QUANDO COLOCAM A CULPA NA VÍTIMA.
Por Abdon Marinho.
UMA das sentenças mais infamantes que conhecemos, na minha opinião, é aquela que diz: “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”.
Ao meu sentir tal frase revela todo o desprezo pela condição da vítima da violência sexual, seja ela mulher ou homem; ela, como dizer, “coisifica” sentimentos ou trata-os como se não existissem; carrega com um total desprezo os traumas decorrentes da violência como a humilhar ainda mais a vítima; uma espécie de segundo estupro aos olhos da sociedade.
Apesar da crueza da sentença referida, ela sempre foi vista como “oposição” a outro sentimento igualmente violento e disseminado, aquele de que a vítima deveria resistir ao estupro e defender a honra com a própria vida ou suicidar-se longo em seguida como prova de que não conivente ou cúmplice da violência sofrida.
Algum dia e/ou noutra oportunidade devemos discorrer sobre este tema, hoje, entretanto, vamos continuar tratando da emergência mais gritante do momento: a guerra sanguinária de Vladimir Putin contra a Ucrânia e seu povo, que já levou quase quatro milhões de refugiados a deixarem seus lares, seus familiares e sua pátria para trás em busca de segurança em outros países e já condenou noventa por cento dos ucranianos à extrema pobreza por diversas décadas vindouras.
A guerra, em si, já é um mal abominável, torna-se ainda terrível quando acontece para satisfazer, como nos casos de estupros, o desejo doentio do algoz.
Conforme já externamos em escritos anteriores, a guerra contra a Ucrânia não é um desejo do povo russo, este, aliás, nem sabe que acontece uma guerra – pois o governo proibiu que à imprensa e até os cidadãos tratassem a guerra como guerra e até passou a criminalizar quem assim o fizesse com penas que podem chegar a 15 anos de prisão.
A guerra contra a Ucrânia é a guerra de Putin, que não se incomoda em causar indizível sofrimento aos mais quarenta milhões de ucranianos e ao seu próprio povo, que sofre não apenas pelas baixas dos seus filhos nos campos de batalhas – além das mutilações ocasionadas pela guerra e pelo frio diante da duração da infâmia –, mas, também, os efeitos econômicos adversos das sanções econômicas.
Muito embora já exista um consenso global contra a guerra de Putin e que tal consenso deverá aumentar à medida que a violência bruta se tornar a única alternativa para conseguir a vitória já inviável nos campos de batalhas, no Brasil – agora bem menos –, existe aquele apoio velado dos principais grupos políticos (esquerdistas e bolsonaristas) em apoio à criminosa guerra de Putin.
A esquerdalha movida pelo sentimento antiamericano e pelo saudosismo da antiga “mãe soviética”; já os bolsonaristas pelo sentimento de alinhamento ao “estado autoritário”, muito bem representado pelo psicopata que ocupa o Kremlin e que, de uma hora pra outra, tornou-se “amigo de infância” do atual presidente do Brasil, os uniu na causa infamante.
Assim, exceto por algumas questões pontuais, assistimos arautos da esquerda brasileira e do bolsonarismo defendendo a indefensável guerra de Putin, com argumentos que vão desde formulações históricas de geopolítica mundial ao fato de, supostamente, o criminoso do Kremlin haver defendido a soberania brasileira sobre a Amazônia.
Assim, exceto por uma ou outra manifestação protocolar da diplomacia brasileira, a impressão que temos é que o Brasil e, pior, o povo brasileiro, encontra-se “alinhado” à política criminosa e expansionista do líder russo.
A mais cruel guerra da atualidade, com cidades inteiras sendo completamente arrasadas, com milhares já perecendo sob a ameaça da fome, da sede e do frio, para os brasileiros “politizados” é como se isso não existisse ou como se estivesse acontecendo em Marte ou como se “dessem de ombros” e fingissem que não têm nada com isso.
