Os Calheiros Marinho e o comércio.
Por Abdon C. Marinho*.
O COMÉRCIO, assim como a agricultura, sempre estiveram entre as atividades da nossa família desde que me entendo por gente – e sei, vem desde bem antes disso.
O tio Pedro, por exemplo, teve um comércio que fez história no mercado de Pedreiras desde que foi morar por lá quando veio com a família do Rio Grande do Norte para essas terras.
O tio Deolindo (“tie Dió) tinha seu comércio numa casa de alpendre numa elevação, tínhamos que vencer alguns degraus na calçada de cimento queimando para chegar à quitanda.
Minha irmã Deiza e seu marido Wilson (filho de “tie Dió) quando saíram do Centro Novo para Gonçalves Dias montaram seu comércio na Rua Rui Barbosa, logo no início da mesma, na parte da frente da casa onde moravam. Tempos depois, quando fizeram a ampliação da cidade com a criação do Novo Gonçalves Dia, abriram um segundo comércio por lá.
Após minha irmã ficar viúva, embora estes dois pontos comerciais tenham fechado, ela continuou na atividade, primeiro com uma banca de feira, levando seus produtos de cidade em cidade, até se estabelecer onde se encontra hoje em um ponto comercial quase em frente a prefeitura onde trabalha todos os dias, de sol a sol apesar de já ter mais de setenta anos.
O meu pai já viúvo, lá pelo final dos anos setenta, mudou-se para Gonçalves Dias, indo morar numa casa que mandara fazer fazer germinada à casa da minha irmã. Por essa época decidiu colocar um comércio na Rua Dr. Paulo Ramos que é a rua que segue paralela a Rua Rui Barbosa, onde morávamos.
Ainda no fundamental, fiquei encarregado do comércio.
Passava o dia no comércio – só fechando no horário do almoço e no final dia quando tinha que ir para a escola.
Naquela época os comércios, também chamados de quitandas, vendiam todo tipo coisa: café, açúcar, arroz, feijão, óleo, fósforo, cigarro, cachaça, fumo de rolo, etc., lidava, por isso mesmo, com todo tipo de gente: da dona de casa a “rapariga”, do trabalhador aos cachaceiros.
Naquele tempo, antes do surgimento do Novo Gonçalves Dias ou quando se iniciava a ocupação do mesmo, a Rua Dr. Paulo Ramos ainda era conhecida como a “rua de trás”, a alguns metros adiante do “meu” comércio tinham alguns cabarés onde as “meninas de vida fácil” tinham dificuldades e suavam para ganhar a vida durante a noite.
A minha vizinha da esquerda, parede-meia com a quitanda, era uma dessas “moças de vida fácil”, tinha duas filhas que acabavam brincando pelo comércio enquanto a mãe descansava da labuta.
Quando ela acordava também ia para lá conversar, pagar alguma coisa que fizera fiado ou pedir fiado alguma coisa para pagar com o resultado da noite.
Todos sabíamos qual a “guerra” que teria que vencer para pagar o fiado no dia seguinte.
Era comum – e até ansiávamos por isso –, voltarmos da escola, quando estudávamos à noite, pela “rua de trás” para vermos o movimento nos cabarés, principalmente nos dias de maior movimento.
Não raro via a vizinha no “ofício” tentando ganhar o dinheiro que me pagaria no dia seguinte.
Encarávamos isso com naturalidade. Assim como o fato de com 11 ou 12 anos servir cachaça aos que frequentavam o comércio.
Esse foi o meu ofício dos dez aos quatorze anos, quando me mudei para fazer o ensino médio na capital.
Posso até dizer que comecei antes, pois quando morava em Governador Archer, com minha irmã Bibia, seu marido Henrique tinha um quiosque de madeira atrás da Igreja Adventista e sob umas sapucaias e muitas vezes, eu com sete ou oito anos ficava por lá “tomando de conta”.
Pois é, naquele tempo não existia Conselho Tutelar.
Logo que teve oportunidade e conseguiu juntar um dinheirinho o meu irmão Dodô montou seu comércio na mesma Rua Rui Barbosa e o mantém até hoje.
Com o nego Goça, o irmão nascido antes de mim, não foi diferente, enveredou pelo comércio desde cedo, comprando e vendendo de tudo: legumes, verduras, carnes, etc. muita das coisas tem que buscar noutros estados e sai vendendo de feira em feira, de comércio em comércio pela região do Mearim.
Entre os familiares e amigos costumamos dizer que se o “nego” tivesse estudado, com o “tino” que tem, já teria dominado o mundo.
Nos últimos tempos tenho tentado voltar o comércio através de uma das coisas que, juntamente com o direito, sempre me encantou: a educação. Daí que resolvi “patrocinar” junto com amigos alguns projetos no seguimento.
A véspera do feriado da proclamação da República me alcançou em Timon, terra de muitos amigos queridos e um calor humano extraordinário (o termômetro dizia que estávamos com 45º, na sombra), onde fui apresentar meus produtos, vulgo, “vender meu peixe” a esses amigos.
