UMA VACINA PARA O CARÁTER.
Por Abdon Marinho.
CONTRAI a poliomielite nos meus primeiros anos de vida no início dos anos setenta, final dos sessenta, quando a moléstia começava a se expandir pelo país. Desde então, por mais de cinquenta anos ela tem sido a minha mais cruel e fiel companheira.
O Brasil registrou 26 mil casos de poliomielite de 1968 a 1989 – sou um na estatística –, tendo erradicado a doença mediante campanhas sistemáticas e eficazes de vacinação em massa de crianças, não registrando mais casos há trinta anos.
Não era assim no final dos anos sessenta e início dos setenta.
No interior, isolados e sem conhecimento, meus pais sequer sabiam o que era a minha doença, tentado fazer melhorar com remédios caseiros. Somente quando perceberam que nada fazia efeito foi que, em penosa viagem, levaram-me à Teresina, em uma viagem, parte em lombo de burro, parte em “pau de arara”.
O Maranhão não possuía estradas que prestassem e a viagem do povoado onde morávamos, no interior do Município de Governador Archer à Teresina, no Piauí, demorava uma eternidade, ainda mais no transporte da época.
Apenas lá souberam o diagnóstico da doença e que a paralisia das pernas era irreversível. Tive que aprender, novamente, a andar e a conviver com as limitações impostas pela poliomielite e suas sequelas.
Passados mais de cinquenta anos não consegui entender como o vírus da pólio me achou tão longe. Mas, o certo é que achou.
Embora a poliomielite tenha atingido minhas duas pernas, com mais intensidade, na direita. Isso não me impediu de levar uma vida praticamente normal, estudar, me formar, exercer minha profissão. De uns tempos para cá tenho sentido um enfraquecimento nas pernas e um aumento significativo na dificuldade para me locomover, mas faz parte e vamos enfrentar mais essa batalha.
Apesar de haver “vencido”, e coloco entre mil aspas o “vencido”, as dificuldades impostas pela paralisia infantil, o nome popular da poliomielite, decerto que preferia que ela não tivesse me “achado”.
Acho muito bonito e motivador os exemplos de superação de quem convive com as sequelas da poliomielite e de tantas outras moléstias – muitas até mais debilitantes que a minha –, mas, cada um sabe das suas dores e o quanto lhes custa conviver com elas.
Acredito que ninguém escolheria isso se tivesse a opção de escolha.
Tenho plena consciência que os meus pais não tiveram qualquer responsabilidade pelo que aconteceu comigo – moravam isolados no interior, sem conhecimento, informação e analfabetos por parte da pai, mãe e parteira –, assim como tenho plena convicção de que o Estado brasileiro falhou comigo. Comigo e com outros 26 mil brasileiros que foram acometidos pela poliomielite.
Uma campanha de vacinação em massa, um trabalho eficiente teria evitado que eu e tantos outros brasileiros tivéssemos que conviver com os efeitos da poliomielite pelo resto de nossas vidas, muitas das vezes sentindo o agravamento do nosso quadro com o passar dos anos.
Uma vacina, uma gotinha de vacina teria evitado tudo isso.
Pois bem, não faço essa breve digressão motivados por qualquer sentimento de autocomiseração, longe disso, sou duro, como as árvores retorcidas do sertão.
A digressão que faço é apenas para externar o meu sentimento de profunda revolta contra determinadas autoridades – seus aliados e aduladores –, que teimam, insistem, de forma despudorada, em plena pandemia, de não levarem a sério uma moléstia que já tirou milhões de vidas em um espaço de um ano e, pior que teimam em fazerem campanha contra a vacinação dos brasileiros contra a covid e/ou tratarem uma questão de saúde pública gravíssima através de um prisma ou viés ideológico.
Que tipo de humano é capaz de ser contra uma vacina ou ser contra a vacinação dos cidadãos diante de uma pandemia? Ou de qualquer outra doença?
O desrespeito de diversas autoridades pela vida dos brasileiros neste momento de tamanha aflição para aqueles que estão esperando algum conforto ante a iminência de serem a próxima vítima ou aqueles que pranteiam seus mortos é algo de fazer inveja aos melhores roteristas de filmes de terror.
O mundo ultrapassou a triste marca de dois milhões de mortes por esta pandemia, deste total, mais de 200 mil só no Brasil; ou seja, o Brasil, com menos de quatro por cento da população do planeta responde por dez por cento dos óbitos da pandemia, só perdendo em números absolutos de vítimas para os Estados Unidos, que ultrapassou as 400 mil vidas perdidas.
