AbdonMarinho - Racismo e preconceitos
Bem Vindo a Pag­ina de Abdon Mar­inho, Ideias e Opiniões, Sexta-​feira, 22 de Novem­bro de 2024



A palavra é o instru­mento irre­sistível da con­quista da liber­dade.

Racismo e preconceitos

RACISMO E PRECONCEITOS.

Por Abdon Marinho.

NÃO faz muito tempo um amigo e leitor me abor­dou com uma espé­cie de inqui­etação. Disse ele: — Abdon, em meio a tan­tos tex­tos que escrevestes, não lem­bro de nen­hum abor­dando o racismo.

A inqui­etação daquele amigo – que é afrode­scen­dente –, ocor­reu na esteira das cen­te­nas de man­i­fes­tações que ocor­riam ao redor do mundo, cujo o estopim do foi o bru­tal assas­si­nato de um cidadão afro-​americano, chamado George Floyd, por poli­ci­ais bran­cos, em Min­neapo­lis, nos Esta­dos Unidos da América.

Sem­pre tive difi­cul­dades de me expres­sar sobre assun­tos sobre os quais não com­preendo. O racismo encontra-​se nesta cat­e­go­ria. Foge à minha com­preen­são que seres humanos sejam humil­ha­dos, mal­trata­dos ou sofram quais­quer out­ros tipos de dis­crim­i­nação por conta da cor da pele.

A situ­ação torna-​se ainda mais incom­preen­sível quando estas pes­soas, estes serem humanos sofrem, além das vio­lên­cias já descritas acima, a vio­lên­cia física, a agressão pública.

Por não enten­der o que motiva isso, sinto-​me impo­tente para tratar do assunto.

Pode­ria aproveitar e falar sobre con­ceitos muito abor­da­dos ulti­ma­mente, como por exem­plo, o racismo estru­tural que têm origem na for­mação da sociedade brasileira e, tam­bém, na amer­i­cana.

Mas isso, tam­bém, seria um ter­reno pan­tanoso, pois nada – e falo sem receio de errar –, jus­ti­fi­caria ou expli­caria as várias for­mas de dis­crim­i­nação e/​ou o racismo implíc­i­tos ou explícitos.

Acred­ito que esta minha inca­paci­dade de com­preen­der o racismo tenha a ver com a forma como fui cri­ado, desde cri­ança con­vivendo, igual­i­tari­a­mente, com pes­soas e cre­dos. Na infân­cia, na juven­tude, na vida adulta.

Como deve ser, a con­vivên­cia me ensi­nou que todos somos iguais e que nada, nen­huma condição finan­ceira ou int­elec­tual, pode mudar isso. O respeito ao ser humano deve vir antes de qual­quer outra cir­cun­stân­cia.

Mas, o certo é que, por ser o racismo algo, a mim, incom­preen­sível, nunca o abor­dei nas min­has crôni­cas.

Por estes dias, entre­tanto, senti von­tade de escr­ever sobre o assunto diante de dois episó­dios de racismo ocor­rido no Brasil.

Um, se não me falha a memória, o cor­rido em um shop­ping cen­ter do Rio de Janeiro, com um jovem tra­bal­hador que foi tro­car um pre­sente que com­prara para o pai, e que foi agre­dido, acredita-​se por sua condição social e/​ou cor da pele, por supos­tos segu­ranças do empreendi­mento.

O outro, ocor­rido na cidade de Val­in­hos, São Paulo, quando um jovem, igual­mente tra­bal­hador, foi fazer uma entrega em deter­mi­nado con­domínio e, con­forme ficou explic­i­tado em um vídeo, ampla­mente divul­gado nos veícu­los de comu­ni­cação, inter­net e gru­pos de aplica­tivos, sofreu o crime tip­i­fi­cado de injúria racial da parte do cliente.

Este último caso, diante do racismo inde­s­cupável explíc­ito, gan­hou maior reper­cussão e a vítima, mere­ci­da­mente, pelo seu com­por­ta­mento sereno e altivo, a sol­i­dariedade de todos.

A sociedade brasileira como um todo, e diver­sos políti­cos, artis­tas, em par­tic­u­lar, reper­cu­ti­ram o episó­dio, se sol­i­darizando com o jovem que fora vítima de racismo e em repú­dio ao agressor.

Pois bem, o caso de Val­in­hos chamou mais a minha atenção porque o pai do jovem agres­sor ao prestar esclarec­i­men­tos sobre o ocor­rido rev­elou que o filho (agres­sor) sofre de uma doença men­tal, a esquizofre­nia.