Na volta, passando pelo Dezessete, Codó, convidei o companheiro de viagem para visitar os meus parentes em Governador Archer e Gonçalves Dias.
Em GA visitei a mana Bibia e fui para casa querido irmão Armando, onde fiz o pernoite. No dia seguinte, após a palestra do café desci para o GD.
No caminho ia compartilhando com o companheiro de jornada, Alison Fernando, as lembranças da minha primeira infância no Centro Novo, que fica divisa entre os dois municípios.
Já em Gonçalves Dias passei na casa do Goça, segui até o comércio do Dodô onde o cumprimentei e fui até o comércio da mana mais velha, Deiza.
Já na volta parei para uma conversa no comércio do Dodô.
Um amigo da família, Seu Luiz Ceci, casado com filha Antônio Padre, aparentado dos Peixotos, do Centro dos Camelos, já avançado na casa dos oitenta anos, estava por lá e começou a contar um pouco dos causos da nossa família desde que vieram do Rio Grande.
Pouco depois chegou o Goça e ficamos os três, além do Alison ouvindo alguns causos.
Com o ouvido atento que só os apreciadores de causos, tem fui solvendo cada uma das lembranças dele.
Disse-nos que o primeiro empreendimento comercial do meu pai foi como vendedor de “mel de furo”, na verdade o melaço resultante da centrifugação no processo de produção de açúcar e/ou cachaça.
Ele, meu pai, ia aos engenhos – naquela tínhamos bastante no interior do Maranhão –, comprava o mel de furo e o revendia pela região.
Foi graças a esse comércio que comprou seu primeiro burro começou enveredar por outras atividades como a compra e venda de arroz.
Já o alcancei nessa fase da vida, ele comprando o arroz “na folha” e nós indo com ele buscar nas roças dos vendedores, montados nos burros. Na minha primeira infância, já depois da partida de minha mãe, era o nosso lazer: montados nas cangalhas dos burros íamos pelas veredas buscar o arroz.
Eram toneladas e toneladas de arroz transportadas assim das roças para os nossos depósitos.
Meu pai, como já disse outras vezes, era analfabeto por parte de pai, mãe e parteira. Já minha mãe fora alfabetizada até os primeiros anos do ensino fundamental.
Na lida diária, quando não estavam na roça, meu pai estava cuidando de alguma coisa, debulhando um milho, um feijão e minha mãe se ocupando na costura numa antiga máquina Singer, ajudada por minha irmã mais velha que já fazia um “embanhado” ou pregava os botões. Todas as roupas da família eram feitas por elas.
Assim, quando chegava alguém para vender o arroz, meu pai gritava: — ô Neuza anota aí que fulano vendeu três ou quatro arrobas de arroz.
Segundo o seu Luiz Ceci, meu pai era um comerciante nato e como bom comerciante sabia importância de guardar o dinheiro e as coisas. Achava que ganhava todo dinheiro que deixava de gastar.
Dessa parte eu lembro bem pois ainda hoje ressoa nos meus ouvidos suas palavras: — guarde, meu filho, porque quem guarda tem.
Ele guardava bem.
Disse-nos seu Luiz Ceci que uma vez que uma vez meu pai levou Dadido (meu irmão Adilson) com ele para fazer umas entregas de alguma coisa e comprar a feira da semana. Na volta Dadido viu alguém vendendo bolo e disse: — ô pai compra um bolo para eu ir comendo.
Ao que meu pai respondeu: — que nada, menino, a tua mãe já está esperando com o almoço pronto.
Outra feita, estava meu pai debulhando o milho quando chegou alguém: — ô seu Vandelo me dê um copo d’água.
Meu pai levantou foi para sala ficava onde ficavam os potes. Pegou um copo de alumínio, enfiou no pote, ouviu-se só o “timbum”. Voltou com o copo e entregou ao cidadão.
Após o cidadão beber, olhou para um cacho de bananas pendurado na sala amadurecendo para vender na cidade e disse: —ô seu Vandelo, eu não tenho dinheiro para comprar essa banana, o senhor pode me dar uma?
Meu pai arriou-se sobre a “runa” do milho que debulhava e gritou: — ô Neuza, ô Neuza, venha cá.
Minha mãe largou a costura e correu pra sala: — o que foi Vandelo?
Meu pai respondeu: — tire uma banana do cacho e dê para o rapaz.
Minha mãe disse: — mas Vandelo você acabou de levantar para dar a água para o rapaz, por que não deu a banana?
Meu pai respondeu: — porque a banana eu não tenho coragem de dar, dê você.
Se os causos de seu Luiz Cici são verdadeiros eu ou meus irmãos não temos como saber, sei apenas que quase me acabei de rir deles.
Depois dessa pegamos a estrada e voltamos para a capital.
Abdon C. Marinho é advogado e contador de causos.