AbdonMarinho - Uma Babel chamada Brasil.
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Domingo, 22 de Setem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Uma Babel chamada Brasil.

UMA BABEL CHAMADA BRASIL.

Por Abdon Marinho.

REFLE­TIR é algo desafi­ador. Na qui­etude da manhã aqui no sítio, enquanto ali­men­tava os peixes, recor­dava de alguns ensi­na­men­tos do meus saudoso pai.

Pen­sava na situ­ação que atrav­essa o país e lem­brava de um dos seus ensi­na­men­tos dito com a sin­geleza dos anal­fa­betos por parte de pai, mãe e parteira: “em casa que falta pão, todos falam, mas ninguém tem razão”.

Na casa Brasil falta pão. Não o pão que sacia o estô­mago vazio. Falta o pão da decên­cia, o que sacia o caráter e a honra. Isso faz com muitos falem, muitos gritem, mas, ao final, trata-​se ape­nas do “sujo falando do mal lavado”, para usar outro ensi­na­mento de um pas­sado que, graças à degradação moral dos dias atu­ais, parece-​nos tão dis­tante.

Uma das polêmi­cas da sem­ana ante­rior a esta que finda – entre tan­tas –, foi o quipro­quó envol­vendo um dep­utado fed­eral e o Supremo Tri­bunal Fed­eral – STF, a maior instân­cia do Poder Judi­ciário no país.

A Babel na qual transformou-​se o país criou uma situ­ação inusi­tada. O dep­utado fed­eral, indifer­ente a qual­quer norma de decoro, foi à tri­buna da inter­net e insul­tou os min­istros do STF de tudo que pode­ria insul­tar. Da insin­u­ação de vendil­hões de decisões judi­ci­ais a aspec­tos da vida pri­vada das excelên­cias, como a ilação de que um deter­mi­nado min­istro não teria “cul­hão roxo” pois na ver­dade preferiria o “cul­hão roxo” de out­rem.

Além das ofen­sas de cunho pes­soal, a excelên­cia pre­gou o fechamento daquele poder e/​ou a sub­sti­tu­ição dos onze min­istros, que segundo ele, não serviriam para “p. nen­huma” e o retorno de instru­men­tos da ditadura militar.

Uma lin­guagem rasteira e ofen­siva inapro­pri­ada, inclu­sive, para ser usada em bor­deis de beira de estrada quanto o mais para serem pro­feri­das por dig­natário rep­re­sen­tante do povo.

Vivêsse­mos out­ros tem­pos, o saudoso tempo em que havia decoro e honra, era para o – ou os –, ofen­di­dos desafi­arem o ofen­sor para um duelo e resolverem a questão (ou treta, como se diz hoje), de forma defin­i­tiva.

Como somos civ­i­liza­dos, tornou-​se “feio” falar que a honra só pode ser lavada com sangue, como no tempo dos nos­sos avós.

Sem o receio de ser chamado para um duelo e usando como escudo o mandato par­la­men­tar, o dep­utado disse o que disse – certo da impunidade –, e antes, segundo dizem, feito o que fez, como por exem­plo, ser um dos patroci­nadores dos man­i­festos que pediam o fechamento do Con­gresso Nacional, do qual faz parte, e do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF; a defesa de um golpe mil­i­tar e o ressurg­i­mento de instru­men­tos da ditadura, como o Ato Insti­tu­cional nº. 05, que fechou o par­la­mento, aposen­tou min­istros, exilou, pren­deu e tor­turou cidadãos e do qual os cidadãos brasileiros não tem nen­huma saudade.

O dep­utado até achou “fofo”, no seu dis­curso na inter­net, “brin­car” com o AI-​5, que trouxe o período mais som­brio da ditadura ao Brasil.

O título I da Con­sti­tu­ição Fed­eral traz os princí­pios fun­da­men­tais da República Fed­er­a­tiva do Brasil.

No artigo 1º., diz que a República Fed­er­a­tiva do Brasil é for­mada pela união indis­solúvel dos Esta­dos, Municí­pios e do Dis­trito Fed­eral, tendo por fun­da­mento: I — a sobera­nia; II — a cidada­nia; III — a dig­nidade da pes­soa humana; IV — os val­ores soci­ais do tra­balho e da livre ini­cia­tiva; V — o plu­ral­ismo político.

Ainda den­tro dos princí­pios fun­da­men­tais, o artigo 2º, esta­b­elece: “Art. 2º São Poderes da União, inde­pen­dentes e har­môni­cos entre si, o Leg­isla­tivo, o Exec­u­tivo e o Judiciário”.

