AbdonMarinho - Uma partida em Melbourne. Um happy hour em Londres.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Uma par­tida em Mel­bourne. Um happy hour em Londres.


Uma par­tida em Mel­bourne. Um happy hour em Londres.

Por Abdon Mar­inho.

NESTE dia 30 de janeiro de 2022 chegou ao fim o Aberto da Aus­trália, que desde 1972 ocorre na cidade de Mel­bourne, primeiro torneio de tênis da tem­po­rada, com a final sendo dis­putada entre os tenistas Rafael Nadal (espan­hol) e Daniil Medvedev (russo). Com vitória do primeiro, que após cinco horas de uma par­tida des­gas­tante, con­quis­tou seu 21º Slam.

Emb­ora torneio pos­sua suas sur­pre­sas e nunca se possa prevê quem chegará à final, o grande ausente deste primeiro torneio – e talvez dos demais que ocor­rerão este ano –, foi o número um do mundo neste esporte, o sérvio Novak Djokovic, depor­tado da Aus­trália por não ter cumprido as exigên­cias esta­b­ele­ci­das pelo país com relação a vaci­nação con­tra a COVID-​19 – recaem, ainda sobre o tenista sus­peitas de que tenha prat­i­cado out­ras irreg­u­lar­i­dades na ten­ta­tiva de par­tic­i­par do torneio sem cumprir as exigên­cias impostas a todos.

O primeiro-​ministro do Reino Unido, Boris John­son (Alexan­der Boris de Pfef­fel John­son) não dev­erá manter-​se no comando do gov­erno por muito tempo. Se não renun­ciar ou for “renun­ci­ado” pelo comando do Par­tido Con­ser­vador, que lid­era desde 2019, é quase certo que colo­cará o próprio par­tido na “berlinda” nas próx­i­mas eleições.

Pesquisas recentes rev­e­lam que cerca de setenta por cento dos eleitores estão insat­is­feitos com a sua lid­er­ança, uma grande parte deles frustra­dos e irri­ta­dos por saberem que durante o lock­down que seu gov­erno impôs a toda a pop­u­lação, da rainha aos súdi­tos, ele e a cúpula do gov­erno se esbal­davam em fes­tin­has, con­frat­er­niza­ções e happy hours, em Down­ing Street, 10, a residên­cia ofi­cial e sede do gov­erno.

As duas situ­ações, emb­ora pareçam bem dis­tin­tas – um torneio de tênis, na Aus­trália e a pressão política pela renún­cia de um primeiro-​ministro, no Reino Unido –, elas têm muito mais em comum do que se imag­ina. E ambas rev­e­lam que algu­mas pes­soas pelo sta­tus e/​ou poder que con­quis­taram se acham supe­ri­ores ou mere­ce­do­ras de um trata­mento dis­tinto ao dis­pen­sado as demais pes­soas.

Imag­ino que o sen­hor Djokovic tenha pen­sado: — eu sou o número um do mundo no tênis, eles que pre­cisam da minha pre­sença. Vou lá, invento uma des­culpa qual­quer e par­ticipo do torneio sem cumprir as regras impostas a todos os demais par­tic­i­pantes da com­petição.

Já o sen­hor John­son e o seu gov­erno fiz­eram até pior.

Impuseram um rig­oroso lock­down aos cidadãos do Reino Unido – é clás­sica e tocante a imagem da rainha soz­inha, sem um filho, neto ou mesmo uma com­pan­hia que a ampara­sse durante o funeral do seu com­pan­heiro de mais de setenta anos –, impedindo encon­tros de até duas pes­soas, todo tipo de reunião e até mesmo que famil­iares se des­pedis­sem de seus entes queri­dos mor­tos pela pan­demia ou out­ras causas, enquanto eles tornaram-​se useiros e vezeiros de fes­tin­has pri­vadas com dezenas, talvez cen­te­nas de pes­soas, nos jardins da sede do gov­erno.

Nunca se fez valer com tanta pré­cisão o bor­dão: faça o que mando, não faça o que faço.

Por estas par­a­gens, nos gru­pos de aplica­tivos e/​ou nas redes soci­ais, vi diver­sas pes­soas, até mesmo algu­mas suposta­mente esclare­ci­das, fazendo a defesa do tenista profis­sional argu­men­tando que o mesmo seria saudável, muito mais do que os vaci­na­dos e que não faria sen­tido deixá-​lo de fora do torneio.

Mesmo em gru­pos de aplica­tivos com­posto por advo­ga­dos tenho assis­tido a exal­tadas defe­sas do dire­ito a não vaci­nação e con­trários à exigên­cia de pas­s­aporte vaci­nal para o acesso aos órgãos públi­cos.

