AbdonMarinho - NÃO SE FAZ CABO DE GUERRA COM A DEMOCRACIA.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

NÃO SE FAZ CABO DE GUERRA COM A DEMOCRACIA.


NÃO SE FAZ CABO DE GUERRA COM A DEMOC­RA­CIA.

Por Abdon Marinho.

QUANDO menino, lá no meu povoado e/​ou já na sede do municí­pio, era comum brin­car­mos de “cabo de guerra”. A brin­cadeira con­sis­tia em dividir a turma em dois gru­pos, colocá-​los em cam­pos opos­tos segu­rando um lado de uma corda; no meio de ter­reno (geral­mente um com muita areia) era feito um risco.

Cada um dos pux­ava seu lado da corda na intenção de obri­gar o grupo rival a cruzar o risco demar­catório. O grupo que con­seguisse fazer isso ven­cia a brin­cadeira.

Era comum no puxa-​puxa um grupo, mais forte, não ape­nas obri­gar o outro a cruzar o risco como, tam­bém, levá-​lo ao chão. Quando isso ocor­ria dava-​se uma algazarra com gri­tos dos “vence­dores” e da plateia – quem chegava todo sujo em casa já estava certo de levar uma “pisa” dos pais.

Eu mesmo, emb­ora zam­beta, mas com muito mais agili­dade que hoje, par­ticipei de muitos “cabos de guerra”, puxando a corda com toda a ded­i­cação e deter­mi­nação.

Pois bem, se enquanto brin­cadeira infan­til o “cabo de guerra” tinha todo o “charme” e era algo lúdico nos seus vários aspec­tos, o mesmo não se pode dizer quando tenta aplicar a mesma “brin­cadeira” à democ­ra­cia brasileira.

A cada dia assis­ti­mos, estar­reci­dos, os diri­gentes da nação, os poderes con­sti­tuí­dos da República, tratarem os negó­cios e inter­esses públi­cos como uma brin­cadeira infan­til de “cabo de guerra” onde o obje­tivo de um grupo é levar o outro ao chão, de prefer­ên­cia, até mesmo aniquilando-​o fisicamente.

Mas não se pode “brin­car” de cabo de guerra com a democ­ra­cia, pois caso assim façam não ter­e­mos um grupo vence­dor, ao con­trário, todos per­dem, a nação per­dem. Aliás, difi­cil­mente poder­e­mos falar em nação quando estiver­mos diante da aniquilação dos poderes con­sti­tuí­dos ou mesmo de algum deles.

Vejo muita “gente boa” segu­rando e puxando um dos lados da corda sem se darem conta de que não esta­mos diante de uma com­petição esportiva ou de uma brin­cadeira infan­til, mas, sim, de ati­tudes e posições que deter­mi­narão o futuro da nação – se tiver­mos uma nação depois.

O último “round” deste “cabo de guerra” diz respeito à con­de­nação pelo Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, de deter­mi­nado dep­utado fed­eral e a con­cessão de “indulto” ao mesmo pelo pres­i­dente da República, no dia seguinte ao jul­ga­mento pela Suprema Corte.

Con­de­nado no dia 20 de abril, no dia seguinte, antes mesmo da lavratura do acórdão con­de­natório, o pres­i­dente anun­ciou que estaria conce­dendo o indulto ao dep­utado de forma vol­un­tária – quer dizer, a defesa do con­de­nado não chegou a requerer.

Diver­sos ami­gos, no mesmo dia e no dia seguinte, me per­gun­taram o que achava de tudo que estava acontecendo.

A primeira coisa que me pare­ceu foi que o pres­i­dente da República bus­cou con­frontar uma decisão da mais ele­vada corte do país, tendo ou não razão, como disse ante­ri­or­mente, o que está em jogo é o futuro que quer­e­mos para o pais enquanto nação.

Um pres­i­dente da República não pode se dar ao “des­frute”, ficar “zan­gad­inho” e atrav­es­sar um decreto afrontando uma decisão judi­cial para, podemos dizer, a sua sat­is­fação pes­soal, uma vez que não havia risco imi­nente de prisão do seu “ali­ado” político. O processo, sequer, teve acórdão pub­li­cado e, após a pub­li­cação do mesmo, teria lugar out­ros recur­sos no próprio STF, sem con­tar que a própria defesa do “con­de­nado” não chegou a ingres­sar com tal pedido – e não pode­ria uma vez que o dep­utado não se encon­trava na fase de cumpri­mento de pena.

Logo me parece claro que a moti­vação do pres­i­dente foi o inter­esse pes­soal o des­borda das suas pre­rrog­a­ti­vas con­sti­tu­cionais.

Uma segunda per­gunta que me fiz­eram foi se o pres­i­dente pode­ria edi­tar tal decreto.

O indulto é uma pre­visão con­sti­tu­cional inserta no artigo 84, XII, Con­sti­tu­ição Fed­eral:

Art. 84. Com­pete pri­v­a­ti­va­mente ao Pres­i­dente da República:

XII — con­ceder indulto e comu­tar penas, com audiên­cia, se necessário, dos órgãos insti­tuí­dos em lei;

Logo não se dis­cute se o pres­i­dente pode edi­tar o decreto de indulto. A dis­cussão é se da forma que fez está cor­reto.

O Código de Processo Penal, Decreto-​Lei nº. 3.689, de 3 de out­ubro de 1941, no seu artigo 734: “Art. 734. A graça poderá ser provo­cada por petição do con­de­nado, de qual­quer pes­soa do povo, do Con­selho Pen­i­ten­ciário, ou do Min­istério Público, ressal­vada, entre­tanto, ao Pres­i­dente da Repub­lica, a fac­ul­dade de concedê-​la espon­tanea­mente”.