O título II da Con­sti­tu­ição Fed­eral trata dos dire­itos e garan­tias fun­da­men­tais. No inciso X do artigo 5º, con­sta: “X — são invi­o­láveis a intim­i­dade, a vida pri­vada, a honra e a imagem das pes­soas, asse­gu­rado o dire­ito a ind­eniza­ção pelo dano mate­r­ial ou moral decor­rente de sua violação”.

É certo, tam­bém, que o artigo 53 da mesma Con­sti­tu­ição esta­b­elece que “Os Dep­uta­dos e Senadores são invi­o­láveis, civil e penal­mente, por quais­quer de suas opiniões, palavras e votos”.

E, ainda que o artigo 5º, IV, esta­b­elece que “é livre a man­i­fes­tação do pen­sa­mento, sendo vedado o anon­i­mato”.

O Reg­i­mento Interno da Câmara dos Dep­uta­dos, artigo 4º, §3°, con­sta que os dep­uta­dos fed­erais para assumirem o mandato prestam o seguinte com­pro­misso: «Prometo man­ter, defender e cumprir a Con­sti­tu­ição, obser­var as leis, pro­mover o bem geral do povo brasileiro e sus­ten­tar a união, a inte­gri­dade e a inde­pendên­cia do Brasil».

Con­siderando que o dep­utado prom­e­teu man­ter, defender a Con­sti­tu­ição, pro­mover o bem geral do povo brasileiro é a sus­ten­tar a união, estaria o seu com­por­ta­mento em con­sonân­cia com os dita­mes constitucionais?

Quer dizer, pode­ria ele – ainda que escu­d­ado no manto da imu­nidade pre­visto no artigo 53 ou da liber­dade de expressão, con­sagrado no artigo 5º, IV –, defender a supressão de um dos Poderes da República? Aten­tar con­tra a dig­nidade da pes­soa humana na pes­soa dos min­istros que foram pes­soal­mente ata­ca­dos? Ou violar-​lhes a intim­i­dade, a vida pri­vada, a sua honra e imagem?

Vejam que a mesma Con­sti­tu­ição que garante a imu­nidade par­la­men­tar e liber­dade de expressão é mesma Con­sti­tu­ição que pro­tégé os cidadãos, assegurando-​lhes a invi­o­la­bil­i­dade à intim­i­dade, a vida pri­vada, a honra e a imagem; é a mesma que esta­b­elece que poderá da união são inde­pen­dentes e har­môni­cos entre si; e ainda que a república é for­mada pela união indis­solúvel dos Esta­dos, Municí­pios e Dis­trito Federal.

Abstrai-​se os nomes dos min­istros e per­gunte se é razoável que o cidadão investido num mandato de dep­utado fed­eral ou estad­ual ou senador, pode aten­tar con­tra a sua intim­i­dade, a sua vida pri­vada, a sua imagem e a sua honra.

Noutras palavras, pode­ria o dep­utado chamar-​me de “filho de uma égua” e ficar por isso mesmo porque tem imu­nidade par­la­men­tar e lhe é garan­tido a liber­dade de expressão?

E ainda, pode­ria o par­la­men­tar, com fun­da­mento na imu­nidade par­la­men­tar e na liber­dade de expressão, garan­ti­dos por uma con­sti­tu­ição democrática, se erguer con­tra out­ros dire­itos asse­gu­ra­dos aos demais cidadãos e con­tra a própria República?

Vejam que coisa inter­es­sante neste episó­dio, o dep­utado ale­gando a plena liber­dade democrática aten­tado con­tra a própria democ­ra­cia e as garan­tias de out­ros e, por outro lado, o Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, valendo-​se de um instru­mento da ditadura mil­i­tar, a Lei de Segu­rança Nacional, para con­stranger e punir o dep­utado fed­eral em pleno régime democrático.

Ah, então você defende que o STF agiu com acerto ao deter­mi­nar a prisão em fla­grante do par­la­men­tar por conta de sua pre­gação insul­tu­osa e anti-​democrática? Não, em abso­luto.

Por outro lado, entendo que a dis­cussão não pode ser travada no clima de dis­puta eleitoral.

A decisão do Supremo Tri­bunal Fed­eral — STF, ini­cial­mente por um dos seus mem­bros, con­fir­mada depois pela una­n­im­i­dade dos min­istro, divide juris­tas, o que em tese, lhe retira a pecha de ter­a­tológ­ica, ou seja, absurda, encon­trou largo apoio da imprensa, em tese, nova­mente, a prin­ci­pal des­ti­natária da decisão por colo­car em xeque a “liber­dade de expressão”, e, até mesmo de 364 par­la­mentares que, nos ter­mos da con­sti­tu­ição, ref­er­en­daram a prisão do colega par­la­men­tar.

