A GUERRA DOS INSENSATOS.
Por Abdon Marinho.
CHAMAVA-SE Gecimon Pereira, com pouco mais de cinquenta anos, foi meu amigo de infância na cidade Gonçalves Dias no início dos anos oitenta. Estudamos juntos parte do primário e parte do ginásio, era assim que denominavam não época os primeiros anos de ensino que ia até a quarta série e os anos finais do ensino básico, de quinta a oitava série. Com outros colegas descíamos juntos logo cedo para a Unidade Castelo Branco e à noite para Colégio Bandeirantes – ambos no mesmo prédio, localizado na Praça Miguel Bahury. Muitas vezes, na parte da manhã ou da tarde, ficava comigo no comércio que meu pai montara na rua detrás para eu tomar conta.
Eram os anos oitenta de muita efervescência, angústia e esperança.
Na noite de quinta-feira, 10 de dezembro, meu sobrinho manda uma mensagem pelo WhatsApp que mais parecia um telegrama: — oi tio, boa noite! Esqueci de lhe avisar mais cedo. Mas o seu amigo Gecimon faleceu hoje. COVID. Estão esperando o corpo para fazer o sepultamento. Infelizmente o dia dele chegou. Muito triste.
Antes mesmo que tivesse tempo de dizer alguma coisa já completou: “— a cidade está comovida. Todos estão subindo para a estrada do Centro Novo para esperar o corpo dele”.
Foi assim que tomei conhecimento da perda de mais uma vida, mais um amigo, mais um conhecido, mais um ser humano, para a maldita pandemia. Desta vez de um muito querido amigo.
No dia seguinte a contagem oficial de mortos apontava para uma assombrosa soma superior a 180 mil vidas perdidas.
Como que guiados por cegos em meio à tempestade, a tragédia que toma conta do país já era anunciada desde antes de começar.
Enquanto em todos os demais países do mundo a gestão da pandemia foi tratada como uma questão de estado – a exceção é os Estados Unidos, cujo presidente é a inspiração para o daqui, e, por isso mesmo, amarga sua pior tragédia humanitária em tempos recentes, com mais de 300 mil mortos –, no Brasil virou moeda de troca de um discurso idiotizado e ideologizado em uma guerra sem fim que perdura até hoje.
Por razões que ainda desconhecemos, mas que pouco ou nada, teve de intervenção estatal, a taxa de mortalidade por milhão de pessoas ocupa uma posição intermediária, o que, usurpando méritos que não são seus, vendem com êxito no combate à pandemia.
Mentem como estão certos que o sol brilhará no dia seguinte.
O certo é que o Brasil não possuiu um plano de enfrentamento da pandemia; não possui um plano de produção de vacina e não possui, nem mesmo, uma estratégia de imunização em massa, muito embora o nosso sistema por quase meio século tenha se destacado em todo mundo.
A postura do governo federal que variou desde ao “é uma gripezinha” ao “não somos um país de maricas” tem colecionado trapalhadas culminando com a “anunciação” da parte do presidente de que pandemia “está no fim” quando testemunhamos o aumento substancial na média de mortos.
E não é só isso. Enquanto governos de outros países começam a vislumbrar uma luz no fim do túnel por conta da vacinação, o Brasil não tem nem perspectiva quando iremos começar a vacinar a população.
A razão disso é que o governo “fez pouco caso” da necessidade da vacinação. Esta, aliás, uma cantilena do presidente, seja desmerecendo as vacinas, seja colocando em dúvida sua eficácia, seja incutindo não cabeça das pessoas que as vacinas possam trazer efeitos colaterais danosos.
Do discurso ordinário à prática é um pulo.
O país não celebrou contratos visando a aquisição de vacinas em grandes quantidades nos laboratórios de sua preferência e, como resultado, estamos no “fim da fila”.
Mesmo o acordo da aliança global para produção de vacina, da qual o país é signatário, optou-se por uma cota mínima de aquisição.
O resultado do comportamento refratário do governo federal é que os brasileiros estão como cachorros em porta de galeteria: assistindo com “água na boca” os outros se vacinarem.
O pior de tudo isso é que o governo sabe que tem feito lambança.
Tanto que tenta correr “atrás do prejuízo” ao saber que o governo do Estado de São Paulo poderá iniciar a vacinação dos seus cidadãos já no dia 25 de janeiro do próximo ano – caso a vacina que está sendo produzida pelo Instituto Butantã em parceria com a empresa chinesa Sinovac seja aprovada pela Anvisa ou por algumas das agências estrangeiras, nos termos do que dispõe a legislação que rege o assunto.