Emb­ora tenha por princí­pio o respeito às opiniões diver­gentes, con­forme já assen­tei em tex­tos ante­ri­ores, essa tão propa­gada “liber­dade indi­vid­ual” – a não ser que você habite um lugar com­ple­ta­mente ermo e não dependa de ninguém para viver –, não é (e nunca foi) abso­luta. Desde que o homem enten­deu ser mais van­ta­joso viver em sociedade do que soz­inho e criou as bases para orga­ni­za­ção do Estado que ele abdi­cou de parte de sua “liber­dade indi­vid­ual” – se é que teve algum dia.

Isso sig­nifica que somos livres den­tro dos lim­ites da lei “ninguém será obri­gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em vir­tude de lei”, Art. 5º, II, da Con­sti­tu­ição Fed­eral. Só que mesmo essa garan­tia, que para todos parece tão cristalina, encontra-​se lim­i­tada pelo inter­esse cole­tivo.

Aquele Estado que nos primór­dios da civ­i­liza­ção você “con­cor­dou” em par­tic­i­par pode lhe impor diver­sas restrições, como esta, de só ter acesso a deter­mi­na­dos locais se com­pro­var ter aten­dido alguma exigên­cia imposta a todos.

Observo, inclu­sive, que por conta desta pan­demia tem país aprovando a vaci­nação com­pul­sória de seus cidadãos, ou seja, obrigá-​los a vacinar-​se ainda que não queiram.

Não con­heço a leg­is­lação aprovada, por­tanto não sei quais as repri­men­das impostas aos que se recusarem a vacinar-​se mas vemos que é algo muito mais “duro” que exigir-​se o “pas­s­aporte vaci­nal” para o acesso a algum local ou órgão público.

A per­gunta que caberia fazer seria se tais imposições e até mesmo leg­is­lação impondo vaci­nação com­pul­sória estariam acober­ta­dos pelo manto do “con­trato social” de que já trata­mos, con­forme esta­b­ele­cido nos ensi­na­men­tos do Hobbes, Locke e Rousseau.

Em tese, sim. A leg­is­lação impos­i­tiva foi elab­o­rada pelos rep­re­sen­tantes do povo, apli­cada por um gov­erno legí­timo, calçada no inter­esse cole­tivo e amparado por estu­dos cien­tí­fi­cos do mundo todo.

É impor­tante assen­tar que a liber­dade indi­vid­ual antes de ser uma con­strução legal é uma con­strução filosó­fica. É dizer, a liber­dade indi­vid­ual não exi­s­tiria sem um con­junto de regras a serem respeitadas por todos para lhe garan­tir a existên­cia.

A liber­dade é indi­vid­ual mas quem garante que ela exista é o cole­tivo, a sociedade como um todo e a orga­ni­za­ção política, fun­dada orig­i­nal­mente no “con­trato social”.

É isso que garante nossa liber­dade, a nossa pro­priedade e que alguém mais forte não nos prive dos nos­sos bens.

Tudo isso dito de outra forma, é o seguinte, emb­ora pareça para­doxal, a liber­dade indi­vid­ual não per­tence ao “indi­ví­duo”, antes, é um patrimônio da cole­tivi­dade.

Quando o gov­erno aus­traliano deter­mi­nou a expul­são do tenista sérvio, não se esper­ava outra coisa dele (gov­erno).

Na ver­dade, pela insistên­cia do atleta, o que se viu foi uma falsa polêmica.

Ora, de todos os países do mundo, a Aus­trália foi um dos que mais impôs restrições aos seus cidadãos e habi­tantes, talvez por isso o número de vidas per­di­das não tenha chegado, até aqui, a qua­tro mil mortes, não faria qual­quer sen­tido abrir con­cessões a um estrangeiro (ou a qual­quer um) que por von­tade própria, e até fazendo apolo­gia disso, recusou-​se a cumprir restrições impostas a todos – ainda que seja um atleta “número um” na sua modal­i­dade.

O gov­erno perde­ria sua autori­dade e, pior, a sua legit­im­i­dade. Have­ria uma clara vio­lação ao “pacto social” fir­mado com os cidadãos.

Essa, aliás, é a mesma moti­vação que deve levar a queda do sen­hor John­son do comando do gov­erno do Reino Unido.

Ao se esbal­dar em “fes­tin­has” enquanto impunha aos cidadãos rig­orosas restrições, o gov­erno de John­son vio­lou o dever de leal­dade que deve exi­s­tir entre gov­er­nantes e gov­er­na­dos.

A insistên­cia dele em con­tin­uar no gov­erno mesmo depois de fla­grado em tal vio­lação de dever é ape­nas mais uma prova de que é menor que o cargo que ocupa.

Gov­er­nantes, cele­bri­dades, cidadãos, pre­cisam con­hecer os mecan­is­mos de fun­ciona­mento da sociedade e evitarem apolo­gias de bobagens.

É o que acho.

Abdon Mar­inho é advogado.