A LIBERDADE OPRESSORA.
Por Abdon Marinho.
EMPATIA é a habilidade de imaginar‑se no lugar de outra pessoa. Ou, a compreensão dos sentimentos, desejos, ideias e ações de outrem. Estes são os conceitos que nos são dados pela psicologia.
Se por acaso eu tivesse nascido nos últimos anos de vinte ou no começo dos anos trinta, na Alemanha nazista ou em algum dos países sobre sua influência direta, é bem provável que você não estivesse lendo o presente texto ou nenhum dos que escrevi nos últimos anos.
Certamente não teria sobrevivido para “contar história”.
Naqueles anos, junto com os seis milhões de judeus, com o meio milhão de ciganos, também, perderam a vida 300 mil pessoas com deficiência. Perderam a vida é um eufemismo, foram assassinadas pela doutrina nazista. Além de outros 400 mil pessoas com deficiência que foram esterilizadas, dos 15 mil homossexuais levados para os Campos de de Concentração, e tantos outros males praticados.
Um cidadão que até outro dia na sabia de sua existência, em um canal de YouTube que também ignorava, disse, sem meias palavras que “eu acho que tinha que ter um partido nazista reconhecido por lei”, mais à frente, “a questão é: se o cara quiser ser antijudeu, eu acho que que ele tinha o direito de ser”. Um deputado federal que participava do programa “concordando” com tal absurdo, afirmou ter “achado errado” a Alemanha ter criminalizado o nazismo depois da II Guerra Mundial.
Evito os nomes dos cidadãos porque, como sabem, não costumo dá audiência pra vagabundos, por mim, morrerão no anonimato.
Outro dia, acidentalmente, em um grupo de WhatsApp vi o mesmo cidadão reclamando de “perseguição política”, alegando ter sido demitido do canal que apresentava e, pelo fato do YouTube tê-lo “banido” definitivamente de veicular qualquer outro programa ou conteúdo na plataforma. Reconhece que “errou” mas que a “punição” está sendo desproporcional.
Um curta-metragem em exibição no Netflix, intitulado “Perdoai-nos as nossas ofensa”, abre uma breve janela para o que foi a doutrina nazista em relação aos deficientes.
Ainda nos créditos iniciais pontua que “a prova de moralidade de uma sociedade é o que ela faz por suas crianças”. Em seguida mostra que a doutrina nazista impôs nos currículos escolares que nós, deficientes, éramos estorvos custosos para toda a sociedade. Isso numa aula de matemática.
Em nome de uma doutrina centenas de milhares de crianças, jovens e adultos com alguma deficiência foram assassinadas pelo Estado. Sim, foram retiradas de suas famílias pelos soldados para serem assassinadas. Precisamos repetir inúmeras vezes o termo. Outras centenas de milhares levadas presas aos campos de concentração, esterilizadas, alvos de supostos experimentos científicos cruéis e desumanos.
Sem falar nos seis milhões de judeus, no meio milhão de ciganos, nos milhares de homossexuais, nas diversas outras minorias étnicas e religiosas, assassinadas, presas, deportadas, aniquiladas, humilhadas …
A Constituição da República diz no seu artigo 3º que constitui objetivos fundamentais da nação: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, art. 3º, IV, CF.
Como podemos perceber a ideia de um partido político nazista no Brasil entra em choque com os objetivos do país que é promover o bem de “todos”, sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação. A Constituição deixa claro: “quaisquer outras formas de discriminação”.
O cidadão nos seus canais de internet – seu megafone virtual –, entende que é compatível com a ideia de nação a existência de um partido político que é o oposto dos objetivos fundamentais da nação, que defende a supremacia de uma raça, de uma origem, de uma cor, de uma orientação sexual e, até mesmo, das condições físicas e mentais.
Mais que isso. Um partido político que defendam a implantação de seu ideário ao chegar no poder, como o fez na Alemanha.
Este é um ponto interessante pois envolve a posição de um parlamentar brasileiro ao dizer que a Alemanha “errou” ao criminalizar o nazismo. Como não criminalizar? O objetivo de todo partido é chegar ao poder e lá chegando implantar seu ideário.
Foi isso que o partido nazista fez na Alemanha: criou uma série de leis destituindo de direitos humanos e bens, judeus, minorias, deficientes, homossexuais e outras minorias; permitindo a realização de experimentos degradantes e, por fim, a “solução final”, a eliminação física daquelas pessoas.
