OS MUNICÍPIOS E A ESPADA DE DÂMOCLES.
Por Abdon Marinho.
QUANDO o risco é tão iminente que o simples fato de acordarmos bem já é motivo de agradecimentos pelo milagre da vida, acabamos por esquecer de diversos outros assuntos menos importantes, porém relevantes para o cotidiano dos cidadãos.
Desde o ano passado que escrevo, faço vídeos ou “lives”, primeiro sobre o processo eleitoral e, depois, sobre o início das gestões públicas.
Apesar disso, como disse, talvez tomado pelo sentimento de urgência que é estarmos vivos, acabei por esquecer de registrar as dificuldades em série que vem enfrentando, sobretudo, os novos gestores, neste início de gestão.
São exigências e mais exigências do órgãos de controle e fiscalização; suspensão/anulação de licitações; recomendações, muitas das vezes descabidas ou fora do contexto da realidade enfrentadas pelos municípios, etceteras.
O certo é que muitos prefeitos de “primeira viagem” e comprometidos em fazer uma boa gestão, encontram-se se perdidos, muitos com a administração “travada”, sem saberem o que fazer, ainda mais diante do fato de estarmos em plena pandemia.
Uma das primeiras coisas que aprendi na faculdade de direito foi a temperança na análise das normas jurídicas.
O professor Alberto Tavares sempre dizia que as normas eram direcionadas pessoas comuns e, para elas, deveriam parecer razoáveis, daí a necessidade de serem analisadas “cum grano salis”, no sentido de que deveríamos analisá-las e/ou colocá-las em prática com prudência.
Diante disso, preocupou-me a série de liminares expedidas pelo TCEMA, suspendendo e/ou cancelando licitações atendendo as solicitações dos órgãos de controle, bem como, recomendações destes organismos de controle e do próprio Ministério Público para que os municípios adotem preferencialmente o pregão eletrônico para as contratações públicas, inclusive as de engenharia independente das fontes de recursos públicos envolvidos, entre diversas outras coisas.
Sei que estes órgãos de controle e fiscalização fazem essas coisas nas melhores das intenções. Sei, também, que uma parte das exigências – exceto pelas ampliações –, tem respaldo na lei, e ainda, que as exigências, recomendações, suspensões e anulações visam atender o interesse público.
Por outro lado, não podemos deixar de fazer algumas ponderações, a história do “cum grano salis”, que aprendemos no primeiro ano de faculdade.
Sem entrar no mérito das decisões já tomadas ou que estão para ocorrer, me permito tecer alguns comentários com base no que ouvi.
Um dos motivos para que muitos processos licitatórios fossem suspensos e/ou cancelados teria sido pelo fato dos mesmos não sido disponibilizados a tempo e modo no sistema de acompanhamento do TCEMA, o tal do SACOP.
Segundo soube, em muitos dos casos, isso se deu por conta da demora do próprio órgão em cadastrar e disponibilizar as senhas de acesso aos gestores e/ou encarregados.
Noutras palavras, os municípios estariam sendo penalizados por algo que não deram causa.
Um outro problema decorrente disso e que talvez não tenha se dado conta, é que, com a suspensão dos processos e com demora na emissão de uma decisão definitiva, os municípios ficam em um impasse: cancelam? Os serviços ou materiais prestados ou fornecidos serão pagos?
Ora, tive notícia de municípios em que o tribunal mandou cancelar mais uma dezenas de licitações, justamente aquelas essenciais de início de gestão, sem as quais nada no município funciona: limpeza pública, medicamentos, combustíveis, etc.
Tais situações causam enormes transtornos aos municípios e prejuízos, talvez bem maiores, do que o interesse público que se pretende proteger.
Vejamos um exemplo: a empresa, no início do ano venceu a licitação, que um ou dois meses depois foi suspensa pelo tribunal, o que impede o empresário de requerer na justiça o reconhecimento de que houve ruptura unilateral do contrato, buscar o pagamento do serviço prestado e/ou bens entregues e, ainda, pleitear lucros cessantes, pagamento de honorários advocatícios, etc.?
Será que ao término de tudo não terá sido muito mais prejudicial ao contribuinte do que se não tivessem pleiteado, suspenso ou anulado tal contrato? Não seria muito melhor para o interesse público apenas que “vigiassem” a sua execução?
O outro assunto do texto – esse sim, motivo de verdadeira preocupação –, é a “recomendação/exigência” para que “tudo” seja contratado através de pregão eletrônico.
