Uma partida em Melbourne. Um happy hour em Londres.
Por Abdon Marinho.
NESTE dia 30 de janeiro de 2022 chegou ao fim o Aberto da Austrália, que desde 1972 ocorre na cidade de Melbourne, primeiro torneio de tênis da temporada, com a final sendo disputada entre os tenistas Rafael Nadal (espanhol) e Daniil Medvedev (russo). Com vitória do primeiro, que após cinco horas de uma partida desgastante, conquistou seu 21º Slam.
Embora torneio possua suas surpresas e nunca se possa prevê quem chegará à final, o grande ausente deste primeiro torneio – e talvez dos demais que ocorrerão este ano –, foi o número um do mundo neste esporte, o sérvio Novak Djokovic, deportado da Austrália por não ter cumprido as exigências estabelecidas pelo país com relação a vacinação contra a COVID-19 – recaem, ainda sobre o tenista suspeitas de que tenha praticado outras irregularidades na tentativa de participar do torneio sem cumprir as exigências impostas a todos.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson (Alexander Boris de Pfeffel Johnson) não deverá manter-se no comando do governo por muito tempo. Se não renunciar ou for “renunciado” pelo comando do Partido Conservador, que lidera desde 2019, é quase certo que colocará o próprio partido na “berlinda” nas próximas eleições.
Pesquisas recentes revelam que cerca de setenta por cento dos eleitores estão insatisfeitos com a sua liderança, uma grande parte deles frustrados e irritados por saberem que durante o lockdown que seu governo impôs a toda a população, da rainha aos súditos, ele e a cúpula do governo se esbaldavam em festinhas, confraternizações e happy hours, em Downing Street, 10, a residência oficial e sede do governo.
As duas situações, embora pareçam bem distintas – um torneio de tênis, na Austrália e a pressão política pela renúncia de um primeiro-ministro, no Reino Unido –, elas têm muito mais em comum do que se imagina. E ambas revelam que algumas pessoas pelo status e/ou poder que conquistaram se acham superiores ou merecedoras de um tratamento distinto ao dispensado as demais pessoas.
Imagino que o senhor Djokovic tenha pensado: — eu sou o número um do mundo no tênis, eles que precisam da minha presença. Vou lá, invento uma desculpa qualquer e participo do torneio sem cumprir as regras impostas a todos os demais participantes da competição.
Já o senhor Johnson e o seu governo fizeram até pior.
Impuseram um rigoroso lockdown aos cidadãos do Reino Unido – é clássica e tocante a imagem da rainha sozinha, sem um filho, neto ou mesmo uma companhia que a amparasse durante o funeral do seu companheiro de mais de setenta anos –, impedindo encontros de até duas pessoas, todo tipo de reunião e até mesmo que familiares se despedissem de seus entes queridos mortos pela pandemia ou outras causas, enquanto eles tornaram-se useiros e vezeiros de festinhas privadas com dezenas, talvez centenas de pessoas, nos jardins da sede do governo.
Nunca se fez valer com tanta precisão o bordão: faça o que mando, não faça o que faço.
Por estas paragens, nos grupos de aplicativos e/ou nas redes sociais, vi diversas pessoas, até mesmo algumas supostamente esclarecidas, fazendo a defesa do tenista profissional argumentando que o mesmo seria saudável, muito mais do que os vacinados e que não faria sentido deixá-lo de fora do torneio.
Mesmo em grupos de aplicativos composto por advogados tenho assistido a exaltadas defesas do direito a não vacinação e contrários à exigência de passaporte vacinal para o acesso aos órgãos públicos.
Embora tenha por princípio o respeito às opiniões divergentes, conforme já assentei em textos anteriores, essa tão propagada “liberdade individual” – a não ser que você habite um lugar completamente ermo e não dependa de ninguém para viver –, não é (e nunca foi) absoluta. Desde que o homem entendeu ser mais vantajoso viver em sociedade do que sozinho e criou as bases para organização do Estado que ele abdicou de parte de sua “liberdade individual” – se é que teve algum dia.
Isso significa que somos livres dentro dos limites da lei “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, Art. 5º, II, da Constituição Federal. Só que mesmo essa garantia, que para todos parece tão cristalina, encontra-se limitada pelo interesse coletivo.
Aquele Estado que nos primórdios da civilização você “concordou” em participar pode lhe impor diversas restrições, como esta, de só ter acesso a determinados locais se comprovar ter atendido alguma exigência imposta a todos.
Observo, inclusive, que por conta desta pandemia tem país aprovando a vacinação compulsória de seus cidadãos, ou seja, obrigá-los a vacinar-se ainda que não queiram.
Não conheço a legislação aprovada, portanto não sei quais as reprimendas impostas aos que se recusarem a vacinar-se mas vemos que é algo muito mais “duro” que exigir-se o “passaporte vacinal” para o acesso a algum local ou órgão público.
A pergunta que caberia fazer seria se tais imposições e até mesmo legislação impondo vacinação compulsória estariam acobertados pelo manto do “contrato social” de que já tratamos, conforme estabelecido nos ensinamentos do Hobbes, Locke e Rousseau.
Em tese, sim. A legislação impositiva foi elaborada pelos representantes do povo, aplicada por um governo legítimo, calçada no interesse coletivo e amparado por estudos científicos do mundo todo.
É importante assentar que a liberdade individual antes de ser uma construção legal é uma construção filosófica. É dizer, a liberdade individual não existiria sem um conjunto de regras a serem respeitadas por todos para lhe garantir a existência.
A liberdade é individual mas quem garante que ela exista é o coletivo, a sociedade como um todo e a organização política, fundada originalmente no “contrato social”.
É isso que garante nossa liberdade, a nossa propriedade e que alguém mais forte não nos prive dos nossos bens.
Tudo isso dito de outra forma, é o seguinte, embora pareça paradoxal, a liberdade individual não pertence ao “indivíduo”, antes, é um patrimônio da coletividade.
Quando o governo australiano determinou a expulsão do tenista sérvio, não se esperava outra coisa dele (governo).
Na verdade, pela insistência do atleta, o que se viu foi uma falsa polêmica.
Ora, de todos os países do mundo, a Austrália foi um dos que mais impôs restrições aos seus cidadãos e habitantes, talvez por isso o número de vidas perdidas não tenha chegado, até aqui, a quatro mil mortes, não faria qualquer sentido abrir concessões a um estrangeiro (ou a qualquer um) que por vontade própria, e até fazendo apologia disso, recusou-se a cumprir restrições impostas a todos – ainda que seja um atleta “número um” na sua modalidade.
O governo perderia sua autoridade e, pior, a sua legitimidade. Haveria uma clara violação ao “pacto social” firmado com os cidadãos.
Essa, aliás, é a mesma motivação que deve levar a queda do senhor Johnson do comando do governo do Reino Unido.
Ao se esbaldar em “festinhas” enquanto impunha aos cidadãos rigorosas restrições, o governo de Johnson violou o dever de lealdade que deve existir entre governantes e governados.
A insistência dele em continuar no governo mesmo depois de flagrado em tal violação de dever é apenas mais uma prova de que é menor que o cargo que ocupa.
Governantes, celebridades, cidadãos, precisam conhecer os mecanismos de funcionamento da sociedade e evitarem apologias de bobagens.
É o que acho.
Abdon Marinho é advogado.