Tal artigo está inserto no capí­tulo que trata da Graça, do Indulto e da Anis­tia.

Vemos acima à luz de tal dis­pos­i­tivo, que o pres­i­dente pode­ria concedê-​la sem qual­quer “provo­cação”, ou seja, ao seu talante.

Surge ai, entre­tanto, o primeiro senão.

Toda essa parte do CPP encontra-​se dis­ci­plinada pela Lei de Exe­cução Penal — LEP, Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984.

As pes­soas que enten­dem do assunto muito mais do que eu sus­ten­tam que a lei nova tratar inteira­mente de deter­mi­nado assunto der­rog­a­ria a lei ante­rior. Segundo estes mes­mos enten­di­dos, a LEP, até por ser lei, ser mais nova, teria der­ro­gado aquela parte do CPP que dis­põe do mesmo assunto.

A LEP, por sua vez, trata do assunto, a par­tir do seu artigo 187, entre­tanto, sem a evo­cação da “Graça” e sem esta­b­ele­cer a pos­si­bil­i­dade do pres­i­dente da República con­ceder o indulto – que tem a pre­visão de ser indi­vid­ual –, de “ofí­cio”, basta ver o que esta­b­elece o artigo 188: “Art. 188. O indulto indi­vid­ual poderá ser provo­cado por petição do con­de­nado, por ini­cia­tiva do Min­istério Público, do Con­selho Pen­i­ten­ciário, ou da autori­dade administrativa”.

Os arti­gos seguintes do mesmo diploma, esta­b­elece como se processa e qual o rito do indulto até desaguar no decreto pres­i­den­cial.

Uma das primeiras lições de dire­ito que aprendi foi que o agente público só pode fazer aquilo que esteja em estrita obe­diên­cia à norma legal, difer­ente do agente pri­vado, que pode fazer tudo aquilo que a lei na veda.

Em out­ras palavras, em uma democ­ra­cia todos, e prin­ci­pal­mente o pres­i­dente da República que prestou jura­mento de obser­var e fazer cumprir a Con­sti­tu­ição e as leis, esta­mos sub­meti­dos ao seu império.

É dizer, o pres­i­dente pode sim edi­tar um decreto indulto indi­vid­ual ou cole­tivo – e sem­pre mel­hor que seja cole­tivo e com princí­pios gerais, sem “olhar a cara do freguês” –, mas para isso pre­cisa cumprir os req­ui­si­tos e cam­in­hos impos­tos pelas leis que a todos sub­me­tem.

Não é demais lem­brar que no Brasil, desde a sua inde­pendên­cia, mesmo no período impe­r­ial, nunca tive­mos um gov­erno abso­lutista, impondo suas von­tades acima das leis e da rit­u­alís­tica proces­sual.

Um dos arti­gos mais impor­tantes da nossa Con­sti­tu­ição, ao meu sen­tir, é o artigo 5º, lá está dito: “Art. 5º Todos são iguais per­ante a lei, sem dis­tinção de qual­quer natureza, garantindo-​se aos brasileiros e aos estrangeiros res­i­dentes no País a invi­o­la­bil­i­dade do dire­ito à vida, à liber­dade, à igual­dade, à segu­rança e à pro­priedade, nos ter­mos seguintes: ..”.

Veja o que nos asse­gura a Carta Magna: “que todos somos iguais per­ante a lei …”, logo não me parece razoável que numa república mod­erna, como a nossa, alguém “seja mais ‘igual’ que os demais em função de sua prox­im­i­dade com o gov­er­nante, coleguismo, aliança política ou algo que os valha”.

Imag­inemos, como diria o outro, se a “moda pega”. Fulano de tal e Bel­trano de tal, lá de onde judas perdeu as botas, ambos come­teram os mes­mos deli­tos, mas o primeiro, por ser “amigo” do pres­i­dente, é indul­tado e o segundo não.

Isso lhes parece razoável?

Temos exem­p­los mais con­cre­tos e palpáveis.

Algum den­tre vós acharia razoável que a pres­i­dente de então, ao tér­mino do jul­ga­mento dos envolvi­dos no processo do chamado escân­dalo do men­salão, edi­tasse um decreto, nos moldes deste que está em tela, indul­tando os con­de­na­dos pelo mesmo STF que agora tem sua decisão afrontada?

Podemos pen­sar para frente. Alguém achará razoável que o sen­hor Lula, caso seja eleito, indulte o seu ali­ado e amigo Zé Dirceu, o capitão do time do seu gov­erno, que acaba de ter sen­tenças con­de­natórias con­fir­madas pelo Supe­rior Tri­bunal de Justiça — STJ?

Diante de tudo que disse e até com base na lei uni­ver­sal da razoa­bil­i­dade, acred­ito que o pres­i­dente da República come­teu mais um crime de respon­s­abil­i­dade, pre­visto na Lei nº. 1.079, de 10 de abril de 1950, a saber: “5 — opor-​se dire­ta­mente e por fatos ao livre exer­cí­cio do Poder Judi­ciário, ou obstar, por meios vio­len­tos, ao efeito dos seus atos, man­da­dos ou sentenças”.

Acred­ito que para qual­quer pes­soa, até porque isso é algo que vem sendo pub­li­ca­mente estim­u­lado, resta claro que o pres­i­dente está a “opor-​se dire­ta­mente e por fatos ao livre exer­cí­cio do Poder Judi­ciário”.

O meu apelo e chama­mento é para que as autori­dades maiores da nação enten­dam que gov­ernar, admin­is­trar e fazer pros­perar uma nação é incom­patível com sen­ti­men­tos e inter­esses pes­soais e, sobre­tudo, com jogos infan­tis como o “cabo de guerra”.

Abdon Mar­inho é advo­gado.