Enquanto assistimos o mundo inteiro se unir para vacinar seus cidadãos – a começar pelos mais vulneráveis, e já são mais de trinta milhões vacinados –, no Brasil, assistimos, repito, uma guerra política sem precedentes, como se a vida das pessoas nada mais fosse que um número nas estatísticas dos seus cálculos eleitorais.
Assistimos autoridades, seus aliados, seguidores e aduladores a fazerem campanhas, desmerecer ou “torcerem” contra uma vacina por ter sido “patrocinada” por um adversário político.
Chega a ser patético o comportamento do governo federal em relação à vacina fruto da parceria entre o Instituto Butantan e a empresa chinesa Sinovac.
Tão patético – e grave –, que o presidente da República chegou ao júbilo, lá atrás, quando um cidadão que se voluntariou para testes e, depois veio a óbito de outra causa sem relação com a vacina; ou quando ironizou o grau de eficácia da vacina, em torno de cinquenta por cento.
Acontece que foi essa a vacina que nos restou – até o momento.
Em grande parte por culpa do governo federal, que não foi atrás de parcerias com outras empresas e governo, com exceção da vacina de Oxford/Fundação Osvaldo Cruz, também, em fase de aprovação pela Anvisa, mas sem produção, no país, suficiente para iniciar a vacinação dos brasileiros.
A falta de compreensão do problema e da urgência da solução, faz o presidente dizer coisas do tipo: “os laboratórios que nos procurem, caso queiram vender para o nosso vasto mercado consumidor”.
Caso a Anvisa aprove a vacina da parceria Butantan/Sinovac – e tudo indica que vai aprovar e que a vacina é segura –, será com ela que contaremos para não ficarmos tão atrás na corrida pela imunização, tendo em vista que mais de cinquenta países já iniciaram a vacinação enquanto por aqui ainda não sabemos o dia D e a hora H.
O grau de interesse político é tamanho em torno disso que o governo brasileiro “mendiga” – sem sucesso –, umas doses de vacina junto ao governo indiano para não ter que começar a vacinação com a satanizada “vachina” chinesa, como a chamam, na intenção de desmerecê-la.
Isso tudo acontecendo enquanto uma segunda onda do vírus aumenta a intensidade de contágio e o número de vítimas.
As cenas de Manaus, no Amazonas, que correram o mundo, semana passada, não poderiam ser mais emblemáticas: no coração da floresta amazônica, considerada o pulmão do mundo, as pessoas morrendo em casa e nos hospitais por falta de oxigênio.
Uma vergonha triste e lamentável.
Mais triste e lamentável ainda é vermos a “guerra” que as mais elevadas autoridades da República travam em torno de uma vacina que poderá minimizar tanta dor e sofrimento.
Este, ainda, não é o momento, mas algum dia teremos que ajustar as contas com a história.
Os responsáveis por toda essa tragédia que acomete o Brasil precisam ser responsabilizados, nas urnas, na justiça, e pagarem por tudo que têm feito – ou que deixaram de fazer.
Não podemos esperar que respondam apenas perante o tribunal do Altíssimo.
Os culpados – e os omissos –, terão que responder por tantas vidas perdidas.
Enquanto isso não ocorre, apela-se as pessoas de bom senso que não se deixem contaminar pelo vírus da ignorância e da falta de caráter, e entendam que vacinar a população é a única alternativa correta para vencermos mais esse desafio.
Foi com a ciência, trabalhando a favor da humanidade, produzindo medicamentos e vacinas, que nos fez escapar até aqui, que fez com que mais que dobrássemos a expectativa de vida e ganhássemos mais qualidade de vida.
Os políticos genocidas e ignorantes nos legaram – e continuam legando –, as guerras, as mortes, a fome e a destruição.
Assim, tão logo as agências de controle atestarem que as vacinas são seguras e aptas para salvarem vidas, vamos nos vacinar.
Não vamos ouvir ou dá atenção para as teorias da conspiração ou discursos frutos de mesquinhos interesses pessoais.
Infelizmente, contra a ignorância não existe uma vacina eficaz.
Encerro dizendo que precisamos nos vacinar contra os maus-carácteres. Contra estes, se políticos, a melhor vacina é o voto.
Abdon Marinho é advogado.