O INFERNO É A INTOLERÂNCIA.
Passei minha primeira infância na roça, meus pais eram agricultores, analfabetos por parte de pai mãe e parteira. O centro urbano mais próximo ficava a 6 km de distância, como não tínhamos estrada ou veículo, parecia ser bem mais longe.
As lembranças que guardo daqueles dias, das pessoas simples, são todos de tolerância. Lembro que minha família era católica, minha mãe devota de São Francisco, tinha um pequeno oratório na sala onde guardava os santos e acendia velas. Um dos meus irmãos, o que nasceu logo antes de mim, em homenagem ao santo, levou o nome de Francisco. Acometido de poliomielite com um ano e pouco de vida, minha promessa foi vestir-me como franciscano por um ou dois anos. E, sempre que algum amiguinho vinha com gozação por conta da batina – as crianças sabem ser cruéis e os mais velhos também – já a levantava e mostrava o cacho e dizendo: – olha aqui quem é mulherzinha. Já não usava cuecas para isso. Talvez, por isso mesmo tenha crescido um pouco mais. Rsrs.
Pois bem, embora fosse um povoado pequeno, tinham pessoas ligadas às igrejas protestantes e outros credos. Lembro bem de ver alguns parentes, amigos, uma vez por semana arrumarem-se todos para irem a um Terecô num ou noutro povoado vizinho. No dia seguinte as ouvia comentar que o Terecô tinha sido assim ou assado, alguém tinha recebido este ou aquele espírito. Mais para frente, lá mesmo no povoado, em algumas noites da semana ou do mês, praticavam a crença. Uns primos e amigos mais velhos chegavam a dizer que até se aproveitavam de alguma cunhã novinha quando lhes baixavam alguma pomba-gira e as fazia correr pelo capinzal.
Isso nunca nos causou qualquer constrangimento ou insatisfação.
Embora cada um praticando seu credo, vivendo sua fé, estas não eram coisas que nos separavam. Nunca ouvi de nenhum dos meus pais, tios, irmãos mais velhos o esboçar de qualquer contrariedade ou intolerância quanto à profissão de fé de cada um. Eram pessoas simples, sem qualquer formação intelectual ou acadêmica que possuíam a certeza que a melhor forma de convivência era o respeito mútuo.
Um pouco maior – e já órfão – fui morar e estudar o primário, primeiro em Governador Archer e depois em Gonçalves Dias, onde fiquei até a oitava série. Em ambas as cidades convivi com pessoas ligadas a várias denominações religiosas, católicos, protestantes da Igreja Batista ou da Assembleia de Deus, umbandistas. Nunca senti ou ouvi falar de qualquer discriminação com relação à fé que praticavam.
Historicamente, sabemos, da existência de intolerância religiosa, pessoas sendo levadas à fogueiras por professar esta ou aquela fé, outros acusados de bruxaria, etc. Entretanto, pensávamos que este tipo de coisa tinha ficado no passado distante, no período medieval.
Outro da soube de um caso, aqui mesmo, no Brasil de uma menina que fora agredida porque estava vestida toda de branco, sendo, portanto, praticante de cultos afros. Não faz muito tempo era um pastor chutando a imagem de uma santa, mais recente, uma destruição de diversas imagens por um fanático.
Multiplicam-se os casos de vandalismos contra igrejas católicas, terreiros de umbanda. Nem a Igreja da Sé, em São Paulo, escapou do vandalismo da intolerância, sendo tolamente pichada por grupos que defendem posições diferentes das defendidas pela Igreja Católica, como a posição em relação ao aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.
Não falo aqui de atos de vandalismo a que estão submetidas todos os demais prédios públicos e/ou privados nas cidades brasileiras.
O que aconteceu em São Paulo foi um ato de vandalismo motivado pela intolerância a uma posição política ou dogmática da igreja. É diferente.
O mundo inteiro ainda está chocado com os atentados em Paris, na França, motivados pela intolerância religiosa de fundamentalistas islâmicos.
Os atentados – embora muitos, até mesmo aqui no Brasil, tentem justificar colocando a responsabilidade no capitalismo/imperialismo das nações ocidentais – são indesculpáveis. Ninguém, sobe qualquer pretexto, tem o direito de sair por aí, empunhando um rifle e atirando em pessoas porque estas não professam a mesma fé que elas. Ninguém, sob qualquer argumento, tem o direito de invadir a esfera privada de outrem para impor seu pensamento ou seus valores. Qualquer um tem o direito de – desde que não atrapalhe a vida do outro e respeite as regras da convivência em sociedade – viverem da forma que quiserem.
Com que direito alguém pode querer o Deus para o qual devo rezar ou fazer algo na minha vida privada que não prejudique o próximo? Como pode ser razoável alguém querer impor seus valores e sua fé a outros?
Grandes atos de terror começam com pequenos gestos de intolerância. Isso vale para Europa, Ásia, Africa, Américas – e também para o Brasil.
A fé de cada um, a vida ide cada um é território privado onde não se admite a presença de ninguém sem o consentimento do titular.
Todos (qualquer um) têm o direito de viver sua fé (e a sua não fé se assim quiserem) e serem respeitados, terem garantidos os mesmos direitos dos demais cidadãos. Assim como as igrejas (qualquer uma) têm o direito ao seu credo. A igreja católica, por exemplo, tem o direito de ser contra o aborto, o casamento gay; tem o direito de dizer isso a seus fiéis. Os protestantes têm, também, este direito, assim como os umbandistas têm o direito de reverenciar seus orixás e os ateus têm o direito de dizer que não acreditam em nada disso.
Um amigo me reclamava que determinada igreja tentara o converter à força, levá-lo, segundo ela, ao Céu. Como não perco a piada fui logo dizendo: – pois é, fulano, trata-se de uma concorrência desleal pois não tem nenhum diabinho te chamando para ira para o inferno, né?
O que precisa é cada um respeitar os espaços dos demais. Ninguém pretender ser melhor que o outro e impor, à força ou na marra, suas convicções.
O mundo não acaba porque um padre ou bispo recusa-se a casar pessoas do mesmo sexo ou repudiam o aborto e outras coisas, pois nos limites da lei, pode-se fazer isso de outra forma. Não sendo motivo para vandalizar seus templos.
As religiões ou credos não é dado o monopólio de Deus (aos que acreditam), assim, cada um pode manter sua fé e até mesmo criar sua própria igreja se assim desejar. Ou não ter fé nenhuma.
Se muitos caminhos que levam ao Céu, para o Inferno o caminho mais curto é a intolerância e o ódio.
Abdon Marinho é advogado.