O BRASIL ESTÁ DOENTE.
Por Abdon Marinho.
DECERTO que o texto que originalmente planejei para este Domingo de Ramos não era o que escreverei nesta manhã.
Pretendia falar de política mas noutro sentido, nas renúncias de políticos para disputar outros cargos, na sucessão no estado com o vice-governador sendo alçado à titular e candidato à reeleição e as “mexidas” políticas que estão ocorrendo com pactos inquebráveis sendo rompidos, amizades desfeitas, foguetes dando ré e até mesmo alguns bois “avoando” na Praça João Lisboa.
Dou um tempo em tais pautas para tratar de uma outra que me parece bem mais urgente: o nosso país está doente.
Quando falo em doença não me refiro apenas aquelas que se materializam de forma “física”, o empobrecimento das famílias; a carestia; a fome; o desemprego; a destruição do meio ambiente; a educação e a saúde sucateadas; a ciência e tecnologia inexististes; a infraestrutura precária; e tantos outros males que nos afligem.
A verdadeira doença que desejo tratar – e que me parece muito mais grave –, é essa doença da “alma” que de uns tempos para cá passou a acometer o país e o seu povo; essa falta de empatia pelo sofrimento alheio; essa falta de respeito por aqueles que pensam diferente; esse ódio desmedido; e até mesmo essa falta de humanidade.
Um exemplo claro do falo (dentre tantos) e que me mobilizou para escrever o texto, foi a fala de um deputado federal, filho de importante político brasileiro – por motivos sanitários me abstenho de citar nomes –, na qual disse que sentira “pena” da cobra que fora utilizada na tortura da jornalista Miriam Leitão, ocorrida nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira.
Como, diante da tortura, algum ser humano poder referir-se à vítima de forma tão cruel? Dizer que sentir “pena” não vítima, mas do instrumento de tortura? Qual é a classificação que ocupa tal colocação na galeria das infâmias?
É que sinto pena dos animais que são utilizados como sucedâneos das covardias humanas. Assim, por motivos diversos, concordo com deputado: animais não deveriam ser utilizados como armas ou instrumentos de torturas pois mesmo os mais brutos são incapazes, como os humanos, de fazerem tanto mal à sua espécie.
Diante da repercussão negativa à infâmia perpetrada, ao crime cometido, à falta de decoro patente, o deputado não deu-se por achado, pediu o VAR – sigla em inglês para Video Assistant Referee.
Na Copa do Mundo de 2018, a FIFA começou a utilizar o sistema eletrônico de auxílio aos árbitros a fim de comprovar, mediante o exame de imagens, que o lance efetivamente ocorreu como foi arbitrado.
Pois é, por mais inacreditável possa parecer, a excelência teve o disparate de duvidar da existência de tortura à jornalista, pedindo como prova idônea, dentre outras, vídeos da tortura perpetrada pelos agentes do estado contra a mesma há cerca de 50 anos.
A primeira coisa que pensei ao tomar conhecimento dos questionamentos da excelência sobre inexistência de vídeos, relatórios circunstanciados, em três vias, assinados e carimbados pelos torturadores, foi: que tipo de droga alucinógena essa gente toma no café da manhã?
Embora mais comum do que se imagina, a tortura é o crime mais odiento que se pode cometer – acredito que seja até pior que a morte –, deixando marcas físicas e/ou psicológicas nas suas vítimas pelo resto de suas vidas.
De tão odiento, tal crime é objeto de mais de uma dezenas de tratados internacionais visando sua erradicação e punição daqueles que a praticam. Mesmo nos dias de hoje, nas guerras em curso, um dos trabalhos dos combatentes, além de derrotar os inimigos, é ocultar os crimes de guerra cometidos, notadamente a tortura.
