NEM OITO NEM OITOCENTOS: REFLEXÃO SOBRE O FUTURO DO BRASIL.
Por Abdon C. Marinho.
QUANDO do julgamento de Nuremberg, depois da Segunda Guerra Mundial, consta que um dos juízes indagou a um dos generais que estavam sendo julgados sobre as atrocidades cometidas pelo regime Nazista ao que ele respondeu com o máximo de impassibilidade possível: — eu apenas seguia as leis do meu país.
Há muitos anos um professor contou-me tal episódio – que nunca chequei, mas que atribuo veracidade.
Certa vez, também há muitos anos, quando iniciava o ministério da advocacia, estava revoltado por haver perdido um julgamento que, tinha certeza, era “imperdível”, afinal, a razão estava com a minha tese que era clara como a luz do dia.
Esbravejava toda a justa revolta militante contra as “sacanagens” da Justiça, quando um colega, que já tinha mais anos de advocacia do que eu de vida, admoestou-me: — Abdon, a primeira característica do bom advogado é acreditar na Justiça. Se uma decisão não lhe é favorável, estude, faça o melhor recurso que puderes. Não desista da fé na Justiça pois quando perderes a fé não servirás como advogado.
O episódio narrado acima seguramente já tem mais de vinte anos. Ao longo destes anos tenho mantido minha fé na Justiça e, sobretudo, aprendido (ou tentado aprender) como separar o joio do trigo.
Outro dia um amigo me fez uma crítica por não ter feito nenhum “textão” sobre o que ele entende como a “ditadura da toga” instaurada pelo Supremo Tribunal Federal - STF, no Brasil. Dizia que o STF viola constantemente a Constituição; que instalara um sistema de censura prévia; que promovera a abertura de inquéritos ilegais; que mandara prender ou confiscar bens ilegalmente; que tudo isso colocava a democracia do país em risco.
Aliás, segundo ele, já estaríamos vivendo sob a égide de golpe institucional decretado pelo STF à vista de todos.
Tenho visto muita “gente boa” comungando com tais pensamentos, inclusive muitos amigos, professores, pessoas por quem tenho enorme carinho e apreço. Eu mesmo já me manifestei algumas vezes contra determinadas decisões emanadas daquela Corte ou de algum dos seus ministros. O caso do inquérito das “fake news” foi um deles, conforme pode ser conferido no meu site ou nas redes sociais, entre diversos outros.
O que, na verdade, alguns se ressente, acredito ser, é de uma posição “militante” corroborando críticas justas com desejos autoritários de se banir as instituições do país com a falsa desculpa de que estão “protegendo” a liberdade de expressão ou a liberdade do povo, quando sabemos que isso não é verdade.
Estas foram as desculpas de Hitler, de Stálin, dos irmãos Castro, de Mao-Tse Tung, de Chávez e de tantos outros.
Todos estes chegaram ao poder na esteira de garantir a verdadeira liberdade para o povo, combater o opressão do poder estatal e garantir a prosperidade de suas nações. O legado de todos foi a opressão, o morticínio, a destruição do povo e de nações.
Todos os regimes totalitários implantados no mundo contaram com o apoio significativo de ideólogos – nem todos comprados –, que acreditavam estarem numa luta justa contra o mal. Mesmo os regimes nazistas e comunistas contavam com “pessoas do bem” que acreditavam e apostavam – muitos ainda apostam –, que buscam o melhor para povo e que estão numa luta do “bem contra o mal”.
O Brasil vive um momento peculiar de sua história e dividido entre dois extremos.
Cada um deles se valendo das armas que possui para permanecer ou conquistar o poder. Não o poder normal e saudável de qualquer democracia, mas o poder absoluto que destrói a própria democracia e a liberdade dos cidadãos.
Ambos os extremos usam como armas uma plêiade de intelectuais, artistas que, como inocentes úteis – ou não –, se deixam levar por (e para) pautas políticas que no último estágio terminam por suprimir aquilo pela qual dizem lutar neste momento.
Um jornalista que sempre acompanhei – desde que me entendo por gente e que a escrita fácil e precisa me inspira –, escreveu um artigo magistral onde colocou diversas críticas absolutamente verdadeiras e com as quais concordo, mas cometeu, ao meu sentir um erro que comprometeu toda a relevância do artigo: logo no início do texto, no primeiro parágrafo, colocou uma informação mentirosa.
Disse o missivista que “o resultado das eleições pode ser montado numa sala secreta do “TSE”, o braço eleitoral do STF”.
O artigo, como se diz atualmente, se tornou “viral”. Vi pessoas por quem tenho o maior apreço difundindo-o como a derradeira verdade nesta terra ninguém.
