O PASSADO QUE TEIMA EM NÃO PASSAR.
Por Abdon Marinho.
HAVIA prometido não me envolver nesta intempestiva discussão sobre os fatos ocorridos em 1964: golpe, chamamento popular, revolução, ditadura e tantas outras coisas.
Um leitor de pouco mais de 20 anos – ou seja, nascido bem depois, não apenas dos eventos de 64, mas, da própria redemocratização do país –, pediu-me que falasse sobre isso.
A solicitação foi feita já tem alguns dias, acredito que logo depois do presidente da República ter determinado, com direito a nota oficial lida pelo general-porta-voz, que se comemorasse, em todos os quartéis do país o golpe militar de 1964.
A partir de então a pauta do país foi tomada por esse debate, a ponto da grande mídia até encomendar pesquisas sobre a opinião dos cidadãos brasileiros sobre o assunto, com direito a divulgação em todos demais veículos de comunicação.
Achei desde a propositura do presidente ao debate que se alastrou pelo país, tudo um grande despropósito.
Ora, desde aquele evento que mergulhou o Brasil num regime de exceção que durou vinte um anos, a data, com maior ou menor discrição, sempre foi festejada.
Setores militares sempre acharam que fizeram um enorme bem a nação e que livrou nosso povo do “comunismo”.
Dito isso, por qual razão se traz para o debate tal assunto, a ponto de se reviver tantas paixões?
Maior despropósito, ainda, que tal “pauta” tenha sido trazida pelo próprio presidente da República.
Em um texto anterior disse achar isso um absurdo e, questionado por um amigo, fiquei lhe devendo uma explicação completar: a iniciativa do presidente (e do governo) foi absurda porque é papel do mandatário maior tentar pacificar o país diante de tamanha divisão, e não, pelo contrário, tentar acirrar, ainda mais, os ânimos.
O presidente preside para todos os brasileiros, os de esquerda, os de direita, os brancos, os negros, os índios, os asiáticos, os heterossexuais, os homossexuais, os demais integrantes da sopa de letrinhas, os ricos, os pobres, os miseráveis, todos, todos brasileiros e os de outras nacionalidades que aqui residem.
A responsabilidade do presidente da República é, possuindo suas próprias convicções e opiniões pessoais, respeitar os demais cidadãos e administrar o país.
Isso implica, obviamente, em não aumentar, incentivar ou fomentar as divisões naturais já existentes em um país heterogêneo e de dimensões continentais.
Lembro que quando saiu o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais escrevi um texto intitulado: “DEU PT. E AGORA?”.
Dizia naquela oportunidade que o resultado do primeiro turno, independente do Partido dos Trabalhadores - PT, sagrar-se vitorioso ou não, era o resultado por ele buscado, pois perdendo ou ganhando as eleições, permaneceria vivo no debate político nacional. Leiam lá que verão fazer todo o sentido.
Não sou profeta, mas já vivi o suficiente para fazer uma leitura da realidade na qual estou inserido.
Até aqui – torço para que mude –, o atual governo vem administrando o país como o PT, só que com o sinal trocado.
Ninguém fracionou tanto a sociedade para governar quanto os quatro governos petistas, nem mesmo os governos militares, com toda sua carência de legitimidade, sobretudo, nos últimos governos do regime.
O PT fomentou – como fazem todos os regimes totalitários, fascismo, nazismo, comunismo, maoísmo –, o mantra do “nós contra eles”. Os “nós”, somos os bons, os melhores, nossos defeitos são nossas qualidades, e por aí vai.
Como previsto, o atual governo envereda pelo mesmo caminho ao incentivar práticas divisionistas (ou discriminatórias) no país.
Mas voltemos à polêmica criada sobre o regime militar.
Vejam, a ruptura da ordem institucional ocorreu a 55 anos. O debate sobre se foi ou não foi golpe militar, afora o aspecto histórico é irrelevante para a sociedade depois dos dois pactos sociais costurados depois daquele evento.
O de 1979, com o acordo pela Lei da Anistia, que foi ampla geral e irrestrita; e, em 1988 com a promulgação da Constituição Federal. Isso sem contar com o fim do regime militar ocorrido com a eleição do senhor Tancredo Neves em janeiro de 1985, colocando fim ao regime dos generais/presidentes.
Não estou dizendo que se deva ignorar a história do país. Longe disso, pelo contrário a história é a nossa bússola para evitarmos os erros do passado.
Acontece que na atual quadra política ninguém está discutindo fatos históricos. Estão sim, fazendo proselitismo político de suas próprias convicções. E fazendo isso falsificando a história.
O Brasil sofreu uma ruptura na sua ordem institucional em 1964, porque não se substitui um presidente nos moldes como foi feito pelos militares. É verdade.
Assim como é verdade que o “golpe” teve amplo apoio popular, e o primeiro presidente do regime, general Castelo Branco foi empossado pelo Congresso Nacional, legitimamente eleito pelo povo.
O Brasil viveu uma ditadura com os militares. Sim, é verdade. A edição do Ato Institucional nº. 5, que permitiu o fechamento do Congresso Nacional, cerceamento das liberdades individuais, cassação de parlamentares, ministros de tribunais, prisões sem formação de culpa, suspensão do habeas corpus, etc., são incompatíveis com qualquer ideia de democracia. Tanto assim que o ministro Jarbas Passarinho, naquele 13 de dezembro de 1968, disse mandar às favas os escrúpulos de consciência.
