Por Abdon Marinho.
QUALQUER pessoa com um mínimo de conhecimento de história sabe o real significado da edição do Ato Institucional nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, para o endurecimento do regime militar implantado em 1964. Alguns historiadores até atribuem a esse fato o início da ditadura.
Não sem razão, através daquele ato o presidente da República, ficava autorizado a decretar recesso no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, só voltando a funcionar quando convocados pelo presidente; poderia decretar intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição de 1967; poderia suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar os mandados eletivos; suspender as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo; poderia decretar estado do sitio ou prorrogá-lo; decretar confisco de bens, entre outras.
O ato institucional suspendia, ainda, a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular.
Foi Confúcio, o sábio chinês, que disse que uma caminhada de mil léguas se inicia com um primeiro passo.
Por estes dias o Supremo Tribunal Federal - STF, “baixou” seu Ato Institucional nº. 5, e deu o primeiro passo rumo a um futuro incerto, para ele próprio, e para a democracia brasileira.
Primeiro, seu presidente, interpretando de forma “bem particular” uma norma regimental, decidiu que era hora do STF, virar investigador, denunciador e julgador de supostas ofensas perpetrada contra ministros da corte, não satisfeito, ignorando todo e qualquer princípio, resolveu “nomear” a autoridade responsável pela condução do feito.
Segundo, como achou pouco as medidas de “estranha excepcionalidade” já adotadas, o presidente da corte, citado em matérias jornalísticas, em causa própria, decidiu requerer, ao ministro que “nomeara” para condução daquele feito, a censura de uma matéria específica e das notícias relacionadas, o que conseguiu de plano, tendo o presidente do feito, ainda, determinado, não apenas a censura dos textos jornalísticos, como a inquirição dos dos seus autores, investigação sobre o vazamento da informação e a busca e apreensão de equipamentos nas residências e/ou escritórios de quem, porventura, tivesse emitido alguma opinião desfavorável à corte ou aos seus integrantes.
A atitude tresloucada dos dois ministros, além de terem chamado ainda mais a atenção para as matérias jornalísticas e os documentos que as embasaram, “virou” a verdadeira notícia.
Em todos lugares, mesmo nas mesas de bares, nos happy hour dos amigos, nos bancos das praças, enquanto os mais velhos jogam cartas ou dominó, o assunto incontornável tem sido a censura imposta pelo Supremo Tribunal Federal à revista e ao site que divulgaram a matéria onde citava o ministro-presidente da corte, como “amigo do amigo do meu pai. Onde o amigo do amigo seria o ministro-presidente do STF, o amigo, o ex-presidente Lula, preso e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro a quase um quarto de século de cadeia, o pai seria o empresário Emílio Odebrecht, e o filho, o empresário Marcelo Bahia Odebrecht, que deu a declaração.
Isso sem falar nos debates nas redes sociais ou nos vários grupos de aplicativos.
Há muito tempo não se ouvia – ou discutia –, tanto sobre a liberdade de expressão e de pensamento.
A censura, embora ainda presente em algumas situações, era algo excepcional de algum “afoito” inconformado com os direitos consagrados na Constituição Federal.
Com efeito, já no título segundo da Carta Magna, que trata dos direitos e garantias fundamentais, no seu capítulo primeiro, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, restam consagrados que: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”; “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”; “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. (Art. 5º, incisos IV, V, XIII e XIV).
Nestes mesmos título e capitulo, a Constituição estabelece: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. (Art. 5º, X).
Vejam, que embora a Carta garantindo a inviolabilidade a intimidade, a vida privada, a honra e a imagens das pessoas, para estas violações diz ser assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral.
Quer dizer, ainda que haja excesso numa publicação ou manifestação de pensamento, ela não pode sofrer restrição, para ela sendo assegurado o direito à indenização por danos materiais ou morais ao suposto ofendido.