Um amigo provocou-me: — viu o artigo de fulano? Disse-lhe que sim, mas fiz minhas ponderações.
Ora, ainda que concordasse com tudo que lá contém – e concordo com quase tudo –, o texto contém o erro essencial referido acima.
A base da nossa democracia são as eleições livres e diretas com resultados que refletem a vontade da maioria dos cidadãos aptos a votar.
Diferente do afirmado o seu resultado NÃO pode ser montado numa sala secreta do TSE, tribunal que diferente do afirmado NÃO é o braço eleitoral do STF.
O processo eleitoral é transparente com partidos políticos e diversas instituições podendo acompanhar todas as suas etapas.
Quando um missivista do estofo daquele questiona, com uma informação falsa, a base da nossa democracia, ainda que concorde com todo o restante do que disse, passo a tê-lo na conta de quem se tornou ideólogo de uma causa.
No caso, a causa dos que querem “eliminar” o STF ou colocar no seu lugar um colegiado que o atual governante possa chamar de seu – como, aliás, já faz com os dois ministros que indicou.
Qual não foi minha surpresa e/ou decepção ao verificar que muitas pessoas que admiro e respeito – talvez cegos pelo alinhamento ideológico –, não consigam fazer a distinção do que realmente se encontra em jogo no atual momento.
O debate que se trava no momento não é sobre o tipo de regime autoritário que, sobretudo, os dois candidatos que se apresentam como melhores colocados nas pesquisas de intenção de votos pretendem implantar no Brasil, mas, sim, quem deles reúne as condições de fazê-lo.
O golpe de estado de que tanto se fala, não foi e não será levado a cabo pelo STF como pregam alguns ideólogos.
Com eleições livres e os demais poderes constituídos e instituições funcionando regularmente, temos como impedi-los.
O golpe, muito menos terá condições de prosperar, numa eventual vitória do ex-presidente Lula. Ainda que ele queira e já tenha dado diversos motivos para acreditarmos que pretende suprimir liberdades individuais, restringir a liberdade de expressão, censurar a mídia e os demais veículos de comunicação.
Contra tais arroubos teremos o Poder Judiciário, o Congresso Nacional e demais instituições para contê-lo.
Quem, ao meu sentir, reúne efetivas condições para promover uma ruptura institucional, muito embora só fale em “garantir a liberdade do povo” é o atual presidente da República.
Enquanto aponta as intenções “golpistas” dos demais, constrói as condições para ele próprio promover a ruptura institucional, principalmente, se sentir que o resultado eleitoral não lhe será favorável.
Faz isso através da cooptação de segmentos importantes das Forças Armadas e das forças de segurança auxiliares - todas simpáticas as suas teses –, e dos segmentos mais conservadores da sociedades a partir de ameaças, totalmente descabidas, da implantação de governo comunista no Brasil.
Neste contexto é que soa de forma preocupante o engajamento político de pessoas, até então tidas por sérias, fazendo coro a pautas antidemocráticas a partir de informações falsas ou indiferentes à elas, por conta da suas próprias inclinações pessoais.
Este é o verdadeiro cerne da questão.
Acompanhado as investigações do Congresso Americano sobre os tristes fatos acontecidos em 6 de janeiro de 2021, com depoimentos, vídeos e diversas outras provas, vimos o quanto aquela nação, uma democracia consolidada há mais de duzentos anos, andou perto de sucumbir aos desejos e engodos de um único homem, o seu presidente de então.
No Brasil assistimos ao mesmo enredo. Em mais de trinta anos, desde a redemocratização, nunca tivemos quaisquer questionamentos quanto à legitimidade dos pleitos eleitorais e/ou o papel da entidades promotoras ou participes das eleições.
Na atual quadra política é o que mais assistimos, inclusive com protagonismo inusitado e indevido das Forças Armadas – que desde que deixaram o poder depois do golpe de 1964 em 1985 –, se mantinham nos quartéis cumprindo suas obrigações constitucionais.
Agora “resolveram” que é seu papel fiscalizar urnas e o processo eleitoral. Não é o seu papel. A esta intromissão indevida se soma a da Polícia Federal, também fugindo do seu papel.
Se o golpe não deu certo nos EUA, por falta de condições objetivas, o mesmo não podemos dizer que não ocorra aqui, pelas condições acima elencadas.
E o pior de tudo isso, com o apoio de “pessoas do bem” que não conseguem enxergar com clareza o verdadeiro sentido de nação ou que acha que a ruptura institucional é o melhor caminho.
Apesar do respeito que tenho por algumas destas pessoas, de todas elas, ouso discordar.
Abdon Marinho é advogado.