UMA BABEL CHAMADA BRASIL.
Por Abdon Marinho.
REFLETIR é algo desafiador. Na quietude da manhã aqui no sítio, enquanto alimentava os peixes, recordava de alguns ensinamentos do meus saudoso pai.
Pensava na situação que atravessa o país e lembrava de um dos seus ensinamentos dito com a singeleza dos analfabetos por parte de pai, mãe e parteira: “em casa que falta pão, todos falam, mas ninguém tem razão”.
Na casa Brasil falta pão. Não o pão que sacia o estômago vazio. Falta o pão da decência, o que sacia o caráter e a honra. Isso faz com muitos falem, muitos gritem, mas, ao final, trata-se apenas do “sujo falando do mal lavado”, para usar outro ensinamento de um passado que, graças à degradação moral dos dias atuais, parece-nos tão distante.
Uma das polêmicas da semana anterior a esta que finda – entre tantas –, foi o quiproquó envolvendo um deputado federal e o Supremo Tribunal Federal – STF, a maior instância do Poder Judiciário no país.
A Babel na qual transformou-se o país criou uma situação inusitada. O deputado federal, indiferente a qualquer norma de decoro, foi à tribuna da internet e insultou os ministros do STF de tudo que poderia insultar. Da insinuação de vendilhões de decisões judiciais a aspectos da vida privada das excelências, como a ilação de que um determinado ministro não teria “culhão roxo” pois na verdade preferiria o “culhão roxo” de outrem.
Além das ofensas de cunho pessoal, a excelência pregou o fechamento daquele poder e/ou a substituição dos onze ministros, que segundo ele, não serviriam para “p. nenhuma” e o retorno de instrumentos da ditadura militar.
Uma linguagem rasteira e ofensiva inapropriada, inclusive, para ser usada em bordeis de beira de estrada quanto o mais para serem proferidas por dignatário representante do povo.
Vivêssemos outros tempos, o saudoso tempo em que havia decoro e honra, era para o – ou os –, ofendidos desafiarem o ofensor para um duelo e resolverem a questão (ou treta, como se diz hoje), de forma definitiva.
Como somos civilizados, tornou-se “feio” falar que a honra só pode ser lavada com sangue, como no tempo dos nossos avós.
Sem o receio de ser chamado para um duelo e usando como escudo o mandato parlamentar, o deputado disse o que disse – certo da impunidade –, e antes, segundo dizem, feito o que fez, como por exemplo, ser um dos patrocinadores dos manifestos que pediam o fechamento do Congresso Nacional, do qual faz parte, e do Supremo Tribunal Federal - STF; a defesa de um golpe militar e o ressurgimento de instrumentos da ditadura, como o Ato Institucional nº. 05, que fechou o parlamento, aposentou ministros, exilou, prendeu e torturou cidadãos e do qual os cidadãos brasileiros não tem nenhuma saudade.
O deputado até achou “fofo”, no seu discurso na internet, “brincar” com o AI-5, que trouxe o período mais sombrio da ditadura ao Brasil.
O título I da Constituição Federal traz os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.
No artigo 1º., diz que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, tendo por fundamento: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
Ainda dentro dos princípios fundamentais, o artigo 2º, estabelece: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
O título II da Constituição Federal trata dos direitos e garantias fundamentais. No inciso X do artigo 5º, consta: “X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
É certo, também, que o artigo 53 da mesma Constituição estabelece que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
E, ainda que o artigo 5º, IV, estabelece que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, artigo 4º, §3°, consta que os deputados federais para assumirem o mandato prestam o seguinte compromisso: "Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
Considerando que o deputado prometeu manter, defender a Constituição, promover o bem geral do povo brasileiro é a sustentar a união, estaria o seu comportamento em consonância com os ditames constitucionais?
Quer dizer, poderia ele – ainda que escudado no manto da imunidade previsto no artigo 53 ou da liberdade de expressão, consagrado no artigo 5º, IV –, defender a supressão de um dos Poderes da República? Atentar contra a dignidade da pessoa humana na pessoa dos ministros que foram pessoalmente atacados? Ou violar-lhes a intimidade, a vida privada, a sua honra e imagem?
Vejam que a mesma Constituição que garante a imunidade parlamentar e liberdade de expressão é mesma Constituição que protege os cidadãos, assegurando-lhes a inviolabilidade à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem; é a mesma que estabelece que poderá da união são independentes e harmônicos entre si; e ainda que a república é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Abstrai-se os nomes dos ministros e pergunte se é razoável que o cidadão investido num mandato de deputado federal ou estadual ou senador, pode atentar contra a sua intimidade, a sua vida privada, a sua imagem e a sua honra.
Noutras palavras, poderia o deputado chamar-me de “filho de uma égua” e ficar por isso mesmo porque tem imunidade parlamentar e lhe é garantido a liberdade de expressão?
