BARRA TORRES PISA MÃE DE BOLSONARO, QUE FOGE.
Por Abdon Marinho.
ANTIGAMENTE, há muito anos, lá na minha aldeia quando havia uma rusga entre dois meninos era comum que se fizesse dois riscos na terra simbolizando as mães dos contendores.
Riscos feitos, era aguardar quem iria passar o pé sobre a “mãe” do outro para iniciar a peleja até que houvesse um vencedor ou a turma do “deixa disso” apartasse a briga.
Na quinta-feira, 6 de janeiro de 2022, o presidente da República, Jair Bolsonaro, fez os dois riscos no chão ao sugerir interesses subalternos da ANVISA na aprovação da vacina pediátrica da Pfizer para crianças de cinco a onze anos.
Em uma entrevista, onde revelava-se desinformação sobre o número de vítimas naquela faixa etária, que segundo o próprio Ministério da Saúde, ultrapassa três centenas de mortes, disse sua excelência: “Qual é o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacina? É pela sua vida? É pela sua saúde?"
Qual seria o interesse “por trás” de uma agência reguladora do Estado?
Foi essa insinuação maldosa da parte do presidente, levantando dúvidas sobre uma decisão técnica da agência que levou o general Barra Torres a “pisar” o risco correspondente à mãe do presidente, na nossa alegoria, e escora-lo com um soco de direita nas “fuças”.
A Anvisa nada fez senão aprovar uma medicação (vacinas) para crianças de 5 a 11 anos na esteira do que fizeram, desde o ano passado, outras grandes e respeitáveis agências, como a americana e a europeia, sem que ninguém sugerisse ou insinuasse que a aprovação se deu porque tais agências tinham “interesse por trás disso aí”.
O que as agências fazem é apurar com rigor extremo os riscos que um medicamento ou imunizante pode trazer para quem o ingerir ou inocular. Apurado o risco faz-se o cotejamento entre as vantagens e desvantagens de se aprovar o medicamento e/ou imunizante.
No caso em tela as agências chegaram à conclusão que as vantagens são infinitamente maiores que as desvantagens ocasionadas por alguma intercorrência ou efeito colateral que, segundo as pesquisas, são raríssimos e/ou desprezíveis.
Os cidadãos, acreditamos que uma agência reguladora com tamanha responsabilidade não iria aprovar alguma coisa a ser ministrada a estes cidadãos motivada por “interesses por trás disso aí”.
Chega a ser inacreditável que um presidente da República coloque em dúvida o trabalho de agência reguladora do Estado e a honradez dos seus integrantes.
Chega a ser mais inacreditável, ainda, que a Procuradoria-Geral da República e o Congresso Nacional se mantenha, até agora, diante de fatos de tamanha gravidade como se nada tivesse acontecido e guarde um silêncio sepulcral.
Chega a ser bisonho que a honra da pátria ultrajada pelos despautérios da excelência que preside o país tenha sido feita por uma emissora de televisão, a Rede Globo, que em editorial no seu principal noticioso, o Jornal Nacional, repôs as coisas aos seus devidos termos e ainda “puxou” a orelha da autoridade na mesma quinta-feira.
Mas a resposta verdadeiramente acachapante veio na “nota-pisa” de Barras Torres, no sábado.
A nota de Barra Torres é de uma singeleza cortante e revela muito mais pelo não dito que pelo dito.
Começa por dizer serviu ao país por 32 anos, como Oficial General da Marinha, pautando a vida pessoal na austeridade e na honra.
Quem não teria honra?
Prossegue dizendo que como cristão, buscou cumprir os mandamentos, muito embora tenha abraçado a carreira das armas. Nunca tendo levantado falso testemunho.
Quem teria cometido falso testemunho e/ou violado os mandamentos?
Continua dizendo que vai morrer sem conhecer a riqueza mas que morrerá digno.
Quem será que enricou a si e aos seus no serviço público e por isso seria indigno?
Veja que no início da nota Torres assenta que serviu ao país por 32 anos na carreira militar e também como médico.
No mesmo parágrafo em que diz que morrerá sem conhecer a riqueza porém digno, diz que nunca se apropriou de nada que não fosse seu e que não pretende fazer isso frente à Anvisa.
