O PISO, SUPREMO E OS OPORTUNISTAS.
Por Abdon C. Marinho.
DESDE que comecei a exercitar meu magistério – e já se vão mais de 25 anos –, que advogo para municípios. Durante esses anos se discute e se reconhece a necessidade de reajustes salariais periódicos para as demais categorias dos servidores públicos e não apenas para os professores (agora, servidores da educação).
O que acontecia – e acontece –, é que após o reajuste obrigatório do salário mínimo e do piso do magistério, as gestões públicas municipais enfrentavam as cobranças dos demais servidores, principalmente da saúde, por reajustes, o que é, reconheçam-se, justo e necessário.
São vinte cinco anos, só os anos que acompanho, que assisto os servidores públicos da saúde – e de outras categorias – reclamarem por melhores salários e só conseguirem uns poucos reais, sempre insuficientes, sequer, para compensar as perdas salariais do ano anterior, aliás, dos anos anteriores, pois já são anos que não têm reajustes.
Logo, não apenas se apresenta justa como necessária a aprovação de um piso salarial para a categoria.
Vou além, necessário se faz a aprovação de pisos salariais para todas as demais categorias sob pena de ocorrer o que já vem ocorrendo hoje: uma categoria tem seu direito a um salário justo reconhecido enquanto as demais não tem qualquer reajuste.
Onde residiu o equívoco na aprovação da lei do piso para os servidores da saúde, objeto do presente texto?
Na destinação de recursos orçamentários para custear tal despesa.
Ainda falando do recorte social que acompanho há um quarto de século: os municípios.
Os gestores municipais não negam aumento aos servidores públicos, anualmente, por querer ou por serem “malvadões”, pelo contrário – pode ser até que existam exceções –, a maioria, a grande maioria, não fazem por dois motivos óbvios: a falta de dinheiro e a imposição de cumprirem o limite de gastos com pessoal.
Como sabemos, desde o ano 2000 que está em vigor a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF, a Lei Complementar nº. 101/2000, que surgiu justamente para organizar as finanças públicas.
A LRF obriga a União, os Estados e o Distrito Federal e os municípios a cumprirem o limite de gastos com pessoal. Dentro de cada esfera, os poderes constituídos também são obrigados a cumprirem o limite de gastos com pessoal.
O artigo 19 da LRF estabelece: “Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados: I - União: 50% (cinqüenta por cento); II - Estados: 60% (sessenta por cento); III - Municípios: 60% (sessenta por cento)”.
Só para se ter uma ideia, quando o governo federal, mediante portaria, elevou em 33,24% o piso do magistério a maioria dos municípios brasileiros, ainda falando dentro do recorte, ultrapassaram ou passaram a enfrentar dificuldades para manter as finanças públicas em consonância com o limite de gastos estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Os TCE’s, inclusive, estão notificando milhares deles para que se adequem aos limites da lei.
Dito isso, parece-nos temerário que as Casas do Parlamento e a Presidência da República coloquem em vigor uma lei sem informar aos seus principais destinatários: estados e municípios, quais são as fontes de “recursos novos” para suportar a despesa.
Ora, ao longo dos anos, notadamente, os municípios foram recebendo responsabilidades sem que as receitas aumentassem, tal situação tem gerado uma série de transtornos as administrações.
Os cidadãos, cada vez mais, conscientes de seus direitos, têm batido cada vez mais e com mais frequência nas portas dos Poder Judiciário, reclamando por seus direitos.
São raros os dias que não chegam aos gabinetes dos gestores municipais uma recomendação do Ministério Público, uma decisão judicial, recomendando ou determinando que se atenda essa ou aquela demanda dos cidadãos – que são justas, repita-se, mas que, na maioria das vezes, não cabem nos orçamentos municipais.
Os municípios são demandados para assistirem do nascimento, com algum auxílio enxoval para o bebê até a morte, com o chamado auxílio funeral. Até as carpideiras para chorarem nos velórios, o café e cachaça, os municípios “bancam”.
Agora mesmo saiu uma decisão judicial reconhecendo/determinando que o poder público deve prover o acesso universal às creches.