O deputado, que quase virou embaixador do Brasil nos EUA, por possuir como credenciais o fato de saber fritar hambúrguer, que foi ou é membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e que, imagina-se, seja alfabetizado, deveria ou teria o dever de saber que o crime de tortura por sua repulsa universal, exceto por alguns torturadores sádicos e/ou pervertidos não deixa rastros ou não fácies de serem comprovados com provas documentais. Existem, inclusive, tratados dos quais o Brasil é signatário, creditando à palavra da vítima como prova.
Se o deputado é capaz de calçar-se sozinho e já não usa mais fraldas, deveria saber que se o torturador não instalou câmeras nas câmaras de torturas para depois saciar seus instintos doentios, as vítimas menos ainda – impossível, até –, teria como documentar para depois comprovar a violência que sofrera.
Talvez, por algum distúrbio que não consigo imaginar qual seja, a excelência tenha imaginado que uma vítima antes do início de uma sessão de horror, pudesse pedir licença ao torturador para instalar uma câmera de filmagem e documentar o ato. Pelo menos “selfie”, né, deputado?
Isso se não conseguir perceber que os atos de torturas aconteceram há cerca de cinquenta anos, repito.
Quando digo que o Brasil é um país doente não é por existir entre “os representantes do povo” energúmenos desta natureza ou quilate é, principalmente, porque tais asnices encontram respaldo em uma parcela significativa da sociedade.
Mesmo diante de algo tão abjeto como a tortura, encontrei diversas pessoas, muitas delas, inclusive, com mais de dois neurônios ativos, defendendo a posição do deputado, concordando com ele e exigindo que a jornalista apresentasse os “vídeos” ou outros documentos oficiais capazes de comprovar a tortura que sofrera.
Que tipo de gente é capaz disso?
Fizeram pior, cansados de questionar ou diante do ridículo de questionar uma vítima de tortura com argumentos tão bizarros, passaram a desqualificar a vítima de tortura, em complemento ao que já fizera o deputado.
Estes “humanos” utilizam de textos, “memes” e até vídeos, relatando fatos e ou circunstâncias profissionais ou de críticas a vitima que a atinge de forma lateral para desqualificação da mesma.
Na esteira do falo, vi, por estes dias, um vídeo, que acredito ser dos anos 80 ou 90, com críticas de um professor à jornalista. Tudo no script da desqualificação lateral como forma de apoio ao comportamento repugnante do deputado.
Quem faz isso? São os “cidadãos de bem”, pais de família, advogados, juízes, evangélicos, todos cidadãos que se dizem amantes e tementes a Deus, mas que não acham nada demais reproduzirem, repostarem, disseminarem, ainda que de forma lateral, ataques a uma senhora de quase setenta anos que foi vítima de tortura.
Na guerra política que não tem um dia, um minuto de trégua, há mais quatro anos, “cidadãos de bem” não enxergam qualquer mal em atacar, por ação ou omissão uma senhora de setenta anos ou de noventa anos, como fizeram há poucos dias com Fernanda Montenegro depois que ela fez críticas ao atual governo.
Que espécie de sentimento move uma multidão, ainda que virtual, para atacar uma senhora de mais noventa anos e com vasta folha de serviços prestados ao país nos mais setenta anos como atriz senão alguma psicopatia?
É como vejo o que fazem com a jornalista Miriam Leitão, como fizeram ou fazem com a atriz Fernanda Montenegro.
Vejam que mesmo uma guerra odienta como esta de Putin contra a Ucrânia encontra no doente Brasil uma multidão de defensores para justificá-la – neste caso, de diversas correntes políticas –, ao argumento de que se trata de uma “guerra defensiva”, de que a Ucrânia estaria ameaçando os russos com a produção de armas de destruição em massa ou até mesmo que seria uma batalha contra uma tal Nova Ordem Mundial - NOM, diversos tipos de maluquices a alimentar mentes doentias com teorias conspiratórias.
O pior de tudo isso é que o país não demonstra capacidade recuperar-se tão cedo.
Que o bom Deus tenha piedade de nós.
Abdon Marinho é advogado.