Observem que mesmo os currículos escolares foram alterados para que as crianças fossem ensinadas e aceitassem como normal a superioridade de raça e a inferioridade das demais pessoas e até mesmo aceitassem a sua “eliminação”.
No artigo 4º da Constituição consta que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios, dentre os quais: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; repúdio ao terrorismo e ao racismo.
Se estes são princípios do nosso país nas suas relações internacionais, como admitir que um parlamentar brasileiro, diga que um país errou ao criminalizar um ideário e uma prática nazista?
O nazismo ao “tomar” o poder na Alemanha se voltou contra todos estes princípios estatuídos acima e com incomum violência e crueldade.
A excelência não acha que o ideário nazista e, principalmente, suas pautas e práticas não são passíveis de criminalização?
A expansão territorial; atentar contra a independência de outras nações; a violação dos direitos humanos como prática de estado; a autodeterminação dos povos; a intervenção militar em outras nações, a subjugação de outros Estados, etc, etc, nada disso é passível de criminalização?
Ainda a Constituição da República, no seu artigo 17, ao tratar dos partidos políticos, estabelece: “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: …”.
Veja que a Constituição impõe condições para a criação de partidos políticos, que resguardem a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e ainda observados diversos preceitos, dentre os quais a vedação de fazer uso de organização paramilitar.
Só a luz destes dispositivos constitucionais – e constituição federal traz inúmeros outros –, a ideia de termos um “partido nazista reconhecido por lei” é absolutamente infundada, a menos que se reescrevêssemos toda a constituição ou que o suposto “partido nazista” não fosse nazista – não conforme aprendemos nos livros de história dos quais tanto o apresentador quando o deputado parecem possuir alergia.
Vou além. A questão posta pelo cidadão de que “se o cara quiser ser um antijudeu, tem o direito de ser” – o mesmo “valendo” para deficientes, ciganos, homossexuais, e outras minorias étnicas e religiosas –, se aplicaria apenas ao “direito” de não gostar, como por exemplo, “prefiro azul a amarelo”, ou se estenderia tal “direito”, conforme praticado pelo partido nazista original, ao direito de persegui-los, humilhá-los e eliminá-los, por fim? Viu o judeu na rua e dizem: “bora ali matar o judeu”; viu o deficiente e dizem: “bora ali matar o aleijado”; viram o homossexual e dizem: “bora ali matar o veado”; viram o negro e dizem: “bora ali matar o negrinho”.
No poder, certamente, terceirizariam o serviço sujo aos militares.
Aos ignorantes de plantão, durante a República de Weimar, mesmo antes dos nazistas chegarem ao poder, os seus partidários, em horda, saiam pelas ruas perseguir, maltratar e até matar estas pessoas.
Quando alguém, falando para milhões de pessoas ou não, diz que deveríamos “ter um partido nazista reconhecido por lei”, de preferência recebendo milhões do fundo partidário (acréscimo meu) para difundir ou praticar seu ideário, deveria ter consciência do peso de suas palavras ou ao menos passar a vista por algum livro de história – se bem que a grande maioria dos que defendem isso, tem como mantra principal a negativa da história: para eles o holocausto nunca ocorreu, o assassinato de deficientes, ciganos e judeus, etc, é uma ficção, talvez por isso o deputado disse que a Alemanha “errou” ao criminalizar o nazismo.
No Brasil – e noutras partes do mundo –, se vive um “boom” de preconceitos e discriminações: jogadores de futebol chamados de “macacos” durante as partidas de futebol; negro pegando a chave para abrir a porta de casa assassinado pelo vizinho; homossexuais sendo assassinados por sua condição sexual; deficientes sofrendo diversas privações; idosos sendo discriminados e humilhados e por aí vai.
São situações estruturais da nossa sociedade. São situações que precisamos combater dia e noite e não fingirmos que elas não existem.
A liberdade individual de cada um para “defender esse tipo de coisa” se aplica apenas à defesa de expressão ou vem com o “combo” completo?
Pessoalmente, até por não conhecê-los, não acredito que o apresentador e o deputado sejam nazistas, racistas, por conta do que disseram. Na minha opinião são apenas ignorantes que gazetearam as aulas de história no ensino fundamental e que acham que o conceito de “liberdade” comporta qualquer absurdo.
Abdon Marinho é advogado.