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Bem Vindo a Pagina de Abdon Marinho, Ideias e Opiniões, Sábado, 02 de Novembro de 2024



A palavra é o instrumento irresistível da conquista da liberdade.

Escrito por Abdon Marinho


Uma partida em Melbourne. Um happy hour em Londres.

Por Abdon Marinho. 

NESTE dia 30 de janeiro de 2022 chegou ao fim o Aberto da Austrália, que desde 1972 ocorre na cidade de Melbourne, primeiro torneio de tênis da temporada, com a final sendo disputada entre os tenistas Rafael Nadal (espanhol) e Daniil Medvedev (russo). Com vitória do primeiro, que após cinco horas de uma partida desgastante, conquistou seu 21º Slam.

Embora torneio possua suas surpresas e nunca se possa prevê quem chegará à final, o grande ausente deste primeiro torneio – e talvez dos demais que ocorrerão este ano –, foi o número um do mundo neste esporte, o sérvio Novak Djokovic, deportado da Austrália por não ter cumprido as exigências estabelecidas pelo país com relação a vacinação contra a COVID-19 – recaem, ainda sobre o tenista suspeitas de que tenha praticado outras irregularidades na tentativa de participar do torneio sem cumprir as exigências impostas a todos. 

O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson (Alexander Boris de Pfeffel Johnson) não deverá manter-se no comando do governo por muito tempo. Se não renunciar ou for “renunciado” pelo comando do Partido Conservador, que lidera desde 2019, é quase certo que colocará o próprio partido na “berlinda” nas próximas eleições. 

Pesquisas recentes revelam que cerca de setenta por cento dos eleitores estão insatisfeitos com a sua liderança, uma grande parte deles frustrados e irritados por saberem que durante o lockdown que seu governo impôs a toda a população, da rainha aos súditos, ele e a cúpula do governo se esbaldavam em festinhas, confraternizações e happy hours, em Downing Street, 10, a residência oficial e sede do governo. 

As duas situações, embora pareçam bem distintas – um torneio de tênis, na Austrália e a pressão política pela renúncia de um primeiro-ministro, no Reino Unido –, elas têm muito mais em comum do que se imagina. E ambas revelam que algumas pessoas pelo status e/ou poder que conquistaram se acham superiores ou merecedoras de um tratamento distinto ao dispensado as demais pessoas. 

Imagino que o senhor Djokovic tenha pensado: — eu sou o número um do mundo no tênis, eles que precisam da minha presença. Vou lá, invento uma desculpa qualquer e participo do torneio sem cumprir as regras impostas a todos os demais participantes da competição. 

Já o senhor Johnson e o seu governo fizeram até pior. 

Impuseram um rigoroso lockdown aos cidadãos do Reino Unido – é clássica e tocante a imagem da rainha sozinha, sem um filho, neto ou mesmo uma companhia que a amparasse durante o funeral do seu companheiro de mais de setenta anos –, impedindo encontros de até duas pessoas, todo tipo de reunião e até mesmo que familiares se despedissem de seus entes queridos mortos pela pandemia ou outras causas, enquanto eles tornaram-se useiros e vezeiros de festinhas privadas com dezenas, talvez centenas de pessoas, nos jardins da sede do governo. 

Nunca se fez valer com tanta precisão o bordão: faça o que mando, não faça o que faço. 

Por estas paragens, nos grupos de aplicativos e/ou nas redes sociais, vi diversas pessoas, até mesmo algumas supostamente esclarecidas, fazendo a defesa do tenista profissional argumentando que o mesmo seria saudável, muito mais do que os vacinados e que não faria sentido deixá-lo de fora do torneio.

Mesmo em grupos de aplicativos composto por advogados tenho assistido a exaltadas defesas do direito a não vacinação e contrários à exigência de passaporte vacinal para o acesso aos órgãos públicos. 

Embora tenha por princípio o respeito às opiniões divergentes, conforme já assentei em textos anteriores, essa tão propagada “liberdade individual” –  a não ser que você habite um lugar completamente ermo e não dependa de ninguém para viver –, não é (e nunca foi) absoluta. Desde que o homem entendeu ser mais vantajoso viver em sociedade do que sozinho e criou as bases para organização do Estado que ele abdicou de parte de sua “liberdade individual” – se é que teve algum dia.

Isso significa que somos livres dentro dos limites da lei “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, Art. 5º, II, da Constituição Federal. Só que mesmo essa garantia, que para todos parece tão cristalina, encontra-se limitada pelo interesse coletivo. 

Aquele Estado que nos primórdios da civilização você “concordou” em participar pode lhe impor diversas restrições, como esta, de só ter acesso a determinados locais se comprovar ter atendido alguma exigência imposta a todos. 

Observo, inclusive, que por conta desta pandemia tem país aprovando a vacinação compulsória de seus cidadãos, ou seja, obrigá-los a vacinar-se ainda que não queiram. 

Não conheço a legislação aprovada, portanto não sei quais as reprimendas impostas aos que se recusarem a vacinar-se mas vemos que é algo muito mais “duro” que exigir-se o “passaporte vacinal” para o acesso a algum local ou órgão público. 

A pergunta que caberia fazer seria se tais imposições e até mesmo legislação impondo vacinação compulsória estariam acobertados pelo manto do “contrato social” de que já tratamos, conforme estabelecido nos ensinamentos do Hobbes, Locke e Rousseau. 

Em tese, sim. A legislação impositiva foi elaborada pelos representantes do povo, aplicada por um governo legítimo, calçada no interesse coletivo e amparado por estudos científicos do mundo todo.  

É importante assentar que a liberdade individual antes de ser uma construção legal é uma construção filosófica. É dizer, a liberdade individual não existiria sem um conjunto de regras a serem respeitadas por todos para lhe garantir a existência. 

A liberdade é individual mas quem garante que ela exista é o coletivo, a sociedade como um todo e a organização política, fundada originalmente no “contrato social”. 

É isso que garante nossa liberdade, a nossa propriedade e que alguém mais forte não nos prive dos nossos bens. 

Tudo isso dito de outra forma, é o seguinte, embora pareça paradoxal, a liberdade individual não pertence ao “indivíduo”, antes, é um patrimônio da coletividade. 

Quando o governo australiano determinou a expulsão do tenista sérvio, não se esperava outra coisa dele (governo). 

Na verdade, pela insistência do atleta, o que se viu foi uma falsa polêmica. 

Ora, de todos os países do mundo,  a Austrália foi um dos que mais impôs restrições aos seus cidadãos e habitantes, talvez por isso o número de vidas perdidas não tenha chegado, até aqui, a quatro mil mortes, não faria qualquer sentido abrir concessões a um estrangeiro (ou a qualquer um) que por vontade própria, e até fazendo apologia disso, recusou-se a cumprir restrições impostas a todos – ainda que seja um atleta “número um” na sua modalidade. 

O governo perderia sua autoridade e, pior, a sua legitimidade. Haveria uma clara violação ao “pacto social” firmado com os cidadãos. 

Essa, aliás, é a mesma motivação que deve levar a queda do senhor Johnson do comando do governo do Reino Unido. 

Ao se esbaldar em “festinhas” enquanto impunha aos cidadãos rigorosas restrições, o governo de Johnson violou o dever de  lealdade que deve existir entre governantes e governados. 

A insistência dele em continuar no governo mesmo depois de flagrado em tal violação de dever é apenas mais uma prova de que é menor que o cargo que ocupa. 

Governantes, celebridades, cidadãos, precisam conhecer os mecanismos de funcionamento da sociedade e evitarem apologias de bobagens. 

É o que acho. 

Abdon Marinho é advogado.