FALTA JUÍZO A REPÚBLICA.
Por Abdon Marinho.
UM ANO e trezentos mil mortos depois o presidente da República chamou uma reunião entre as autoridades dos três poderes, alguns governadores e outras autoridades.
A ideia seria, ao menos em tese, criar um comitê central visando acompanhar a evolução da pandemia, centralizar as discussões sobre o tema e apresentar soluções à mais grave crise sanitária pela qual passa a humanidade em séculos.
Os otimistas saudaram com júbilo a iniciativa. Pensou-se: finalmente o bom Deus restaurou o juízo nas cabeças das autoridades.
Era engano, Deus, provavelmente, tem coisas mais importantes para acompanhar ou já chegou à conclusão de que as autoridades brasileiras são um caso perdido.
Poucos dias depois e mais trinta mil cadáveres à conta da desgraça, já assistiu-se de tudo, menos que teremos autoridades preocupadas com sorte (azar) dos cidadãos.
Já no dia da primeira reunião do tal comitê, enquanto, alguns dos seus membros recomendavam o uso de máscaras e o distanciamento social e outras medidas, viu-se o suposto presidente da República que, em tese, deveria ser o primeiro a procurar seguir as recomendações do comitê por ele criado, bradar contra tais recomendações.
Muito além das palavras e exemplos sabotadores da saúde da nação partiram para atos concretos: a Advocacia-Geral da União - AGU, que deveria se ocupar dos interesses da nação, foi bater às portas do Supremo Tribunal Federal - STF, para pedir a “liberação” de cultos e missas presenciais.
Ao tomar conhecimento da ação a primeira coisa que me veio à cabeça foi: o que “diabos” o governo tem a ver com esse assunto? As igrejas, caso se sintam prejudicadas, não poderiam elas próprias, “baterem” às portas do STF? Como Deus é onipotente, onisciente e onipresente, precisaria dos templos abertos e aglomerados para ouvir o clamor do povo? O que o governo tem a ver com dízimo arrecadado pelas igrejas já que sobre eles não recaem qualquer tributação?
O Papa que, segundo dizem, conversa diretamente com Ele, tem feito todas suas celebrações da Páscoa, no Estado do Vaticano, onde é a autoridade máxima, com os templos vazios. E, é provável que Deus não tenha se “zangado” com isso.
Se o Papa pode fazer assim, por qual motivo o pastor ou o padre da minha paróquia não pode fazer do mesmo jeito?
Mal me recuperara do susto de testemunhar o governo ir ao Supremo defender uma causa que nem a Deus deve interessar – pois aprendi que Deus é amor e bondade –, foi a vez de assistir, escandalizado, o Procurador-geral da República, emitir parecer assentindo com a pretensão do governo.
Na comunhão de interesses tão subalternos ao que defende o presidente da República, talvez não exista uma causa cristã, mais sim, a vaidade que talvez os leve ao inferno: a próxima vaga de ministro do Supremo a vagar em 5 de junho, com a aposentadoria do ministro decano Marco Aurélio Mello.
Na mesma semana em que se falou tanto em união e soma de esforços para vencer a pandemia e superar a crise dela advinda, vimos o Congresso Nacional, aprovar um orçamento anual, que onze de dez economistas dizem tratar-se de uma peça de ficção, feito sob medida para preservar as famosas emendas dos parlamentares que, indiferentes às contas públicas e aos interesses do povo, querem é um pedaço do orçamento para “chamar de seu”.
Vimos, também, “comerem” o orçamento do IBGE e que tinha como destino o censo decenal, o principal instrumento de planejamento do país.
Assim, em plena crise, não vemos ninguém preocupado com o país, mas sim, em “tirar um pedaço” para si – indiferente do sofrimento do povo.
E a semana que deveria ser Santa, acaba com o mais novo ministro do Supremo, nomeado pelo atual presente, coincidentemente, convergir no interesse do governo, através da sua AGU, da PGE e do próprio presidente, para deferir uma liminar autorizando o funcionamento dos templos e igrejas, contrariando decisão do pleno do STF, que decidiu pela competência dos estados e municípios em fixarem tais normas no interesse de debelar a crise sanitária.
