UM PRESIDENTE INIMPUTÁVEL.
Por Abdon Marinho.
ESTE texto foi pensado nas primeiras horas do dia 10/11, logo após saber de uma troca de uma postagem do presidente da República em resposta a um dos seus milhares de seguidores, na qual “comemorava” – a palavra correta é essa –, a determinação de suspensão, pela Anvisa, dos testes/estudos da vacina Coronavac, que é uma pareceria entre uma farmacêutica chinesa Sinovac e o Instituto Butantã.
Ainda não sabia maiores detalhes do ocorrido, mas pensei, que tipo de pessoa é capaz de vibrar com a suspensão, interrupção de estudos de uma vacina que tornou-se hoje a maior meta da humanidade diante de uma pandemia que já ceifou mais de 1,300 mil vidas em todo mundo e, só no Brasil, mais de 160 mil vidas?
Aí veio-me a ideia do texto e do primeiro título: “Um presidente na contramão da decência”. Me pareceu adequado, pois quem é capaz de colocar um interesse pessoal – no caso a quizila contra o governador de São Paulo –, à frente dos interesse da humanidade só pode “se lixar” para a decência.
Ainda naquele dia, em ato solene em pleno Palácio do Planalto voltou à carga para dizer que o “Brasil não seria um país de ‘maricas’”, numa alusão às medidas de distanciamento social e isolamento para prevenir a disseminação do novo coronavírus.
Seriam “maricas” as milhares de vítimas que sucumbiram à doença?
Foi nesta mesma fala que o presidente do Brasil, referindo-se ao presidente eleito dos EUA, Joe Biden – a quem chamou de candidato por não reconhecer o resultado das eleições americanas, pois é fã de Donald Trump e sua fidelidade a ele é superior aos interesses do país –, “declarou guerra aos Estados Unidos”, na célebre frase do cuspe e da pólvora: “se a diplomacia não resolver tem que ir para pólvora”, algo do tipo.
O palavrório desconectado da realidade, além de não ser levado a sério por ninguém – exceto por uma legião de bolsominios, tão aluados quanto o líder –, desmoraliza a posição do Brasil no cenário político internacional, o Brasil virou uma piada planetária.
Veja que no mesmo dia, o presidente da República enquanto vai ao banheiro e fica trocando impressões com seus teóricos da conspiração, que o seguem nas redes sociais, ofende a China que é o maior parceiro comercial do Brasil e encerra o dia sendo escárnio global ao “declarar guerra” aos Estados Unidos, justamente o nosso segundo parceiro comercial.
Enquanto isso escarneceu e vibrou com o “fake” insucesso da vacina, indiferente à morte de um cidadão – que morreu pelo cometimento do ato extremo, sem qualquer relação com o imunizante –, para, no mesmo dia chamar de “maricas” as mais de 160 mil vítimas da COVID-19, no nosso país, também, indiferente a dor das milhares de famílias e amigos das vítimas.
Diante disso, passei a achar que o presidente da República, não apenas é indiferente aos conceitos básicos de decência, na verdade, como uma criança de 5 anos que faz de tudo para chamar a atenção dos adultos de uma sala para si, o presidente faz o mesmo, pois enquanto isso se distrai do que de fato interessa.
Noutra palavras o presidente age, ante a semi falência institucional, como um ser inimputável.
Depois de todas essas enormidades em apenas um dia, o presidente passou a se ocupar de questionar o sistema eleitoral brasileiro, tal qual o seu ídolo do norte-americano.
Já no dia da eleição tanto o presidente da República, a quem compete o zelo pela ordem institucional, juntamente com legião de seguidores que vivem do ócio, passaram a suscitar dúvidas sobre a segurança do voto eletrônico brasileiro.
A urna eletrônica, que existe no Brasil desde 1996, sem qualquer questionamento, que vá além da a inconformação pela falta de votos, é o novo “cavalo de batalha” do presidente e sua troupe.
Esquecem que todo o processo de votação do Brasil pode ser auditado.
No início da votação se emite um relatório atestando o que tem na urna eletrônica e ao final um boletim de urna com o resultado: o número de votantes, número de votos em branco ou nulos e os votos nominais ou em legendas; urnas aleatórias são sorteadas para auditorias.
Em 24 anos, repito, exceto pelo inconformismo de alguns derrotados, nunca tivemos notícias de fraudes nas urnas eletrônicas.