Sim, todos sabiam que estavam mergulhando o país na fase mais autoritária de um regime de exceção. Nesta fase que durou, pelo menos dez anos, tivemos assassinatos de opositores, torturas, sequestros e tantos outros crimes igualmente considerados hediondos.
E ninguém tem o direito de querer relativizar crimes como a tortura ou assassinatos por motivações políticas sob o argumento que no Brasil essas práticas não se deram com a mesma intensidade do ocorrido noutros países da América do Sul, como a Argentina (com 30 mil mortos/desaparecidos) ou o Chile (com cerca de 6 mil mortos/desaparecidos).
Argumentar que para a ditadura brasileira se aproximar das ditaduras daqueles países teríamos que ter entre mortos e desaparecidos cerca de 100 mil cidadãos é de um cinismo atroz.
A ditadura brasileira é responsabilizada pela morte/desaparecimento de 400 pessoas e, sabe-se lá, quantos torturados, isso não a torna menos “ditadura”, ainda que use o cínico argumento de que estes mortos e/ou torturados “mereceram”. Ainda que fosse um, ainda que “merecessem”, o Estado – nenhum Estado –, tem esse direito, e isso não torna o ato menos vil.
Como disse anteriormente ninguém tem o direito de relativizar o sofrimento de quem foi torturado ou daqueles que foram privados do convívio dos seus pais, filhos, irmãos ou qualquer ente querido. Essas pessoas têm todo o direito de carregarem para sempre a sua dor e jamais perdoarem os que tiveram participação na mesma.
Não é legítimo, sequer, que cobremos outro posicionamento destas pessoas e, muito menos, que se faça pouco caso da sua dor.
Quem faz isso apenas revela traços de psicopatia.
Mas, feita tal postulação, aqueles que hoje “puxam o coro” contra o regime militar de 64, contra o golpe, contra a ditadura, estão longe, muito longe de serem inocentes ou de assim agirem por respeitarem os diretos humanos, a liberdade e a segurança dos cidadãos, muito pelo contrário.
Enquanto, ainda hoje, protestam contra os fatos ocorridos no Brasil em 1964, há, portanto, cinquenta e cinco anos, simultaneamente a isso, defendem as terríveis ditaduras da Coreia do Norte, de Cuba e da Venezuela, que destruíram seus países e matam diariamente, através de torturas e assassinatos, milhares de seus concidadãos.
Logo ali na fronteira norte do Brasil, temos, segundo dados das Nações Unidas, mais de um milhão de crianças sendo torturadas pela fome, pelas doenças; temos centenas de cidadãos presos por crimes políticos e outros milhões exilados e privados de sua pátria.
Os que protestam contra o regime de militar brasileiro, não apenas silenciam, eles apoiam formalmente o regime de Nicolás Maduro.
Um caso, talvez seja o mais ilustrativo desta visão caolha com a qual muitos enxergam os fatos ocorridos há cinquenta e cinco anos em detrimento dos fatos atuais, o caso Cesare Battisti.
O mundo inteiro sabia do envolvimento de Cesare Battisti com os assassinatos de alguns de seus concidadãos e por ter deixado aleijado um jovem de tenra idade à época.
As instâncias da justiça italiana comprovaram sua culpabilidade, assim como outros tribunais internacionais.
Apesar disso tudo, Cesare Battisti veio para o Brasil com status de “herói” e foi festejado e “tietado” por todos esses que ainda hoje protestam contra a ditadura brasileira.
Ignorando os diversos apelos do governo e de todos os cidadãos italianos, os governos petistas do país (repisasse: estes mesmos que estão nas ruas protestando contra a ditadura de 64), deram-lhe guarda e lhe concederam o título de perseguido político.
Pois bem, preso no começo deste ano, na Bolívia, e deportado para Itália, onde cumpre pena de prisão perpétua, Cesare Battisti confessou que, de fato, fora o responsável pelos crimes pelos quais foi condenado e, mais, que sempre negou tais fatos para contar com a simpatia de governos e pessoas “ditas” de esquerda. Não precisava confessar, as provas eram patentes.
Apesar da confissão do criminoso/torturador, até agora não apareceram – dentre aqueles que foram para as ruas no Brasil carregando faixas “Battisti Livre” –, ninguém para se desculpar com os brasileiros, e com os italianos, pelo vexame de terem “acoitado” o terrorista por tanto tempo em território nacional. Pior, ainda tem os que dizem que ele foi “torturado” para confessar.
Ora, que moral têm essas pessoas para revolver os fatos do nosso passado se não têm o discernimento sequer de enxergar o presente?
Em um texto anterior, dizia que ditadura nenhuma, de direita ou de esquerda, merecem o respeito dos cidadãos de bem.
Diante do atual debate, sobretudo, por quem faz o debate é hora dos cidadãos de bem – que nunca mataram, torturaram ou defenderam assassinos e torturadores –, ignorarem os tolos e seguirmos em frente, trabalhando para construirmos um país mais justo e humano para todos.
É o que apelo. Vamos deixar o passado passar.
Abdon Marinho é advogado.