Inimigos íntimos.
Por Abdon C. Marinho.
UM DOS BIÓGRAFOS do presidente americano Roosevelt (Franklin Delano Roosevelt, 1882 - 1945) assentou que naquele dia 08 de dezembro de 1941, quando fez o célebre "Discurso da Infâmia", no qual disse: "Ontem, 7 de dezembro de 1941—uma data que viverá na infâmia—os Estados Unidos da América foram repentina e deliberadamente atacados pelas forças navais e aéreas do Império do Japão", para em seguida declarar a guerra aquele país, a maior dificuldade do longevo presidente (o único a ser eleitos quatro vezes presidente), não fora uma coisa ou outra, mas, sim, “caminhar” do lugar onde descera do carro até atravessar o plenário do Congresso Americano, onde faria o discurso e declararia a guerra.
Roosevelt, no início dos anos 1920, adquiriu uma doença paralisante dos membros inferiores na época diagnosticada como poliomielite ou paralisia infantil (muito embora já fosse adulto). Essa doença o impedia de andar e, por muito pouco, não o impediu de seguir a carreira política, vindo a eleger-se senador, governador de Nova Iorque e, a partir de 1932, eleito presidente por quatro vezes.
Para os padrões da época não se afigurava de “bom tom” que um presidente andasse em uma cadeira de rodas e, muito menos, que fosse “declarar guerra” demonstrando tal fragilidade em sua saúde. Naquela época, quando o mundo não era transmitido ao vivo, o fato do presidente de uma das maiores potências mundiais ser paralítico (ou cadeirante) não era de domínio público – o sistema eleitoral americano com eleições indiretas, contribuiu para isso.
O desafio de caminhar até o local do discurso foi vencido pelo presidente que usando órtese nas duas pernas conseguiu manter-se em pé e, com um dos filhos de um lado e um ajudante de ordens de outro lhe amparando e segurando para não cair conseguiu chegar até a tribuna do Congresso Americano.
Por esses dias divulguei umas fotografias de um atendimento no hospital Sarah de São Luís, referência em ortopedia.
Como sabem, tenho um inimigo íntimo. Na verdade, uma inimiga.
Essa inimiga não me larga de forma alguma e já me acompanha há mais de cinco décadas.
Se a convivência com quem é possível separar-se nas dificuldades já é complicado imagine conviver com uma inimiga de quem jamais poderá afastar-se, como naqueles casamentos de outrora em o padre dizia: — até que a morte os separe.
No meu caso, talvez até dure um pouco mais. Rsrs.
Quando nos conhecemos, por assim dizer, já andava e corria por todos os lados. Ela veio com tudo e, literalmente, “deixou-me de quatro”, conforme já contei noutras paragens.
Foi um encontro avassalador que quase me fez sucumbir – por muito pouco, se não tivesse sido a intervenção dos médicos, que alertaram que não mais voltaria a andar.
Menino teimoso, criado solto pelo campo, desafiei o vaticínio. Voltei a engatilhar e depois a andar, a correr, a brincar, a levar uma vida normal dentro das limitações que me eram impostas.
Na adolescência, já na capital, percorria quase todos lugares do centro, fosse nas atividades de lazer, fosse nas atividades de trabalho, fosse na militância dos movimentos políticos.
Mais adulto frequentava a faculdade depois de um dia inteiro de trabalho e de pegar quatro conduções, duas pra ir, duas pra voltar, como dizia a música.
A carreira me levou a andar mais, a percorrer quase todo o estado (e o país) dormindo aqui amanhecendo acolá, o tempo todo, pois já se vão quase 30 anos de lutas.
A minha condição física nunca me impediu de fazer nada. Talvez de esquiar nos Alpes, de surfar no Havaí, de escalar o monte Evereste.
Mas fiz diversas outras coisas.
Diria que durante muitos anos tive uma convivência “pacífica” com a minha inimiga íntima.
Há cerca de vinte anos ela voltou a me provocar, a perturbar o que estava sossegado. Não diretamente, mas através de seus emissários. Como dizem: o Diabo quando não vem, mand o secretário.
Naquela oportunidade procurei a rede Sarah pela primeira vez e, para garantir algum conforto para as atividades do dia a dia, me foi recomendado o uso de uma bengala.
As outras opções de tratamento – que na verdade minorariam ou adiariam a situação –, me pareceram dolorosas e/ou custosas.
Embora fosse, digamos, “complexo” aceitar o uso da bengala por quem estava acostumado a fazer todas as atividades sem necessidade desse tipo de apoio, procurei “encarar” como um mal necessário e até elegante.
Em 2004, quando procurei o Sarah pela primeira vez, a síndrome pós-pólio (SPP), que acredito seja o meu quadro, pelo menos, em diversas características é compatível, somente foi incluída no Catálogo Internacional de Doenças (CID 2010) em 2010, graças a um trabalho desenvolvido por pesquisadores brasileiros da UNIFESP.
Há cerca de cinco anos, aproximadamente, voltei a sentir novamente (ou aumentar) uma fraqueza muscular, um desconforto ao andar e um agravamento nas dores do pé direito, que ficou mais “virado” e provoca dores mais fortes ao andar.
Uma queda “do nada” acendeu o sinal de alerta para o que poderia estar acontecendo.
Foi essa situação, aliás, seu agravamento que me levou ao Sarah nos últimos dias.
Novas radiografias mostraram uma piora nas deformações dos pés e pernas em relação aquelas que foram tiradas em 2004.
A recomendação é que passe a usar órtese nas duas pernas para estabilizar os pés e evitar as dores e, quem sabe, depois vir a fazer uma ou mais a cirurgias para recolocar as coisas nos lugares.
No dia que fiz a publicação que preocupou os amigos sinceros tinha ido lá para fazer os moldes para as órteses recomendadas.
Claro, além do uso da órtese para evitar as dores ao caminhar, teremos que retomar com mais disciplina a fisioterapia e os exercícios físicos.
Não é nada que não possamos fazer depois de termos vencido tantas batalhas.
Minha irmã caçula me mandou mensagem preocupada por ter visto as fotografias: — me conte tudo. Pediu.
Após fazer o relato do que se passava fechei a conversa mais ou menos assim: — não se preocupe, minha irmã. E veja pelo lado bom, agora você terá um irmão que será quase um “homem biônico”. Rsrs.
No mais, é vida que segue. Como dizia o poeta no canto de morte do guerreiro (que não é o caso, longe disso): “sou bravo, sou forte, sou filho do norte”.
É isso.
Abdon C. Marinho é advogado.