Claro que é um direito das mães terem creches públicas para deixarem os filhos e poderem trabalhar, mas como os municípios poderão atender o volume de demanda no tempo exigido?
Outro dia, em uma das minhas andanças, um gestor me procurou com uma demanda inusitada: o município não tinha como suportar o volume de requisições de TFD.
Os que não têm familiaridade com o termo, TFD significa Tratamento Fora do Domicílio. Qualquer cidadão que necessita de tratamento fora do seu domicílio “tem direito” de requerer um auxílio do poder público para si – e na maioria dos casos –, para um acompanhante.
O gestor argumentava que mesmo os que “não precisam” estão recorrendo ao TFD, em detrimento dos efetivamente necessitados.
O que fazer? A Constituição Federal ao consagrar a saúde como direito de todos não impõe qualquer tipo de limitação.
O texto não admite qualquer dúvida: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Agora mesmo o STJ entendeu que qualquer um dos entes federados podem ser acionados para custear o TFD o que muito embora “alivie” um pouco a situação dos municípios, não a resolve em absoluto, uma vez que o cidadão e mesmo o judiciário acha “mais perto” impor o encargo ao município.
Quando o STF suspendeu a aplicação imediata do piso dos profissionais da saúde, não foi por intromissão indevida (?) ou por ser contra o piso, mas, sim, porque as autoridades que se debruçaram sobre o tema, legislativo e executivo não “desenrolaram o nó” do financiamento.
Vi, outro dia, falarem em destinar dois bilhões do chamado “orçamento secreto” para as Santas Casas, que sofrerão um tremendo impacto com a implantação do piso; mais recente, vi que falam em destinar mais dez bilhões de reais, também do tal “orçamento secreto” para fazer face às despesas.
Viram como haviam deixado de fora da lei o principal? A fonte de financiamento.
Ouvi muita “gente boa” reclamando da suposta intromissão do STF neste assunto.
Estão equivocados.
A Constituição tem como cláusula pétrea, inserida no artigo 5, o seguinte: “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Qualquer um que esteja sofrendo lesão ou ameaçado de vir a sofrer tem o direito/dever de bater às portas do judiciário.
A administração pública não é uma brincadeira infantil onde as esferas ou poderes constituídos possam tratar seus cercadinhos como seu e ninguém “se meter”.
Quando a Confederação Nacional dos Municípios - CNM, um dos legitimados para tal, buscou o STF pleiteando a suspensão da lei foi consciente da efetiva dificuldade que um dos destinatários da lei, os municípios que representa, teriam na sua implementação, sem que o legislativo e o executivo já destinem uma fonte de receita para possibilitar o cumprimento da lei.
Devo acrescentar que não são dois bilhões de reais daqui, dez bilhões de reais dali, que irão possibilitar o cumprimento da lei. Não resolve.
Os municípios, principalmente eles, precisam de “receitas novas” para que possam cumprir as leis ordinárias, como as leis do piso, sem comprometer o limite de gastos estabelecidos pela Lei Complementar nº. 101/2000 - LRF.
Sem receita nova vai-se continuar a enxugar gelo, sem sair de lugar algum.
Uma lei de piso que visa estabelecer um piso mínimo tanto para o setor privado, quanto para o setor público e ainda contemplar o terceiro setor, como a rede filantrópica, precisa levar em consideração as dificuldades de cada um deles.
Uma discussão tão séria como essa, pois de um lado a necessidade urgente de se reconhecer e se pagar um salário decente aos servidores da saúde, de outro as limitações legais e financeiras de municípios, estados e entidades filantrópicas, não comporta leviandades e oportunismos, como temos acompanhado.
Esse proselitismo tosco, essa politiquice de se querer desgastar o Supremo Tribunal Federal, inclusive espalhando “fake news”, só atrapalham ao invés de ajudar.
O que os servidores da área da saúde precisam é de um fundo constitucional, assemelhado ao FUNDEB da educação, mas sem os vícios deste, que garanta o funcionamento da saúde de forma eficiente e o pagamento de salários dignos aos seus profissionais.
Abdon C Marinho é advogado.
P. S. O presente texto é o da semana passada que não saiu porque o autor estava doente.