A PANDEMIA, O SUS E OS POLÍTICOS.
Por Abdon Marinho.
NOS ÚLTIMOS dias, por conta do recrudescimento da pandemia do novo coronavírus, que já ceifou quase dois milhões e meio de vidas, só no Brasil já são quase 250 mil vidas perdidas, assistimos a um debate insano dos políticos sobre a responsabilidade de cada um no processo e, até mesmo, do papel que cada um desempenha neste morticínio de brasileiros.
A falta de oxigênio, no início do ano, em Manaus, Amazonas fez com que dezenas de cidadãos perdessem a vida; por lá, assistiu-se a formação de filas e mais filas, desentendimentos entre cidadãos comuns com seus cilindros na mão na tentativa de levar um pouco de conforto aos seus entes queridos e, até mesmo, salvar-lhes a vida; artistas, as forças armadas, empresas e até o governo da Venezuela se mobilizaram para fazer chegar o oxigênio salvador.
As autoridades, municipais, estaduais e federais foram avisadas com alguma antecedência para a escassez do produto e das suas consequências.
Vergonhosamente foram negligentes e omissas.
As autoridades brasileiras falharam na solução do problema e vidas se perderam.
No Maranhão, assisti, outro dia, um deputado estadual “descendo” críticas à administração municipal por conta de uma suposta ausência de leitos de UTI “na rede municipal” destinados ao tratamento da COVID; críticas semelhantes ou com pouca variação tenho ouvido das autoridades estaduais em relação ao governo federal; e deste, em relação aos governos estaduais e municipais.
Em plena pandemia, assisto, estarrecido, a militância política dizer: — o Bolsonaro “mandou” X bilhões ou milhões para o Maranhão (ou para São Paulo, Piauí, Amazonas, São Luís ou Manaus), cadê o dinheiro?
Chamo a atenção, inicialmente, para o tom personalista que tem assumido a política brasileira. De uns tempos para cá a militância ensandecida passou a confundir os entes federados com a pessoa dos seus dirigentes.
Com naturalidade dizem: “o Bolsonaro mandou para Dino”, “o Bolsonaro mandou para Dória”, “o Dino mandou para o Braide” ou “o Bolsonaro fez isso”, “Dória fez aquilo”.
Muitas das vezes, quando se tratar de uma atitude ou comportamento pessoal até cabe e é devida a citação da autoridade, por exemplo, não temos vacinas porque o senhor Bolsonaro, presidente da República, e o senhor Pazuello, ministro da saúde, não foram previdentes ou imaginaram que a pandemia iria se extinguir por si e por isso fizeram “corpo mole” e não foram atrás de vacinas ou de desenvolver uma vacina nacional, como outros países fizeram, alguns, mais de uma.
Noutras, como no caso de repasses de recursos públicos, constitucionais ou voluntários, por partes dos entes federados a outros, a personificação só é cabível na cabeça dos aduladores, que em tudo enxerga motivos para proselitismo político.
O senhor Bolsonaro, o senhor Dino ou qualquer outra autoridade não manda ou nunca mandou recursos para ninguém.
Não se trata de recursos deles, eles não “meteram a mão no bolso” para mandar dinheiro a quem quer que seja.
Os recursos são públicos – fruto imposto dos cidadãos –, e devem ser repassados mediante critérios previamente definidos nos instrumentos legais.
Se o governante não está fazendo desse modo, no mínimo, comete uma improbidade administrativa ou mesmo, crime de responsabilidade.
A própria Constituição Federal estabeleceu como crime de responsabilidade a probidade na administração.
Obviamente trata-se de improbidade o tratamento diferenciado, por parte da União, entre os entes federados: estados e municípios; os dos estados em relação aos municípios.
Então, acredito, já seja hora de se parar com essa “babaquice” de se ficar atribuindo a governante esse ou aquele suposto “benefício” dispensado aos estados ou municípios.
Se a União (e não o Bolsonaro) mandou qualquer recurso para os estados ou para os municípios foi porque a lei determinou que fizesse.
Se alguma autoridade fez a mais do que lei mandou deve ser removido do cargo.
Essa balbúrdia institucional, essa politicalha rasteira, essa ignorância desmedida, tenho certeza, é a principal responsável pela perda de tantas vidas no Brasil.
