AbdonMarinho - Uma vacina para o caráter.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Uma vacina para o caráter.

UMA VACINA PARA O CARÁTER.

Por Abdon Mar­inho.

CON­TRAI a poliomielite nos meus primeiros anos de vida no iní­cio dos anos setenta, final dos sessenta, quando a molés­tia começava a se expandir pelo país. Desde então, por mais de cinquenta anos ela tem sido a minha mais cruel e fiel com­pan­heira.

O Brasil reg­istrou 26 mil casos de poliomielite de 1968 a 1989 – sou um na estatís­tica –, tendo errad­i­cado a doença medi­ante cam­pan­has sis­temáti­cas e efi­cazes de vaci­nação em massa de cri­anças, não reg­is­trando mais casos há trinta anos.

Não era assim no final dos anos sessenta e iní­cio dos setenta.

No inte­rior, iso­la­dos e sem con­hec­i­mento, meus pais sequer sabiam o que era a minha doença, ten­tado fazer mel­ho­rar com remé­dios caseiros. Somente quando perce­beram que nada fazia efeito foi que, em penosa viagem, levaram-​me à Teresina, em uma viagem, parte em lombo de burro, parte em “pau de arara”.

O Maran­hão não pos­suía estradas que prestassem e a viagem do povoado onde morá­va­mos, no inte­rior do Municí­pio de Gov­er­nador Archer à Teresina, no Piauí, demor­ava uma eternidade, ainda mais no trans­porte da época.

Ape­nas lá sou­beram o diag­nós­tico da doença e que a par­al­isia das per­nas era irre­ver­sível. Tive que apren­der, nova­mente, a andar e a con­viver com as lim­i­tações impostas pela poliomielite e suas sequelas.

Pas­sa­dos mais de cinquenta anos não con­segui enten­der como o vírus da pólio me achou tão longe. Mas, o certo é que achou.

Emb­ora a poliomielite tenha atingido min­has duas per­nas, com mais inten­si­dade, na dire­ita. Isso não me impediu de levar uma vida prati­ca­mente nor­mal, estu­dar, me for­mar, exercer minha profis­são. De uns tem­pos para cá tenho sen­tido um enfraque­c­i­mento nas per­nas e um aumento sig­ni­fica­tivo na difi­cul­dade para me loco­mover, mas faz parte e vamos enfrentar mais essa batalha.

Ape­sar de haver “ven­cido”, e coloco entre mil aspas o “ven­cido”, as difi­cul­dades impostas pela par­al­isia infan­til, o nome pop­u­lar da poliomielite, decerto que prefe­ria que ela não tivesse me “achado”.

Acho muito bonito e moti­vador os exem­p­los de super­ação de quem con­vive com as seque­las da poliomielite e de tan­tas out­ras molés­tias – muitas até mais debil­i­tantes que a minha –, mas, cada um sabe das suas dores e o quanto lhes custa con­viver com elas.

Acred­ito que ninguém escol­he­ria isso se tivesse a opção de escolha.

Tenho plena con­sciên­cia que os meus pais não tiveram qual­quer respon­s­abil­i­dade pelo que acon­te­ceu comigo – moravam iso­la­dos no inte­rior, sem con­hec­i­mento, infor­mação e anal­fa­betos por parte da pai, mãe e parteira –, assim como tenho plena con­vicção de que o Estado brasileiro fal­hou comigo. Comigo e com out­ros 26 mil brasileiros que foram acometi­dos pela poliomielite.

Uma cam­panha de vaci­nação em massa, um tra­balho efi­ciente teria evi­tado que eu e tan­tos out­ros brasileiros tivésse­mos que con­viver com os efeitos da poliomielite pelo resto de nos­sas vidas, muitas das vezes sentindo o agrava­mento do nosso quadro com o pas­sar dos anos.

Uma vacina, uma got­inha de vacina teria evi­tado tudo isso.

Pois bem, não faço essa breve digressão moti­va­dos por qual­quer sen­ti­mento de auto­comis­er­ação, longe disso, sou duro, como as árvores retor­ci­das do sertão.

A digressão que faço é ape­nas para externar o meu sen­ti­mento de pro­funda revolta con­tra deter­mi­nadas autori­dades – seus ali­a­dos e adu­ladores –, que teimam, insis­tem, de forma despu­do­rada, em plena pan­demia, de não levarem a sério uma molés­tia que já tirou mil­hões de vidas em um espaço de um ano e, pior que teimam em faz­erem cam­panha con­tra a vaci­nação dos brasileiros con­tra a covid e/​ou tratarem uma questão de saúde pública gravís­sima através de um prisma ou viés ide­ológico.

Que tipo de humano é capaz de ser con­tra uma vacina ou ser con­tra a vaci­nação dos cidadãos diante de uma pan­demia? Ou de qual­quer outra doença?

O desre­speito de diver­sas autori­dades pela vida dos brasileiros neste momento de tamanha aflição para aque­les que estão esperando algum con­forto ante a iminên­cia de serem a próx­ima vítima ou aque­les que pran­teiam seus mor­tos é algo de fazer inveja aos mel­hores roter­is­tas de filmes de terror.

O mundo ultra­pas­sou a triste marca de dois mil­hões de mortes por esta pan­demia, deste total, mais de 200 mil só no Brasil; ou seja, o Brasil, com menos de qua­tro por cento da pop­u­lação do plan­eta responde por dez por cento dos óbitos da pan­demia, só per­dendo em números abso­lu­tos de víti­mas para os Esta­dos Unidos, que ultra­pas­sou as 400 mil vidas per­di­das.