Causa-me especial surpresa e incômodo que líderes brasileiros, capazes de agitar multidões para suas pautas, mesmo as mais exdrúxulas, não tenham nada a dizer sobre uma guerra absolutamente injusta, cruel e desumana ou que não sejam capazes de conclamar seus liderados em protestos contra a guerra?
A pergunta que me faço é: os esquerdistas e os bolsonaristas são favoráveis a esta guerra? Acham-na justa, legítima e limpa? É por isso que não dizem nada, apesar de ficarem o dia inteiro nas redes sociais falando bobagens?
Mas, se não podem falar contra a guerra por interesses que os aproximam do crime, por que não se manifestam pela paz? Por que não se movimentam ao menos para fazerem o célebre “discurso de miss” a favor da paz mundial?
A guerra de Putin já dura mais um mês, embora pareça pouco tempo, para os que estão sofrendo sob os bombardeios inclementes é uma eternidade, sem contar que este tempo já foi mais que suficiente para a destruição de milhões de vidas – não falo apenas das mortes físicas, psicológicas, falo, sobretudo, dos milhões que de uma hora pra outra perderam suas referências.
Tem sido este silêncio cúmplice dos “líderes” brasileiros que fez lembrar da infamante frase citada no início do texto.
Estes líderes, por simpatia ao carniceiro de Moscou ou serem escravos de suas próprias covardias, tudo que queriam era que a Ucrânia e os ucranianos não resistissem bravamente contra a violação de sua pátria.
Como os generais russos, imaginaram que ao som dos primeiros tiros ou das primeiras bombas, os ucranianos se entregassem sem resistência ao invasor ou que “relaxassem e gozassem” ante a violência do ato infame.
Os arautos do esquerdismo, petismo, lulismo e do bolsonarismo apostaram e defenderam isso, muitos, inclusive, através dos seus ideólogos chegaram a culpar a Ucrânia e o seu presidente pela guerra, pelo assassinato das pessoas.
Segundo eles, sendo inviável a vitória ucraniana, o que o governo daquele país deveria fazer era ceder aos desejos do criminoso “para evitar o sofrimento do povo”.
Bem ao gostos dos covardes mais canalhas utilizam-se de um falso altruísmo para justificarem o próprio comportamento pusilânime.
O que é isso senão a colocação em prática da infamante frase com a qual iniciamos o texto?
Não vi só um ou só de um lado, com um pensamento mais ou menos elaborado, culparem a Ucrânia pela guerra que estava/está sendo vítima. Todos firmes na ideia de que era aceitável o estupro de uma pátria independente e livre.
Um mês já se passou.
A guerra é a triste realidade a massacrar um povo que não tem se deixado vencer ou dominar.
Os Estados livres do mundo e seus povos se uniram e compreenderam quem é o agressor e o agredido; quem é a vítima e quem é o algoz e protestam quase diariamente contra a violência.
Mesmo na Rússia sob severa repressão, milhares de russos já foram ou estão presos por discordarem da guerra mesmo sabendo que poderão ser condenados a penas duras.
São estes governos – e seus cidadãos –, os responsáveis pelo fim da guerra quando ela chegar.
Serão os chamados filhos de Deus, conforme prometido por Jesus Cristo no Sermão da Montanha.
Como disse alhures, por aqui, ficamos acorrentados à covardia ou alinhados ao expansionismo do “estuprador”, como se uma guerra injusta não estivesse ocorrendo contra um povo inocente, vítima e não culpado do seu infortúnio.
É a mesma covardia, o mesmo silêncio cúmplice que os faz calar diante da condenação de dezenas de cubanos a penas altíssimas pelo “crime” de protestar contra a ditadura na ilha-prisão de Cuba ou que os faz calar diante das condenações bisonhas de dissidentes russos.
É o Brasil, mais uma vez, ao lado dos criminosos e não das vítimas.
É o Brasil, mais uma vez, colocando-se no lado errado da história.
Abdon Marinho é advogado.