Logo, por mais que se dis­corde e ques­tione a decisão do STF, pelos apoios alcança­dos pela mesma no seio da sociedade, entre juris­tas de respeito, dos veícu­los de comu­ni­cação social, dos jor­nal­is­tas, em par­tic­u­lar, e da fol­gada maio­ria dos dep­uta­dos fed­erais, a quem com­pete aprovar esse tipo medida, deve­mos ponderá-​la com o máx­imo de cautela e, inclu­sive, quando ao aspecto de tê-​la sido ado­tada como forma de “pro­teção” da democ­ra­cia brasileira.

Em data bem recente um dos min­istros do STF externou a uma emis­sora de tele­visão que os atos pro­movi­dos ao longo de 2019 e 2020 con­tra os poderes da República estariam sendo patroci­na­dos por agentes estrangeiros inter­es­sa­dos na deses­ta­bi­liza­ção do país.

Vejam a gravi­dade da situ­ação: atos públi­cos que pode­riam se dizer uma livre man­i­fes­tação de insat­is­fação con­tra os poderes con­sti­tuí­dos e dos quais par­ticipou até o pres­i­dente da República, estariam patroci­na­dos por agentes estrangeiros.

O min­istro diz que o Supremo Tri­bunal Fed­eral pos­sui provas de tal cir­cun­stân­cia.

Essa digressão lat­eral ao assunto prin­ci­pal texto tam­bém serve para cor­rob­o­rar ao clima de Babel que toma conta do país.

Como dito ante­ri­or­mente, um dep­utado fed­eral fazendo uso dos instru­men­tos da democ­ra­cia – con­quis­tada à duras penas –, defende em atos e vídeos o fim da democ­ra­cia, com fechamento de poderes ou sub­sti­tu­ição de seus inte­grantes – antes do último episó­dio, em atos que con­tou com a par­tic­i­pação do próprio pres­i­dente do país –, e, de outro lado, um Supremo Tri­bunal que faz uso dos instru­men­tos da ditadura, como no caso da Lei de Segu­rança Nacional, para, segundo ele, defender a democ­ra­cia.

Poder-​se-​ia achar que ao Supremo Tri­bunal assi­s­tiria plena razão, entre­tanto, vê-​se clara­mente, na raiz das medi­das, uma ten­ta­tiva de recu­perar o amor próprio que foi se esvaindo ao longo do tempo por sua própria culpa.

Muito pior que um dep­utado maluco e com sede de apare­cer e atacar pub­li­ca­mente o tri­bunal e seus min­istros é saber que no seio da sociedade uma larga parcela de cidadãos con­corda com tudo que foi dito e até com o forma como foi dito.

E volto às palavras de meu pai: “respeito não é algo que lhe dão ou algo que você possa impor, o respeito é algo que se conquista”.

O STF, digo com pesar, foi per­dendo essa respeitabil­i­dade. Seja porque muitos dos min­istros resolveram seguir car­reira para­lela à de min­istro; seja porque não se aqui­etam em manifestar-​se ape­nas nos autos; seja porque foram “colo­ca­dos” para aten­derem aos inter­esses de quem os indi­cou; seja porque se tornaram escravos de suas próprias con­tradições; seja porque não se dão respeito ao pro­ferirem decisões con­forme as con­veniên­cias do momento.

Quan­tas vezes não vimos o STF decidir situ­ações idên­ti­cas de forma distintas?

A sociedade brasileira pre­cisa ficar atenta a esses movi­men­tos das insti­tu­ições, per­dendo essa visão maniqueísta de que existe uma luta do bem con­tra o mal, filiando-​se a uma ou outra con­forme sua própria visão de mundo ou de inter­esse.

Na ver­dade, o que vive­mos no Brasil é um filme de ter­ror onde o mocinho – se exis­tiu –, mor­reu logo na primeira cena e ninguém se deu conta disso.

A luta de poder no Brasil é um filme sem mocin­hos, só ban­di­dos – e todos querendo tirar o mel­hor proveito da situação.

Agora mesmo as excelên­cias do Con­gresso Nacional tra­mam uma emenda con­sti­tu­cional que lhes dá uma licença para roubar sem serem molesta­dos.

A tal PEC da imu­nidade par­la­men­tar nada mais é do que um “salvo-​conduto” para as excelên­cias desafi­arem toda leg­is­lação crim­i­nal do país sem qual­quer temor.

Será que a sociedade deve se calar diante de tamanho acinte só porque as excelên­cias colo­carão na con­sti­tu­ição que agora poderão roubar sem serem importunados?

Isso é assunto para um outro texto.

Abdon Mar­inho é advo­gado.