E ainda, poderia o parlamentar, com fundamento na imunidade parlamentar e na liberdade de expressão, garantidos por uma constituição democrática, se erguer contra outros direitos assegurados aos demais cidadãos e contra a própria República?
Vejam que coisa interessante neste episódio, o deputado alegando a plena liberdade democrática atentado contra a própria democracia e as garantias de outros e, por outro lado, o Supremo Tribunal Federal - STF, valendo-se de um instrumento da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional, para constranger e punir o deputado federal em pleno regime democrático.
Ah, então você defende que o STF agiu com acerto ao determinar a prisão em flagrante do parlamentar por conta de sua pregação insultuosa e anti-democrática? Não, em absoluto.
Por outro lado, entendo que a discussão não pode ser travada no clima de disputa eleitoral.
A decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, inicialmente por um dos seus membros, confirmada depois pela unanimidade dos ministro, divide juristas, o que em tese, lhe retira a pecha de teratológica, ou seja, absurda, encontrou largo apoio da imprensa, em tese, novamente, a principal destinatária da decisão por colocar em xeque a “liberdade de expressão”, e, até mesmo de 364 parlamentares que, nos termos da constituição, referendaram a prisão do colega parlamentar.
Logo, por mais que se discorde e questione a decisão do STF, pelos apoios alcançados pela mesma no seio da sociedade, entre juristas de respeito, dos veículos de comunicação social, dos jornalistas, em particular, e da folgada maioria dos deputados federais, a quem compete aprovar esse tipo medida, devemos ponderá-la com o máximo de cautela e, inclusive, quando ao aspecto de tê-la sido adotada como forma de “proteção” da democracia brasileira.
Em data bem recente um dos ministros do STF externou a uma emissora de televisão que os atos promovidos ao longo de 2019 e 2020 contra os poderes da República estariam sendo patrocinados por agentes estrangeiros interessados na desestabilização do país.
Vejam a gravidade da situação: atos públicos que poderiam se dizer uma livre manifestação de insatisfação contra os poderes constituídos e dos quais participou até o presidente da República, estariam patrocinados por agentes estrangeiros.
O ministro diz que o Supremo Tribunal Federal possui provas de tal circunstância.
Essa digressão lateral ao assunto principal texto também serve para corroborar ao clima de Babel que toma conta do país.
Como dito anteriormente, um deputado federal fazendo uso dos instrumentos da democracia – conquistada à duras penas –, defende em atos e vídeos o fim da democracia, com fechamento de poderes ou substituição de seus integrantes – antes do último episódio, em atos que contou com a participação do próprio presidente do país –, e, de outro lado, um Supremo Tribunal que faz uso dos instrumentos da ditadura, como no caso da Lei de Segurança Nacional, para, segundo ele, defender a democracia.
Poder-se-ia achar que ao Supremo Tribunal assistiria plena razão, entretanto, vê-se claramente, na raiz das medidas, uma tentativa de recuperar o amor próprio que foi se esvaindo ao longo do tempo por sua própria culpa.
Muito pior que um deputado maluco e com sede de aparecer e atacar publicamente o tribunal e seus ministros é saber que no seio da sociedade uma larga parcela de cidadãos concorda com tudo que foi dito e até com o forma como foi dito.
E volto às palavras de meu pai: “respeito não é algo que lhe dão ou algo que você possa impor, o respeito é algo que se conquista”.
O STF, digo com pesar, foi perdendo essa respeitabilidade. Seja porque muitos dos ministros resolveram seguir carreira paralela à de ministro; seja porque não se aquietam em manifestar-se apenas nos autos; seja porque foram “colocados” para atenderem aos interesses de quem os indicou; seja porque se tornaram escravos de suas próprias contradições; seja porque não se dão respeito ao proferirem decisões conforme as conveniências do momento.
Quantas vezes não vimos o STF decidir situações idênticas de forma distintas?
A sociedade brasileira precisa ficar atenta a esses movimentos das instituições, perdendo essa visão maniqueísta de que existe uma luta do bem contra o mal, filiando-se a uma ou outra conforme sua própria visão de mundo ou de interesse.
Na verdade, o que vivemos no Brasil é um filme de terror onde o mocinho – se existiu –, morreu logo na primeira cena e ninguém se deu conta disso.
A luta de poder no Brasil é um filme sem mocinhos, só bandidos – e todos querendo tirar o melhor proveito da situação.
Agora mesmo as excelências do Congresso Nacional tramam uma emenda constitucional que lhes dá uma licença para roubar sem serem molestados.
A tal PEC da imunidade parlamentar nada mais é do que um “salvo-conduto” para as excelências desafiarem toda legislação criminal do país sem qualquer temor.
Será que a sociedade deve se calar diante de tamanho acinte só porque as excelências colocarão na constituição que agora poderão roubar sem serem importunados?
Isso é assunto para um outro texto.
Abdon Marinho é advogado.