A decisão do ministro Nunes Marques ocorre nos autos de uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposto por uma Associação Nacional de Juristas Evangélicos.
O assunto pareceu tão urgente e relevante que a liminar foi concedida entre a Sexta-feira Santa e o Sábado de Aleluia.
Não teria sido tão rápida se fosse um pedido para impedir a crucificação de Cristo.
Aliás, tramitação mais rápida só aquela em que Pilatos usou para condenar Jesus.
Como dito anteriormente não são iniciativas movidas pela fé ou pelo zelo das coisas de Deus. Têm sim, a motivação dos interesses pessoais e a sabujice de quem se sente devedor de algo ao nomeador.
Para agradar ao chefe, se esse os pedisse para deixar de respirar, certamente deixariam, ainda que isso lhes custassem a vida.
Desacertos, incompetência e crimes têm pontuado a atuação das autoridades da República na condução da pandemia.
Estes “desacertos” se reflete no número de vidas perdidas, de famílias enlutadas e no sofrimento dos brasileiros.
Na quarta-feira, dia 31 de março, uma semana após à reunião de criação do suposto comitê, o Brasil, sozinho, registrou 30% (trinta por cento) dos mortos pela pandemia no mundo. O Brasil, que responde por apenas 2,7% (dois vírgula sete por cento) da população mundial.
Já são mais 330 mil vidas perdidas e os estudiosos projetam que no ritmo em que as coisas estão indo por aqui, só no mês de abril, perderemos mais 100 mil vidas, para acumularmos 430 mil vidas perdidas ao término de um mês.
Quantos brasileiros mais terão que morrer até as autoridades da República assumam as suas responsabilidades e passem a dirigir o país? Quinhentos mil? Um milhão de vidas perdidas? Vão continuar agindo como fizeram até aqui? Será que não perceberam que há muito essa baderna deixou de ser somente política, guerra ideológica e que o que estão fazendo é um crime contra a humanidade?
Existem alguns números que dizem muito sobre o que acontece no Brasil e sobre o desserviço que nossas autoridades vêm prestando à patuleia.
Numa escala de proporção, se a Austrália fosse dirigida pelo governo brasileiro, eles estariam com aproximadamente 25 mil mortos, lá morreram 906 durante um ano; se a Nova Zelândia fosse governada pelo governo brasileiro, eles estariam com cerca de 5 mil mortos, lá morreram, em um ano de pandemia, 26 pessoas e a vida já está voltando ao “normal”; se a Índia fosse governada pelos dirigentes do Brasil, estariam chorando a perda de 2 milhões de indianos, por lá morreram, até aqui, menos da metade dos que morreram no nosso país.
A Índia, uma nação superpovoada, com mais de um bilhão e trezentos milhões de pessoas, com condições sanitárias de todos conhecidos ao redor do mundo, com milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza, apresenta uma perfomance melhor do que a nossa na condução e combate à pandemia.
Com todas as suas dificuldades não é a Índia ou as nações africanas, com sua pobreza milenar, o centro das preocupações do mundo, é o Brasil.
O nosso país fez tudo que podia fazer de errado – e continua fazendo.
Um ano depois de iniciada a pandemia, registrando mais 330 mil vidas perdidas, a maior tragédia da nossa história e as autoridades mais voltadas em fazer política, em se preocupar com as eleições do ano que vem, com a vacância das vagas no Supremo, em adular o atual presidente da República.
Vemos advogado-geral da União, procurador-geral da República, ministro do Supremo, preocupados em atender o desejo do presidente da República para que não minguem seus votos nas eleições presidenciais do ano que vem.
Vemos parlamentares que deveriam se associarem aos esforços da nação para enfrentar a pandemia e depois em recuperar a economia do país, mais preocupados em garantir suas emendas, em fazerem “caixa” para suas eleições.
Tudo isso enquanto o país mergulha em dificuldades de todos os tipos.
Falta juízo e responsabilidade a República.
Abdon Marinho é advogado.