RACISMO E PRECONCEITOS.
Por Abdon Marinho.
NÃO faz muito tempo um amigo e leitor me abordou com uma espécie de inquietação. Disse ele: — Abdon, em meio a tantos textos que escrevestes, não lembro de nenhum abordando o racismo.
A inquietação daquele amigo – que é afrodescendente –, ocorreu na esteira das centenas de manifestações que ocorriam ao redor do mundo, cujo o estopim do foi o brutal assassinato de um cidadão afro-americano, chamado George Floyd, por policiais brancos, em Minneapolis, nos Estados Unidos da América.
Sempre tive dificuldades de me expressar sobre assuntos sobre os quais não compreendo. O racismo encontra-se nesta categoria. Foge à minha compreensão que seres humanos sejam humilhados, maltratados ou sofram quaisquer outros tipos de discriminação por conta da cor da pele.
A situação torna-se ainda mais incompreensível quando estas pessoas, estes serem humanos sofrem, além das violências já descritas acima, a violência física, a agressão pública.
Por não entender o que motiva isso, sinto-me impotente para tratar do assunto.
Poderia aproveitar e falar sobre conceitos muito abordados ultimamente, como por exemplo, o racismo estrutural que têm origem na formação da sociedade brasileira e, também, na americana.
Mas isso, também, seria um terreno pantanoso, pois nada – e falo sem receio de errar –, justificaria ou explicaria as várias formas de discriminação e/ou o racismo implícitos ou explícitos.
Acredito que esta minha incapacidade de compreender o racismo tenha a ver com a forma como fui criado, desde criança convivendo, igualitariamente, com pessoas e credos. Na infância, na juventude, na vida adulta.
Como deve ser, a convivência me ensinou que todos somos iguais e que nada, nenhuma condição financeira ou intelectual, pode mudar isso. O respeito ao ser humano deve vir antes de qualquer outra circunstância.
Mas, o certo é que, por ser o racismo algo, a mim, incompreensível, nunca o abordei nas minhas crônicas.
Por estes dias, entretanto, senti vontade de escrever sobre o assunto diante de dois episódios de racismo ocorrido no Brasil.
Um, se não me falha a memória, o corrido em um shopping center do Rio de Janeiro, com um jovem trabalhador que foi trocar um presente que comprara para o pai, e que foi agredido, acredita-se por sua condição social e/ou cor da pele, por supostos seguranças do empreendimento.
O outro, ocorrido na cidade de Valinhos, São Paulo, quando um jovem, igualmente trabalhador, foi fazer uma entrega em determinado condomínio e, conforme ficou explicitado em um vídeo, amplamente divulgado nos veículos de comunicação, internet e grupos de aplicativos, sofreu o crime tipificado de injúria racial da parte do cliente.
Este último caso, diante do racismo indescupável explícito, ganhou maior repercussão e a vítima, merecidamente, pelo seu comportamento sereno e altivo, a solidariedade de todos.
A sociedade brasileira como um todo, e diversos políticos, artistas, em particular, repercutiram o episódio, se solidarizando com o jovem que fora vítima de racismo e em repúdio ao agressor.
Pois bem, o caso de Valinhos chamou mais a minha atenção porque o pai do jovem agressor ao prestar esclarecimentos sobre o ocorrido revelou que o filho (agressor) sofre de uma doença mental, a esquizofrenia.
Como disse acima, a mim, o racismo é completamente incompreensível, e deve ser tratado como indesculpável por toda a sociedade brasileira, que deve exigir a punição de quem o pratica. Entretanto, em sendo verdade o que alegou o pai do agressor – que muitos alegam ser desculpa, chegando, inclusive, a dizerem: sempre que um “bacana” faz besteira vêm dizer que é “doido” –, estaremos diante de justo repúdio a uma prática odienta de racismo, mas, também, por outro lado, de um imenso preconceito contra as pessoas portadoras de distúrbios mentais.
Quando o vídeo ganhou o mundo das redes sociais, a indignação foi tamanha que se alguém propusesse acender as tochas para incendiar a casa no agressor, não faltariam voluntários.
A indignação em casos como estes de racismo é justa, mas não podemos combatê-la com preconceito.
Repito, em sendo o agressor do rapaz, um portador de esquizofrenia – e não tenho motivo para duvidar que não seja, pelo contrário –, nada que se faça contra ele – e acredito que nada farão –, será comparável à prisão perpétua da qual já é vítima.
Já convivi (e ainda afastado, convivo) com pessoas portadoras de esquizofrenia.
O comportamento daquele agressor é totalmente compatível com as infinitas cenas que testemunhei, inclusive o racismo.
Durante os anos em que convivi diretamente com uma pessoa portadora de esquizofrenia – conheço outras, e a sociedade brasileira está é longe de imaginar quantos doentes mentais moram com seus familiares ou mesmo sozinhas –, duas vezes ao dia, quando se aproximava a hora de tomar os medicamentos, em doses cavalares, pois a dose anterior já rareava os efeitos, ouvia esta pessoa esbravejando contra os negros em seus delírios.
Como falava sozinho, porém alto, coisas do tipo: esse “nego” para cá; “nego” vagabundo para lá, além de diversos outros impropérios, muitas vezes na porta de casa, temíamos que algum transeunte tomasse para si as agressões e fosse fazer-lhe algum mal ou mesmo chamar a polícia contra ele.
Uma outra característica das pessoas com esquizofrenia – com as quais convivi ou tive algum contado –, é se voltarem contra as pessoas que estão mais próximas e devotadas a elas: a mãe, o pai, os irmãos, os avós.
Estes são os que mais sofrem, são as agressões verbais quase diárias e, muitas das vezes, físicas. Sofrem, principalmente, por assistirem, ano após ano, o sofrimento de um ente querido, preso eternamente numa prisão sem grades, a torturante prisão da mente.
Nunca entendi – e também nunca procurei me aprofundar no assunto –, o que motiva, nos esquizofrênicos, o racismo e também essa aversão, na maioria das vezes, violenta, aos seus entes queridos.
Com a mudança na política de tratamento dos pacientes com distúrbios mentais – o fechamento dos horrendos manicômios –, a responsabilidade por cuidar dos mesmos foi transferidas às famílias, que, sem qualquer assistência ou ajuda do Estado, na maioria das vezes não sabem o que fazer.
As internações, quando as crises se tornam mais agudas, se não me falha a memória, não podem passar de sessenta dias, no resto do tempo são famílias, que com amor, mas sem conhecimento técnico algum, têm que lidar com situações para as quais não estão preparadas.
Não faz muito tempo – acredito que tenha contado aqui –, uma senhorinha me procurou, apoiada em cajado, devido ao peso dos anos, bateu no meu portão. Veio me pedir conselhos sobre o que fazer com uma neta portadora de esquizofrenia aguda que ela já não possuía forças para cuidar.
Assim como esta senhorinha – com sua carga de sofrimento dupla –, estão milhares, talvez milhões de lares brasileiros.
Por motivos que desconheço e não me cabe especular, temos uma população elevada de doentes mentais que não estão sendo tratados como deveriam, na maioria das vezes são ignorados pelo estado, e, não raro, “escondidos” por suas famílias que têm vergonha e/ou preconceito em dizer que possui um familiar portador de distúrbios mentais.
Assim como o racismo, os preconceitos são outros males que precisamos combater com veemência.
Abdon Marinho é advogado.