Seria uma indireta aqueles que tomavam (ou tomam) os salários dos servidores de seus gabinetes nos esquemas conhecidos como “rachadinhas”?
Continua dizendo que preza pelos valores morais que seus pais praticaram e que pelo exemplo deles somou ao seu caráter.
Veja que cada afirmação suscita uma pergunta.
Ao dizer isso, estaria dizendo que o presidente carece de valores morais?
E já se aproximando do final, o desafio acachapante, o “piso no risco da mãe” ao dizer que se ele, presidente, possuir informações que levantem qualquer indício de corrupção dele, que não perca tempo ou prevarique, mas, determine imediata investigação policial.
O chamamento à razão do presidente da República pelo dirigente da Anvisa é o fato principal da nota.
Ele diz que se o presidente insinua sem possuir sequer indícios está sendo leviano ou, se possui e não manda investigar, comete o crime de prevaricação, artigo 319 do Código Penal.
Num gesto de grandeza derradeiro, Barras Torres dar a chance do presidente se retratar, dizendo que seria um gesto de grandeza se retratar caso não possua informações ou indícios de quaisquer irregularidades praticadas pelo missivista, apelando ao Deus que o presidente tanto cita.
Voltando às minhas memórias de sertanejo, nota de Barras Torres ao presidente da República é aquilo que se chamava de “pisa conversada”, em que pai ou a mãe ao “disciplinar o filho” ia dizendo as razões e motivos de cada “lapada”. Muitas das vezes a conversa era mais dolorida que a própria “pisa”.
A resposta do presidente à nota altiva de Barra Torres, veio nesta segunda-feira, 10, provando ser incapaz de sustentar em pé o que diz sentado, ensaiou um pedido de desculpas, engoliu o choro e disse, também, em entrevista à Jovem Pan: “Me surpreendi com a carta dele. Não tinha motivo para aquilo. Eu falei o que está por trás do que a Anvisa vem fazendo? Ninguém acusou ninguém de corrupção. Por enquanto, não tenho o que fazer no tocante a isso aí”.
Dito isso, se tivesse sido na minha aldeia, teria corrido para debaixo da saia da mãe.
Meu pai costumava dizer que cada um “mede os outros com sua régua”.
Acostumado a ser desmentido dia sim e no outro também; a ser chamado (e provado) que não possui qualquer apego à segurança do que diz ou noutras palavras, um mentiroso contumaz, Bolsonaro se surpreende que existam pessoas com hombridade para defender a própria honra.
O presidente não sente o menor constrangimento ao ser confrontado com as inverdades que profere ou ao ser publicamente desmentido. Simplesmente dar de ombros e conta outra.
A surpresa de Bolsonaro também é decorrente da leniência das demais instituições e poderes da República que ao longo dos últimos três anos o tem tratado como inimputável.
Quando disse: “Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí?” queria dizer o que mesmo?
No pedido de “penico” a Barra Torres ou para fugir à pecha de leviano ou de prevaricador saiu-se com essa: “Não acusei a Anvisa de corrupção, perguntei o que está por trás dessa gana, dessa sanha vacinatória”.
O enviesado pedido de desculpas por parte de Bolsonaro, diferente do que pretendeu Barra Torres está longe de ser um gesto de grandeza do presidente, pelo contrário é apenas uma tentativa de escapar de uma desmoralização ainda maior.
Desde que comandante da Anvisa divulgou a nota em repúdio às declarações do presidente, que este assunto ganhou destaque no seio da sociedade. Com quase cem por cento dos comentários favoráveis ao chefe da Anvisa e contrários ao presidente.
Imagino que que no meio dos militares, um dos pilares do bolsonarismo, a repercussão tenha sido ainda maior.
Barra Torres pode ter aberto uma porta para aqueles que, por fidelidade ou dever, ainda se deixam humilhar pelo presidente.
Finalizo dizendo que aceitos ou não o pedido de desculpas pelos envolvidos, talvez essa contenda sirva para o presidente (se possuir capacidade para tal) rever seus valores e entender muitos não aceitam que lhes tirem a honra.
Abdon Marinho é advogado.