Quero dizer, de antemão, que mesmo a existência de leis, decretos, instruções normativas, ou quaisquer outros instrumentos neste sentido estão equivocados e deveriam ser objeto de mobilização visando as suas anulações ou revogações.
Não questiono que seja uma forma transparente, eficaz, e todas outras vantagens apresentadas para os seus defensores, acho, inclusive, que deve ser o meio a ser adotado pelo governo federal e pelos estados, mas não pelos municípios, ainda mais do nordeste e do Maranhão.
Explico o motivo.
A maioria dos municípios – algo próximo de cem por cento –, sobrevivem as custas dos repasses obrigatórios e/ou voluntários das outras esferas estatais, são estes recursos públicos que fazem as economias locais “girarem”.
Quando se impõe a exigência de que as contratações sejam realizadas na modalidade de pregão eletrônico, está se abrindo a possibilidade de empresas do país inteiro participarem e ganharem estes contratos com base no critério melhor proposta financeira.
Noutras palavras, os recursos públicos que serviriam para alavancar a economia local, senão todo, mas pelo menos sua maior parte, vai sair do município e, até mesmo, do estado.
Não falo aqui, nem da impossibilidade que muitas empresinhas dos municípios terão em participar dos certames, seja por não dominarem as ferramentas, seja porque a internet deixa a desejar, seja porque muitas não possuem condições de competirem com grandes empresas.
Uma outra coisa que entendo como equivocada é que além do certame ocorrer por pregão eletrônico – aberto à participação de todos do país –, deve, obrigatoriamente, ocorrer por item, ou seja, pode ser que uma empresa do Paraná ganhe para fornecer açúcar, outra do Rio Grande Sul ganhe para fornecer a carne, uma outra de São Paulo, ganhe para fornecer o feijão, e por aí vai.
A tudo isso, some-se a dificuldade para os municípios despenderem pessoal para administrarem tantos contratos – a maioria não tem pessoal e, quando tem, falta-lhes a qualificação –, corre-se o fundado risco de um dia ter um item e não ter o outro.
Mais uma vez, faz-se necessário examinarmos tal ideia “cum grano salis”, pois sopesado tudo é bem possível que o “barato saia mais caro”.
Lembro que há alguns anos tentou-se fazer justamente o contrário: incentivar o poder público a contratar nos próprios municípios.
Na época, acho que há uns dez anos, fizemos inúmeras leis de incentivos para as micro e pequenas empresas.
Acredito que o caminho seja esse: “favorecer” as empresas dos próprios municípios na contratação com o poder público fazendo com que os recursos repassados pelos entes federados girem as economias locais, gerem empregos, desenvolvimento, etc.
Como disse no início, não ignoro as boas intenções dos que defendem como forma de contratação do poder público a modalidade do pregão eletrônico, entretanto, advogo no sentido de que se examine o “filme completo”: as consequências para as economias locais.
Há mais de vinte anos que trabalhamos com municípios e sabemos que ao longo dos anos eles foram empobrecendo.
Quando os números do IBGE apontam que o Maranhão ficou mais pobre, que estamos na rabeira de tudo quanto é indicador, eles apenas trazem uma constatação que já vínhamos fazendo ao longo do tempo: são os municípios e as pessoas que neles habitam que estão mais pobres.
As políticas oficiais, as leis, os decretos, devem se voltar para incentivar as economias locais, a circulação dos recursos nos próprios municípios e não o contrário, em nome de uma suposta economia de alguns trocados ou de uma transparência ou mesmo lisura dos certames.
Ora, basta que fiscalizem, que acompanhem de perto.
O que não podem, em nome das melhores das intenções, que sei possuírem, incentivarem o aniquilamento das já frágeis economias municipais e gerarem mais pobreza extrema.
Na minha opinião, tudo que os gestores puderem contratar dentro dos seus municípios, devem ser estimulados a fazerem – e não o contrário. Não cobrados para facilitarem que os recursos que deveriam geram emprego e renda nos seus municípios faça isso em outros municípios ou estados.
Da compra de secos e molhados a aluguel de veículos, contratação de empresas de engenharia para obras públicas, etc. devem ser feitas onde gerem renda e empregos para os donos dos recursos: os cidadãos.
Os órgãos de controle e fiscalização que façam o seu trabalho, verifiquem a lisura dos procedimentos, a execução dos objetos e tudo mais que queiram.
O que não podem é, em nome de suas comodidades, serem agentes promotores da miséria do povo.
Abdon Marinho é advogado.