O nosso país possui um dos sistemas de saúde mais avançados do mundo, talvez só se comparando ao sistema de saúde pública inglês o NHS (na sigla em inglês para Sistema Nacional de Saúde).
O sistema brasileiro ainda possui uma “vantagem” em relação ao inglês: a cobertura. Enquanto o congênere inglês tem que oferecer cobertura a 60 milhões pessoas, o nosso sistema tem que oferecer a quase quatro vezes mais.
Desde 1988 que consta da Constituição Federal as bases do nosso Sistema Único de Saúde - SUS.
Lá, do artigo 196 ao 199, consta os princípios que norteiam o nosso sistema.
O artigo 196, estabelece: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
O artigo 197: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
Já o artigo 198, estabelece as diretrizes do SUS, sua forma de financiamento, entre outras.
Diz o artigo 198: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade”.
Já o artigo 199 trata da participação da iniciativa privada.
Em 1990, através da Lei 8.080, também chamada de Lei Orgânica da Saúde, os dispositivos constitucionais foram esmiuçados e ampliados, a lei dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Com aprimoramentos aqui e ali, temos um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo, repito, que, infelizmente, para o enfrentamento à pandemia tem sido relegado a um segundo plano.
Pelo conjunto de declarações dos políticos, nos últimos tempos, fico com a impressão que passadas mais de três décadas desde a criação do nosso sistema de saúde pública, as autoridades não se deram ao trabalho de conhecê-lo ou de saber como o mesmo deve funcionar. De cima abaixo, o que assistimos é uma sucessão de improvisos.
Improvisos, repito, que têm custado a vida de brasileiros.
O SUS é um sistema único de saúde. A vogal “U”, de SUS, significa só isso, que ele é único.
Nós não temos um sistema de saúde federal, um estadual e outro municipal.
Ele é único e a ele se soma inclusive a rede privada e/ou filantrópica, conforme a necessidade.
A primeira diretriz constitucional do SUS é a descentralização, com direção única em cada esfera de governo.
Isso significa, por exemplo, que o deputado estadual ao reclamar que o Município de São Luís não possui leitos de UTI específicos para o tratamento da COVID está só falando uma bobagem.
O Município de São Luís há quase três décadas encontra-se na chamada gestão plena e, portanto, nos termos da constituição, é quem deveria “dirigir” todas as unidades e ofertas de vagas no seu território, inclusive aquelas administradas pela rede privada, não existe essa tolice de vagas da rede federal, vagas da rede estadual, vagas da rede municipal ou mesmo vagas da rede privada, todas as vagas estão à disposição do sistema de saúde que é único e que, nos termos da legislação, estão sob a direção do município.
Abro uma exceção para desculpar a tolice do deputado em tentar tirar “casquinha” de um assunto que não conhece e, também, para desculpar o prefeito que “correu” para dizer que estava abrindo as tais vagas na rede municipal, pelo simples fato, de no Maranhão, principalmente, com ressalto nos últimos tempos, nunca ter existido um sistema único de saúde. Por conta da ganância e da ignorância das autoridades, possuímos na capital do estado três sistemas: o federal, o estadual e o municipal.
Diferente de outras capitais com gestão plena, até mesmo Teresina, no vizinho Piauí, aqui a Constituição é solenemente ignorada, em prejuízo da população.
Já tratei deste assunto diversas vezes, sem, contudo, encontrar o respaldo das autoridades interessadas.
A Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080/90, nos artigos 16, 17 e 18 estabelece de forma cristalina o competência de cada esfera de governo, nacional, estadual e municipal.
Se cada uma estivesse atenda às suas atribuições e, noutro giro, discutindo nos seus fóruns competentes, conselhos de secretários de estado de saúde e conselho de secretários municipais de saúde, as políticas públicas a serem implementadas para vencer os desafios, principalmente o enorme desafio da pandemia, certamente estaríamos sendo um exemplo para o mundo e não uma piada de mau gosto e não correríamos o risco do sistema entrar em colapso, como já quase ocorreu em Manaus, AM, e principia ocorrer em diversos outros municípios país afora.
Abdon Marinho é advogado.
P.S. Em outros textos aprofundaremos a discussão sobre o nosso sistema de saúde.