Agora, por obra e graça do presidente da República, repito, a quem caberia o zelo pela regularidade institucional, passou-se a questionar o resultado do pleito e a se pregar o retorno do voto impresso.
O presidente e seus seguidores dizem que fazem esses questionamentos para tornar o sistema de votação “mais seguro”. Seria muito bom se fosse essa a intenção – ainda que neste quarto de século, com a urna eletrônica sendo submetida a todo tipo de teste de segurança, nada tenha colocado em dúvida a lisura dos pleitos –, mas sabemos que não é essa a razão.
O que move o presidente – e os seus aluados seguidores, teóricos da conspiração –, é deslegitimar a democracia brasileira e as suas instituições.
Não me surpreenderia se ao cabo das investigações se descobrissem envolvimento de interesses políticos no ataque de hackers ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE, ocorrido no dia das eleições.
Caso não seja atendido na sua vontade, quer chegar em 2022 e dizer que não sai do poder, caso perca a eleição, como agora tenta fazer o seu ídolo dos Estados Unidos.
O presidente revela-se sem freio e sem qualquer apreço ou respeito pelo que seja democracia, separação de poderes constituídos.
Agora mesmo, convidou para uma audiência, em palácio, o corregedor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por coincidência – e nada além disso –, um dos encarregados de julgar o recebimento ou não da denúncia ofertada pelo Ministério Público Estadual contra seu filho e outros por envolvimento no escândalo das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa daquele estado, quando o dito cujo, hoje senador da República, era deputado estadual.
A audiência, a pedido da Presidência, durou duas horas.
Imagino que o presidente, tão cioso da lisura e paladino da honestidade, solicitou tal audiência para tratar de assuntos que passam ao largo dos interesses processuais do filho, muito embora, seja difícil divisar que assunto teria o presidente para tratar com o corregedor.
Será que alguém acha “normal” esse tipo de audiência? Certamente que não.
Logo saberemos o objetivo da audiência. É só acompanhar o julgamento do recebimento da denúncia contra o senador/filho do presidente e verificar depois quem mudará de tribunal.
Não me recordo de fato tão grave assim em tempos recentes.
Certamente, para o presidente e seus aliados, isso nada tem demais, berrarão: “e corrupção do PT”?
Como se os pecados dos que os antecederam no poder expiassem os seus próprios pecados.
Ora, por tudo que diz e faz, tem-se que presidente é inimputável, sem noção do alcance de suas palavras ou atos. Ou alguém acha normal esse tipo de coisa?
A falta de conhecimento e aptidão faz com que busquem pautas paralelas para desviar a atenção para problemas reais, como a destruição do meio ambiente, o aquecimento global, o desemprego crescente, a estagnação econômica, pandemia, os problemas estruturais do país e tantos outros.
Essas pautas não importam. Para o presidente o importante é gerar polêmica. Agora mesmo, por conta de um assassinato brutal dentro de um supermercado, na pancada, como se fosse a coisa mais normal do mundo, o presidente, além de não se solidarizar com os familiares da vítima (e por extensão a todos os negros vítimas diárias de preconceitos) – o que não é novidade, já que nunca se solidarizou com as 170 mil famílias que perderam seus entes para a COVID, nas suas palavras, coisa de “maricas” –, abriu nova polêmica ao dizer que no Brasil não existe racismo.
Como este é um assunto a exigir um texto específico, basta dizer que o cidadão assassinado na “porrada” não o teria sido se fosse um cidadão branco, bem vestido, etc., ainda que tivesse causado confusão no empreendimento.
São coisas ditas, acredito, por ignorância, pois basta um raciocínio lógico para desmistificar a falácia.
E aí, para justificar a tolice, ficam as falanges bolsonaristas tentando desqualificar a vítima, como se qualquer delito que, porventura, tenha cometido no passado ou mesmo no presente, justificasse o fato de tê-lo o assassinato a pancadas dentro de um supermercado.
A estes, deveríamos lembrar que o direito brasileiro não comina pena de morte nem para os piores criminosos, nem mesmo para os matadores em série.
O presidente, infelizmente, não consegue fazer as distinções necessárias e acaba por embarcar nestes argumentos tacanhos, além dele próprio, ser a fonte primária de inúmeras outras ignomínias.
A explicação para isso, não existe, é apenas a inimputabilidade.
Abdon Marinho é advogado.