Ensaio sobre a minha velhice ou velho, sim; velhaco, jamais.
Por Abdon C. Marinho.
EM FRENTE ao espelho, enquanto tirava a barba, contemplava a passagem do tempo. Uma ruga aqui ou ali, que antes não existia, o cabelo já quase totalmente esbranquiçado, que mesmo o shampoo especial não consegue esconder, esse nariz, que embora nunca tenha sido pequeno, parece ter se avolumado, mesmo as orelhas, que sempre serviram para nominar a famosa tribo dos “orelhas longas”, agora, com muito mais precisão justificam tal nome.
Estou ficando velho. Não muito (rsrs), mas, estou.
A inexorável certeza, além dos sinais acima descritos, vem, sobretudo, da constatação de que os anos que ainda tenho pela frente já são bem menos que os já vividos – bem vividos? Não sei.
Por esses dias lia uma magnífica entrevista do cantor Ney Matogrosso em que ele, do alto dos seus mais de oitenta anos, dizia encarar com serenidade a passagem dos anos e que, como devoto da doutrina budista, tem por certo que essa é apenas uma passagem.
Crédulo, também acredito que essa é apenas uma passagem das muitas que ainda virão e das que já passaram.
A matéria é o pó que ao pó vai retornará mais cedo ou mais tarde. Somos todos iguais na certeza que nada somos além de pó.
Além disso, sempre tive como princípio que devemos envelhecer com dignidade.
Não falo aqui da dignidade material, de se ter como prover o próprio sustento sem ser um estorvo ou um fardo aos familiares, muito embora o que se ver, na maioria das vezes, são os idosos sendo os provedores daqueles que deveriam trabalhar de forma mais árdua – e, não raro, sendo explorados de forma vergonhosa por aqueles que teriam a responsabilidade de lhes cuidar e proteger.
A dignidade que desejo tratar é aquela que tem a ver com o caráter humano.
Acredito que já são tantas as chagas a acompanhar a velhice – na maioria das vezes –, que para compensá-las os idosos deveriam ser oásis de decência, experiência e do conhecimento acumulado ao longo das décadas.
Os arroubos juvenis, os deslizes ou mesmos as falhas cometidas na juventude, ao meu sentir, precisariam (ou deveriam) se sopesadas na “balança do tempo” serem infinitamente menores que as qualidades acumuladas, o caráter consolidado, a moral irretorquível, a honra, em resumo, a dignidade do envelhecimento.
Se, às chagas físicas da velhice ao invés de serem suprimidas pela dignidade do envelhecimento forem acrescidas ou ampliadas às falhas de caráter, a torpeza, a avareza, a desonra, a ambição desmedida, a inveja, o ódio e tudo mais, ter-se-á dado o fracasso da existência.
Pois, muito embora possa até ter deixado fortuna para a descendência, fracassou naquilo que verdadeiramente importa, o bom e velho exemplo e a retidão inspiradora.
Um dito corriqueiro da minha aldeia tinha o seguinte enunciado: “fulano deu um velho, mas não deu um homem”.
É dizer, na balança do tempo, fulano levou para a velhice as mesmas falhas de caráter que sempre o acompanharam.
Não foi homem na infância, não foi homem na juventude, não foi homem maturidade e nem o foi ou será homem na velhice.
Será um velho, um velhusco, nunca um homem.
Um bordão popular nos programas policialescos das tardes diz: “os canalhas também envelhecem”. Isso para aqueles que conseguem chegar à velhice.
E essa é a materialidade daquilo para os a vida não teve qualquer serventia: viver e morrer como um canalha. Velho ou novo, tenho a canalhice na própria sombra.
Vejam o quanto de desperdício, uma vida inteira de canalhice.
Foi com o meu pai, homem simples, rude, agricultor e comerciante, analfabeto por parte de pai, mãe e parteira que aprendi que mesmo aquele nada tem a deixar aos seus, deveriam ter como preocupação a herança do bom exemplo.
Esse aprendizado tem me acompanhado e servido ao longo da vida. Diante das situações em que “atalhos” aparentam ser o certo, lembro-me me dele para dizer: — me desculpe, tenho mas família grande.
O envelhecer com dignidade é saber que o brilho do ouro jamais poderá ofuscar a limpidez de uma consciência tranquila.
A arte de envelhecer tem esse significado: você ser capaz de discernir o que vale você acrescer a sua “bolsa” daquilo que você poderá acrescer ao seu caráter.
Um dos livros que mais marcaram minha infância/juventude foi “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Nele, no funesto trato, todas as vilanias e torpezas do personagem eram marcadas no retrato e ao cabo de tudo quando ele foi olhar aquele que um dia fora o mais belo quadro só restava uma monstruosidade tão disforme que ele não conseguia olhar (não darei spoiler do sucedido). Leiam, o livro é uma inspiração para os jovens.
Desde então – e com o passar dos anos –, cada vez mais tornei-me obcecado pela arte de envelhecer com dignidade.
Talvez o justo receio de como serão as encarnações futuras de que tratam o espiritismo e algumas religiões orientais; talvez pela fé Cristã que nos traz a promessa de um Juízo Final onde todos serão julgados; talvez pelo desejo de honrar os meus.
Nunca me assustou o “envelhecer”, apenas os que morrem cedo não terão tal privilégio. Minhas rugas, minhas chagas, o nariz ou o par de orelhas que nomeiam com orgulho nossa tribo, são o testemunho de uma existência.
O que sempre me assustou foi a desonra, ser tido como mau caráter, embusteiro, canalha, vagabundo, leviano, malandro, cafumango, desocupado, lustra, parasita, saranda, vadio, ximbo, volúvel, etcetera.
Esse pavor me conduz ao trabalho árduo, a criação, à disposição e à inspiração. A não perder meu meu tempo com o que não vale a pena.
Quando chegar a hora – espero que demore –, jamais darei determinadas ousadias. Velho, sim, certamente, serei – e com orgulho; velhaco, jamais.
Abdon C. Marinho é advogado, escritor, cronista.