Bastou o governo paulista anunciar a intenção de começar a vacinação que o governo federal lembrou-se que “tem que haver um plano nacional de vacinação” e que não “pode haver tratamento distinto entre brasileiros”. E, por fim, segundo o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, o ministro interino da Saúde, lhe teria “confidenciado” a intenção de “confiscar” a produção de vacina do Butantã – a informação é que confiscaria qualquer vacina produzida ou adquirida pelos estados –, para aplica-la dentro da “estratégia nacional de vacinação”.
Ora, me parece óbvio que todos os brasileiros devem ser vacinados dentro de uma estratégia nacional, na ordem de prioridade que se estabelece para estas situações. Entretanto, foi o próprio governo federal que, primeiro disse que iria adquirir as vacinas e depois “desdisse” gerando toda essa polêmica.
O próprio presidente, conforme relatamos aqui em um texto anterior, teria “vibrado” com o suposto insucesso da vacina que estaria sendo testada pelo consórcio Butantã/Sinovac, ignorando, inclusive, a perda de uma vida humana envolvida no acontecido, que nada tinha com a vacina em si. Isso se deu no dia em que falou da China, declarou “guerra” aos Estados Unidos e chamou os brasileiros de “maricas”.
O próprio presidente – e seus seguidores, acredito que por motivações ideológicas, embora acredite que não saiba o que é isso –, faz campanha aberta contra a vacinação e, em particular, contra a vacina produzida pelo consórcio Butantã/Sinovac.
Aí, na hora que é anunciada a produção de vacina em larga escala e se apresenta uma data para começar a vacinação, o governo federal vem falar em “estratégia nacional” e até em confisco? Quer dizer que agora querem a “vacina chinesa”? Ou falam em confisco para que ninguém seja vacinado?
Se o governo federal é esse desastre que estamos testemunhando, os governos estaduais não ficam muito atrás na condução da pandemia.
Vejamos o caso do governo paulista – que por sua relevância econômica e porque parece ser ser o mais avançado nas estratégias de combate à pandemia, inclusive com o anúncio de vacinação para janeiro próximo –, o mundo começava a vivenciar uma segunda onda da moléstia, os técnicos informam que avisaram o governo estadual da necessidade de medidas de distanciamento social, mas o governo, por conveniência política, só foi anunciar quaisquer medidas no dia seguinte após o segundo turno das eleições.
Medidas que poderiam salvar vidas.
Vejamos, também, o caso do governo maranhense.
O governador do estado se tornou uma espécie de “falador-geral da República”. Volta e meia, dia sim e no outro também, lá está sua excelência fustigando o governo federal por conta de sua inação no trato da pandemia.
Sua excelência, também, sabia que uma “segunda onda” se aproximava, todo mundo falava disso, mas o governo estadual nada fez.
Durante a campanha eleitoral, muito embora não tenha ido aos comícios de seus aliados, delegou tal missão aos secretários, inclusive o de saúde, para participarem de eventos com aglomerações, enquanto participava, devidamente “guardado” de contágios, através de videoconferência.
Mas, o mais grave estava por vir. Passados mais de um mês desde que a população da capital foi informada que o “candidato do governador” fez campanha por, pelo menos, seis dias se sabendo contaminado – e colocando em risco a vida das pessoas –, o governador que tanto se diz preocupado com a saúde do povo, não deu uma explicação sobre fato tão grave.
Aliás, deu, fechadas as urnas do primeiro turno das eleições, o governador fez questão de assumir a candidatura do “suposto criminoso” como se sua fosse; permitiu que usasse seu nome para convocar aglomerações; saudou pelas redes sociais, pelo menos, um evento de tal porte; e “passeou” pela praça com o candidato, depois que ele apresentou o atestado de sanidade, externando que aquele era o “seu” candidato; e, finda as eleições municipais, com a derrota do mesmo e ante a possibilidade vir ser “cassado” pela Assembleia, cogita dar-lhe abrigo no Poder Executivo.
Conversando com os meus botões sempre indago: será que governador não se acha devedor de uma explicação à patuleia?
O silêncio do governador e suas ações em favor de um suposto criminoso, eleva a outro patamar a máxima de “que o crime compensa”.
Embora respeitando a gradação de responsabilidades, confesso que não consigo enxergar muita diferença entre os comportamentos das autoridades federais e estaduais.
Usando uma expressão do meu saudoso pai, o que temos “são os sujos falando dos mal lavados”.
Enquanto isso, as famílias e amigos pranteiam suas perdas.
Abdon Marinho é advogado.