Enquanto assis­ti­mos o mundo inteiro se unir para vaci­nar seus cidadãos – a começar pelos mais vul­neráveis, e já são mais de trinta mil­hões vaci­na­dos –, no Brasil, assis­ti­mos, repito, uma guerra política sem prece­dentes, como se a vida das pes­soas nada mais fosse que um número nas estatís­ti­cas dos seus cál­cu­los eleitorais.

Assis­ti­mos autori­dades, seus ali­a­dos, seguidores e adu­ladores a faz­erem cam­pan­has, desmere­cer ou “torcerem” con­tra uma vacina por ter sido “patroci­nada” por um adver­sário político.

Chega a ser patético o com­por­ta­mento do gov­erno fed­eral em relação à vacina fruto da parce­ria entre o Insti­tuto Butan­tan e a empresa chi­nesa Sino­vac.

Tão patético – e grave –, que o pres­i­dente da República chegou ao júbilo, lá atrás, quando um cidadão que se vol­un­tar­iou para testes e, depois veio a óbito de outra causa sem relação com a vacina; ou quando ironi­zou o grau de eficá­cia da vacina, em torno de cinquenta por cento.

Acon­tece que foi essa a vacina que nos restou – até o momento.

Em grande parte por culpa do gov­erno fed­eral, que não foi atrás de parce­rias com out­ras empre­sas e gov­erno, com exceção da vacina de Oxford/​Fundação Osvaldo Cruz, tam­bém, em fase de aprovação pela Anvisa, mas sem pro­dução, no país, sufi­ciente para ini­ciar a vaci­nação dos brasileiros.

A falta de com­preen­são do prob­lema e da urgên­cia da solução, faz o pres­i­dente dizer coisas do tipo: “os lab­o­ratórios que nos pro­curem, caso queiram vender para o nosso vasto mer­cado con­sum­i­dor”.

Caso a Anvisa aprove a vacina da parce­ria Butantan/​Sinovac – e tudo indica que vai aprovar e que a vacina é segura –, será com ela que con­tare­mos para não ficar­mos tão atrás na cor­rida pela imu­niza­ção, tendo em vista que mais de cinquenta países já ini­cia­ram a vaci­nação enquanto por aqui ainda não sabe­mos o dia D e a hora H.

O grau de inter­esse político é tamanho em torno disso que o gov­erno brasileiro “mendiga” – sem sucesso –, umas doses de vacina junto ao gov­erno indi­ano para não ter que começar a vaci­nação com a satanizada “vachina” chi­nesa, como a chamam, na intenção de desmerecê-​la.

Isso tudo acon­te­cendo enquanto uma segunda onda do vírus aumenta a inten­si­dade de con­tá­gio e o número de víti­mas.

As cenas de Man­aus, no Ama­zonas, que cor­reram o mundo, sem­ana pas­sada, não pode­riam ser mais emblemáti­cas: no coração da flo­resta amazônica, con­sid­er­ada o pul­mão do mundo, as pes­soas mor­rendo em casa e nos hos­pi­tais por falta de oxigênio.

Uma ver­gonha triste e lamen­tável.

Mais triste e lamen­tável ainda é ver­mos a “guerra” que as mais ele­vadas autori­dades da República travam em torno de uma vacina que poderá min­i­mizar tanta dor e sofri­mento.

Este, ainda, não é o momento, mas algum dia ter­e­mos que ajus­tar as con­tas com a história.

Os respon­sáveis por toda essa tragé­dia que acomete o Brasil pre­cisam ser respon­s­abi­liza­dos, nas urnas, na justiça, e pagarem por tudo que têm feito – ou que deixaram de fazer.

Não podemos esperar que respon­dam ape­nas per­ante o tri­bunal do Altís­simo.

Os cul­pa­dos – e os omis­sos –, terão que respon­der por tan­tas vidas per­di­das.

Enquanto isso não ocorre, apela-​se as pes­soas de bom senso que não se deixem con­t­a­m­i­nar pelo vírus da ignorân­cia e da falta de caráter, e enten­dam que vaci­nar a pop­u­lação é a única alter­na­tiva cor­reta para vencer­mos mais esse desafio.

Foi com a ciên­cia, tra­bal­hando a favor da humanidade, pro­duzindo medica­men­tos e vaci­nas, que nos fez escapar até aqui, que fez com que mais que dobrásse­mos a expec­ta­tiva de vida e gan­hásse­mos mais qual­i­dade de vida.

Os políti­cos geno­ci­das e igno­rantes nos legaram – e con­tin­uam legando –, as guer­ras, as mortes, a fome e a destru­ição.

Assim, tão logo as agên­cias de con­t­role atestarem que as vaci­nas são seguras e aptas para sal­varem vidas, vamos nos vaci­nar.

Não vamos ouvir ou dá atenção para as teo­rias da con­spir­ação ou dis­cur­sos fru­tos de mesquin­hos inter­esses pes­soais.

Infe­liz­mente, con­tra a ignorân­cia não existe uma vacina efi­caz.

Encerro dizendo que pre­cisamos nos vaci­nar con­tra os maus-​carácteres. Con­tra estes, se políti­cos, a mel­hor vacina é o voto.

Abdon Mar­inho é advo­gado.