Não bastassem tais regras esposadas logo no título referente aos diretos e garantias fundamentais, no título oitavo, que trata da ordem social, capítulo cinco, que trata da comunicação, resta expresso no artigo 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
E, vai além nos seus parágrafos: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV” e “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Ora, ao Supremo Tribunal Federal - STF, nos termos da Constituição, compete “precipuamente, a guarda da Constituição” (art. 102), logo há de se indagar qual parte dos dispositivos acima referidos seus “ministros-censores” não conhecem ou mesmo se, como guardiões da Carta Magna, se colocam acima dela, se permitindo interpretar de forma diversa do seu conteúdo literal.
Os fatos dos últimos dias, com ministros do Supremo, deixando a toga de guardião da Constituição, para se vestirem de censores de publicações jornalísticas, abre séria fissura no ordenamento jurídico pátrio.
Onde já se viu ministros da mais elevada Corte desconhecer ou, pior que isso, afrontar de forma inconteste a Constituição que deveriam guardar?
Na verdade, não é de hoje que muitos dos ministros dos nossos tribunais adotam comportamentos incompatíveis com a dignidade dos cargos que ocupam.
Meu pai que, como sabem, era analfabeto por parte de pai, mãe e parteira, tinha uma regra infalível, dizia ele: “— meu filho, quer respeito, se dê respeito”.
As críticas dispensadas por parte da sociedade a alguns dos ministros da nossa Suprema Corte – por enquanto, ainda não à sua totalidade –, é fruto de uma série de decisões e comportamentos questionáveis ou dados ao sabor das conveniências, que levaram o país a uma insegurança jurídica jamais experimentada em qualquer tempo da história.
Mesmo nos diversos períodos de exceção, as pessoas tinham seus direitos violados pelos ditadores de plantão ou seus prepostos, mas não pelo membros do Poder Judiciário, a quem tinham como trincheira derradeira da cidadania. Ainda que uma decisão fosse contrária, havia o sentimento de respeito, pois se acreditava na justeza de veredicto judicial e não se tinham notícias de decisões sob medida ao atendimento de interesses pessoais.
Daí terem o respeito e a consideração da sociedade brasileira. Não é mais o que vemos nos dias atuais, quando, por não se darem ao respeito, perdem o respeito da sociedade.
Outro dia, com estupefação, tomei conhecimento de um ato de “desagravo” promovido pelo STF em sua defesa. E viu-se uma procissão de entidades prestando “solidariedade” e “desagravando” o tribunal.
Meu Deus, como chegamos ao ponto da mais elevada Corte de Justiça clamar por solidariedade e desagravo? Implorar por respeito?
O respeito, a solidariedade não são coisas a serem pedidas ou imploradas, são coisas conquistas.
Ao promoverem aquele ato no salão nobre dos julgamentos plenários, senti profunda tristeza.
Tangido por aquilo que se chama de “vergonha alheia”, mudei de canal para não assistir a tamanha degradação. Ali pensei ser o pior momento do tribunal. Pior, até mesmo, que os histéricos e afrontosos bate-bocas entre as excelências.
O episódio da censura, motivada por interesse de cunho pessoal, revela que ainda podiam cavar um pouco mais no fosso da deterioração moral.
A ressurreição da censura, violando a Constituição Federal, e tendo por base a dispositivos da Lei de Segurança Nacional, derradeiro entulho do regime militar, só encontra a defesa daqueles que, embora jurem defender a democracia brasileira, nada mais são que adoradores de ditaduras.
Apesar dos pesares, como se dizia antigamente, nem tudo está perdido. Ao meu sentir, não foi o tribunal que perdeu o respeito ou a legitimidade perante a sociedade – ainda não, repito –, quem perdeu a ambos, foram alguns dos seus ministros e isso é possível corrigir se a grande maioria ou o Senado da República, não se omitirem e tiverem a coragem de fazerem aquilo que a Constituição impõe que se faça.
Tudo isso, entretanto, se superada essa longa noite, deve servir de reflexão para escolha de futuros ministros. Devemos ter em mente que não os credenciam o fato de serem amigos do poderoso de plantão, ser advogado dos poderosos, assessor do partido do poder e outros atributos não previstos na constituição, e, principalmente, que não devemos aquiescer ou fechar os olhos, nunca mais, às tentativas criminosas de aparelhamento do Estado.
Agora é torcer para esse texto não ser censurado.
Abdon Marinho é advogado.