deixa de ser curioso que tanto o atual quanto o ex-presidente “nutram” tanta afinidade pelo dirigente russo a ponto de nunca tê-lo responsabilizado pela guerra e sempre que se manifestaram tenha sido para menosprezar, minimizar ou colocar a culpa na vítima.
Passados mais de cem dias de guerra não têm uma condenação firme à carnificina promovida pelo dirigente russo, sequer existe uma clara manifestação de apoio a resistência ucraniana ou de solidariedade ao povo que sofre.
Não que estes posicionamentos sejam surpresa para ninguém. Infelizmente, dos lábios de ambos já ouvimos coisas infinitamente piores, seja em relação a violência, a tortura, preconceitos, negacionismo, misoginia e diversas outras sandices que vão muito além do atual conflito.
São tantas colocações estapafúrdias de ambos que chego à conclusão de que o que separa o atual presidente do ex-presidente é menos que um “dedinho”, e digo isso desprovido de qualquer preconceito pelo fato de faltar o prolongamento em uma das mãos de um deles.
O “dedinho” que falo é mesmo no sentido diminutivo de medida.
No caso da invasão russa a Ucrânia nem um “dedinho” separa ambos. Parece que enxergaram no líder russo o “macho alfa” que buscavam.
Essa pouca diferenciação, tampouco, é uma novidade para aqueles que acompanham minhas ideias, desde sempre que chamo a atenção para a sinergia entre eles no propósito de deixarem os brasileiros sem qualquer outra opção de escolha.
Não representa novidade, ainda, a possibilidade da eleição ser decidida no primeiro turno.
Tal hipótese, não chega a ser de todo mal, pois nos livra de termos que escolher entre os dois candidatos quem vai dirigir o país – o que, confesso, para mim, seria algo muito penoso.
Os brasileiros que tiverem que fazer tal escolha, à luz do seu convencimento pessoal, deve fazê-lo tendo por norte, não o que seja bom ou melhor para o país, mas o que seja menos ruim ou pior.
A menos que um cataclismo aconteça, se tivermos um segundo turno nas eleições presidenciais de outubro, serão esses dois que estarão lá e temos vivência o bastante para saber que não representam nada bom para o país.
Agora mesmo, ficamos sabendo que o atual presidente dedica ao trabalho tempo igual –
ou um pouco superior que dedica um estagiário destes não muito aplicados –, se não me falha a memória, tal constatação é basicamente um “remake” de um certo governo do passado.
Como não ficarmos angustiados sabendo que pelos próximos quatro anos é isso que teremos?
Abdon Marinho é advogado.