Como disse acima, a mim, o racismo é com­ple­ta­mente incom­preen­sível, e deve ser tratado como inde­s­culpável por toda a sociedade brasileira, que deve exi­gir a punição de quem o prat­ica. Entre­tanto, em sendo ver­dade o que ale­gou o pai do agres­sor – que muitos alegam ser des­culpa, chegando, inclu­sive, a diz­erem: sem­pre que um “bacana” faz besteira vêm dizer que é “doido” –, estare­mos diante de justo repú­dio a uma prática odi­enta de racismo, mas, tam­bém, por outro lado, de um imenso pre­con­ceito con­tra as pes­soas por­ta­do­ras de dis­túr­bios men­tais.

Quando o vídeo gan­hou o mundo das redes soci­ais, a indig­nação foi tamanha que se alguém pro­pusesse acen­der as tochas para incen­diar a casa no agres­sor, não fal­tariam vol­un­tários.

A indig­nação em casos como estes de racismo é justa, mas não podemos combatê-​la com preconceito.

Repito, em sendo o agres­sor do rapaz, um por­ta­dor de esquizofre­nia – e não tenho motivo para duvi­dar que não seja, pelo con­trário –, nada que se faça con­tra ele – e acred­ito que nada farão –, será com­parável à prisão per­pé­tua da qual já é vítima.

Já con­vivi (e ainda afas­tado, con­vivo) com pes­soas por­ta­do­ras de esquizofre­nia.

O com­por­ta­mento daquele agres­sor é total­mente com­patível com as infini­tas cenas que teste­munhei, inclu­sive o racismo.

Durante os anos em que con­vivi dire­ta­mente com uma pes­soa por­ta­dora de esquizofre­nia – con­heço out­ras, e a sociedade brasileira está é longe de imag­i­nar quan­tos doentes men­tais moram com seus famil­iares ou mesmo soz­in­has –, duas vezes ao dia, quando se aprox­i­mava a hora de tomar os medica­men­tos, em doses cav­alares, pois a dose ante­rior já rareava os efeitos, ouvia esta pes­soa esbrave­jando con­tra os negros em seus delírios.

Como falava soz­inho, porém alto, coisas do tipo: esse “nego” para cá; “nego” vagabundo para lá, além de diver­sos out­ros impropérios, muitas vezes na porta de casa, temíamos que algum transe­unte tomasse para si as agressões e fosse fazer-​lhe algum mal ou mesmo chamar a polí­cia con­tra ele.

Uma outra car­ac­terís­tica das pes­soas com esquizofre­nia – com as quais con­vivi ou tive algum con­tado –, é se voltarem con­tra as pes­soas que estão mais próx­i­mas e devotadas a elas: a mãe, o pai, os irmãos, os avós.

Estes são os que mais sofrem, são as agressões ver­bais quase diárias e, muitas das vezes, físi­cas. Sofrem, prin­ci­pal­mente, por assi­s­tirem, ano após ano, o sofri­mento de um ente querido, preso eter­na­mente numa prisão sem grades, a tor­tu­rante prisão da mente.

Nunca entendi – e tam­bém nunca pro­curei me apro­fun­dar no assunto –, o que motiva, nos esquizofrêni­cos, o racismo e tam­bém essa aver­são, na maio­ria das vezes, vio­lenta, aos seus entes queri­dos.

Com a mudança na política de trata­mento dos pacientes com dis­túr­bios men­tais – o fechamento dos hor­ren­dos man­icômios –, a respon­s­abil­i­dade por cuidar dos mes­mos foi trans­feri­das às famílias, que, sem qual­quer assistên­cia ou ajuda do Estado, na maio­ria das vezes não sabem o que fazer.

As inter­nações, quando as crises se tor­nam mais agu­das, se não me falha a memória, não podem pas­sar de sessenta dias, no resto do tempo são famílias, que com amor, mas sem con­hec­i­mento téc­nico algum, têm que lidar com situ­ações para as quais não estão preparadas.

Não faz muito tempo – acred­ito que tenha con­tado aqui –, uma sen­hor­inha me procurou, apoiada em cajado, dev­ido ao peso dos anos, bateu no meu portão. Veio me pedir con­sel­hos sobre o que fazer com uma neta por­ta­dora de esquizofre­nia aguda que ela já não pos­suía forças para cuidar.

Assim como esta sen­hor­inha – com sua carga de sofri­mento dupla –, estão mil­hares, talvez mil­hões de lares brasileiros.

Por motivos que descon­heço e não me cabe espec­u­lar, temos uma pop­u­lação ele­vada de doentes men­tais que não estão sendo trata­dos como dev­e­riam, na maio­ria das vezes são igno­ra­dos pelo estado, e, não raro, “escon­di­dos” por suas famílias que têm ver­gonha e/​ou pre­con­ceito em dizer que pos­sui um famil­iar por­ta­dor de dis­túr­bios men­tais.

Assim como o racismo, os pre­con­ceitos são out­ros males que pre­cisamos com­bater com veemência.

Abdon Mar­inho é advo­gado.